Dá vontade de chegar aqui como um cantador popular, que toma sua viola ou rabeca e canta em feitio de oração:
À vida e a todos eu devo
por esta hora encantada.
não tenho como pagar
tamanha gloria alcançada.
Só me resta agradecer,
os olhos aos céus volver,
e graças a Deus render.
A todos, muito obrigada.
É que lá longe, quando tudo começou, nada faria supor que um dia os caminhos de minha vida me trouxessem a ocupar esta Cadeira número 1 nesta Casa. A Casa de Machado de Assis. Mas outro Machado desta família literária tão diversificada, o poeta espanhol Antonio Machado, já advertira:
Caminhante, não há caminho.
Faz-se caminho ao andar.
E se nem mesmo havia veredas ou picadas, ou se no meio do caminho só havia pedras, se não havia pontes ou porteiras abertas, se nada conduzia a estradas largas e pavimentadas, hoje olho o percorrido e constato como tantos fios tão tênues vieram se entretecendo, tramando de modo diferente e me trazendo a este momento. Se os retraço agora é menos por registro biográfico do que pela evocação de um processo brasileiro comum a tantos de nós, que nos permite diferentes e insuspeitadas ascensões e mobilidades numa sociedade tão desigual. Como nos ensinaram em música outros poetas, (Caetano Veloso e Gilberto Gil), o Haiti é aqui e ao mesmo tempo o Haiti não é aqui. Ou ainda, tudo é tão desigual – de um lado este carnaval, de outro a fome total (Herbert Viana). De todos os lados somos feitos, aos poucos.
Não para buscar o carnaval, mas seguramente atrás de visões do paraíso e para fugir da fome total, meu bisavô paterno, um menino português com seus dez anos de idade, fez seu caminho sobre o mar e entrou sozinho no porão de um navio. Deixava pais e irmãos na aldeia nos arredores de Vizeu e veio parar na serra fluminense, em Petrópolis, onde trabalhou no comércio e plantou hortaliças, conseguindo depois educar uma filharada. A mais velha delas, minha avó (e bisavó do atual prefeito de Petrópolis aqui presente), estudou no Colégio Sion, falava francês, lia os autores que mais tarde iria discutir com esta neta. E, sobretudo, era uma rebelde. Contra a vontade paterna, casou com um farmacêutico português pobre, que viera trabalhar na Casa Granado e acabou dono da Farmácia Central em Petrópolis. Tiveram oito filhos. Mas com toda a trabalheira, ela conseguia preservar suas leituras e escrever nas horas vagas. Oculta sob pseudônimo, manteve uma coluna em um jornal local, defendendo o voto feminino e os direitos da mulher em geral. Talvez tenha sido lida, eventualmente, por alguns dos grandes nomes desta Academia, então recém-fundada, que costumavam passar o verão no clima ameno da serra. Talvez também alguns deles se alimentassem com as frutas e verduras que o velho Almeida, meu bisavô, cultivava lá em Petrópolis, na chácara do Caxambu, ou se tratassem com cápsulas que meu avô Rozendo Martins preparava na farmácia. Alceu Amoroso Lima os recordava bem, e chegamos a conversar sobre essas lembranças. Talvez esses caminhos tenham se cruzado com os de um dos ocupantes desta Cadeira, o historiador Afonso de Taunay, que estudou muitos anos em Petrópolis... Quem sabe se ele, conservador a ponto de condenar o retrato da Marquesa de Santos nas paredes do Museu do Ipiranga, por ofensivo aos melindres das famílias, não se teria chocado com algumas das irreverências defendidas por minha avó em sua coluna do jornal? Os exercícios de imaginação, que são matéria-prima de qualquer ficcionista, me permitem enveredar por algumas possibilidades bem divertidas do que estariam achando os dois, Taunay e vovó, agora, ao me ver aqui, “se lá do assento etéreo onde subiram memória desta vida se consente...” Quem sabe se a garra que constituiu o primeiro fio que me trouxe aqui não terá vindo justamente daí – da força com que minha avó Neném desejava as conquistas femininas, numa época em que mulher não podia nem ao menos estudar latim e grego e assim era impedida de ler os clássicos...
Pelo meu lado materno, não havia inicialmente a menor ligação com este mundo. Era tudo muito rural mesmo. Minha avó só aprendeu a ler e escrever com meu avô, depois de casada. Mas a avó dela ficara conhecida e tem seu nome registrado na história do norte capixaba porque fez coisas espantosas para uma mulher: chefiava o partido de oposição e era por seu intermédio que o quilombo local escoava sua produção de farinha de mandioca. Esse apoio aos escravos fugidos acabou lhe dando suficiente destaque para que seu filho, meu bisavô, viesse a ganhar do Imperador, após a Abolição, um título de nobreza, o último concedido pelo Império. Ao se tornar Barão dos Aimorés, incorporou ao nome a lembrança da paisagem humana em que vivia – embora vizinho a Nova Venécia, uma das primeiras colônias de imigrantes do Vêneto em nosso país, passara sua existência junto às matas onde se escondiam esses índios aimorés, então também chamados de botocudos ou coroados “gente que desde o século XVI infundia terror por suas investidas contra os ocupantes da costa”, no dizer de Darcy Ribeiro.
Um mundo bem distante das letras, não? Mas foi daí que vieram dois dos mais fortes fios que me fazem subir hoje os degraus desta tribuna: as histórias tradicionais que me contava minha avó Ritinha, biblioteca viva de sabedoria popular, e o amor aos livros que me transmitiu meu avô, Ceciliano Abel de Almeida, filho de um lavrador que colhia café às margens do rio Cricaré, nas terras do senhor barão. Um menino que usou a leitura e a sede de educação para ir fazendo seu caminho – do mato para a vila, de lá para a escola, em São Mateus, e para Vitória, e para a Escola Politécnica no Rio de Janeiro, e em seguida para as inúmeras escolas onde ensinou física e matemática em Vitória por mais de 50 anos, e depois para a Universidade do Espírito Santo, que ajudou a fundar e onde foi reitor, na mesma cidade cuja prefeitura ocupou por duas vezes. Foi junto à sua escrivaninha de peroba-rosa com tampo em esteira deslizante, em frente a suas estantes com portas de vidro, que, ainda menina, pela primeira vez ouvi falar com admiração na Academia Brasileira de Letras. Compreendi então que muitos daqueles autores de sua coleção Brasiliana (ou da Documentos Brasileiros, que viria a publicar seu livro O Desbravamento das Selvas do Rio Doce), conheciam os dois vizinhos ilustres que meu pai às vezes me apontava no ponto de bonde do Curvelo em Santa Teresa, no Rio, onde eu nascera e passara a infância – e que hoje reconstituo na memória, deduzindo que deviam ser Manuel Bandeira e Ribeiro Couto.
Pelas mãos de um deles é que eu entraria pela primeira vez nas salas desta Casa povoada de História e de histórias. Aí já bem mais tarde. Tempos novos, em que o Rio se preparava para deixar de ser a Capital Federal. Eu era então uma garota praieira, de Ipanema e do Arpoador, típica desta nossa cidade mestiça, de sol na pele e música no corpo. Acabava de entrar no curso de Letras na então Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, fazia parte do ME (como era conhecido entre a militância o Movimento Estudantil) e participava da invasão e ocupação do prédio que havia aqui ao lado, que tinha sido o pavilhão inglês na exposição do Centenário da Independência e onde funcionara um tribunal eleitoral até a mudança da capital para Brasília. A faculdade ficava do outro lado da Avenida Presidente Antônio Carlos, onde fora (e hoje novamente é) a Casa da Itália, que fora tomada de seus donos durante a Segunda Guerra por outra ocupação estudantil. Mas então, início dos anos 60, abrigava um excesso de cursos e não havia mais espaço. Daí, a nova invasão, e seu reconhecimento oficial, através de uma cessão para que os cursos de letras passassem a funcionar nesse prédio – depois demolido para dar lugar ao Centro Cultural e ao Edifício Austregésilo de Athayde, a partir dos belos traços arquitetônicos de Maurício e Márcio Roberto.
Foi ali (bem aqui ao lado) que, num imenso salão, tive a primeira aula de meu curso. Inesquecível. De Literatura Brasileira, com Alceu Amoroso Lima. Logo de saída, ao anunciar que o curso versaria sobre o Modernismo, evocou outra invasão, de que participara em sua juventude. Entrara à força nesta Casa, carregando Graça Aranha nos ombros, num protesto estudantil contra a Academia – em que, a essa altura dos anos 60, meu professor às vésperas da aposentadoria ocupava a Cadeira número 40 (onde, aliás, tomou posse num 29 de agosto, há exatos 68 anos).
Ao meu fascínio com as aulas do Dr. Alceu fazia contraponto a decepção por não ter chegado a ser aluna de outro grande mestre, aposentado um ano antes. Para me consolar, nossa professora de Literatura Portuguesa, D. Cleonice Berardinelli, me levou para visitá-lo. E atendendo a um convite dele, eu lhe fiz companhia numa quinta-feira, entrando pela primeira vez nesta Casa – de braços dados com meu querido Manuel Bandeira, encantada, cumprimentando pessoalmente cada um dos presentes. Entre eles estavam alguns a quem eu já fora apresentada, por serem amigos de Mario Martins, meu pai – Álvaro Moreyra, Luís Viana, Raymundo Magalhães Júnior e Afonso Arinos de Melo Franco. Mas não estava o único que então eu já podia chamar de meu amigo, Vianna Moog, com quem alguns meses antes eu tivera o privilégio de explorar as belezas do México, onde passei um mês e ele era adido cultural, cicerone precioso, paternalmente me adotando com saudades da filha com o mesmo nome e quase da mesma idade, então no Brasil. Fios da melhor qualidade começavam a tecer sua trama para me ligar à Academia. Mas ainda muito tênues, de modo muito sutil.
Logo em seguida, recém-formada, fui dar aulas na Faculdade de Letras, que começava a funcionar na Avenida Chile, dirigida por Afrânio Coutinho, com quem fui trabalhar na cadeira de Literatura Brasileira. Paralelamente, eu lecionava também Teoria Literária e fazia parte da equipe de outro acadêmico de quem guardo as melhores lembranças, o poeta Augusto Meyer. Nesse universo, convivi com confrades aqui presentes, que ainda não tinham suas cadeiras nesta Casa, como Evanildo Bechara, Nélida Piñon e Eduardo Portella – com quem trabalhei mais diretamente na editora Tempo Brasileiro. Com ele e com nosso amigo Roberto Pontual acompanhei muito de perto o desabrochar da luminosa inteligência de José Guilherme Merquior, em reuniões de trabalho, grupos de estudo, cursos, conversas intermináveis.
Mas a situação do país se fazia cada vez mais tensa e acabei me exilando na França. Saída tumultuada, repentina, sem dinheiro. Tornada possível pela solidariedade de amigos, entre eles meu querido Evandro Lins e Silva, a quem tenho a honra de suceder, mergulhada na tristeza de não tê-lo agora aqui entre nós, com sua inteligência luminosa, seu sorriso brincalhão, sua afetividade contida e sempre solidária. Como comprovei nessa ocasião da partida para o exílio. Além de já ter antes me oferecido, num momento de especial dureza econômica, um apartamento seu para que eu e meu marido morássemos de graça com nosso filho pequenino, nessa oportunidade nos ajudou a poder viajar com alguma reserva financeira para os dias incertos, comprando alguns de nossos móveis – com o generoso argumento de que era justamente o que Dona Musa queria para sua sala.
Em Paris, mais uma vez se estendeu para mim a mão sensível e amiga de um futuro acadêmico. Meu mestre Celso Cunha disfarçou o favor que me fazia, me saudando como se fosse eu um presente caído dos céus para auxiliá-lo, dividindo com ele suas funções e permitindo que tivesse mais tempo livre para explorar a cidade, seus bistrôs e livrarias, seus tesouros artísticos: levou-me para ser sua assistente na Sorbonne, e depois me indicou para herdar o cargo quando voltou ao Brasil.
Daí por diante, os fios foram se multiplicando e não é mais o caso de evocá-los um por um, embora não possa deixar de lembrar carinhosamente meu convívio e amizade com Darcy Ribeiro e Antonio Callado, de quem tenho tantas saudades. Eu então começava a escrever, publicava contos infantis na revista Recreio, preparava minha tese sobre Guimarães Rosa, orientada por Roland Barthes e extra-oficialmente complementada por meu queridíssimo Antônio Houaiss, então mentor e amigo já de muitos anos, e que em suas visitas regulares a Paris para o projeto da Enciclopédia Delta Larousse ia acompanhando de perto meu trabalho. Conversamos muito, do outro lado do Atlântico, quando ele se candidatou e foi eleito para a Academia. Talvez tenha sido essa a primeira vez que me ocorreu que podia ser interessante alguém pretender pertencer ao quadro da ABL e estar aqui entre tantos nomes tão significativos de nossa cultura. Mas eu estava apenas começando e não achei que fosse para mim.
No entanto, aqui estou.
Caracterizados esses fios que, como o novelo de Ariadne, foram me mostrando um possível caminho, passo a examinar o destino a que estou chegando – esta Cadeira número 1. É de praxe que cada acadêmico, ao tomar posse, recorde seus antecessores. Até mesmo para mantê-los vivos na memória da sociedade que tem esta Casa como sua instituição cultural mais antiga e respeitada. No caso desta Cadeira, por exemplo, há uma noção bastante generalizada, várias vezes encontrada na imprensa, de que ela teria sido ocupada por Machado de Assis – por ser a número 1. Nada disso. Seu primeiro ocupante foi o poeta maranhense Luís Murat, parnasiano fortemente impregnado de romantismo, admirador de Victor Hugo, erudito, republicano militante, exaltado, de temperamento facilmente exasperável, um homem vibrante, envolvido com política na juventude, e, mais tarde, místico inflamado. Toda vez que fiz essa correção, houve uma certa surpresa. Mas como? Não foi Machado de Assis seu primeiro ocupante? Então ele era o patrono? Não. O patrono, escolhido por Murat, foi Adelino Fontoura. Quem? Pois é... Não encontrei quem, ao ouvir essa correção, identificasse o nome. De minha parte, confesso que também mal havia ouvido falar nele, vaga lembrança de algum poema numa antologia. Pois descobri coisas interessantes na magnífica biblioteca desta nossa Academia, aliás aberta ao público para ser utilizada e fruída.
Ao suceder a Luís Murat, o historiador Afonso de Taunay deveria fazer também o elogio de Adelino Fontoura, o patrono desta cadeira. Não o conseguiu, por mais que fosse um homem afeito às pesquisas em documentos e arquivos, e diretor de museu. Limitou-se a fazer uma ironia disfarçada de modéstia, chegando a sugerir a criação de uma cadeira número zero para aqueles ilustríssimos desconhecidos que estivessem numa academia sem ao menos uma magríssima biografia, aqueles sobre os quais nada se descobre em fatigantes buscas em enciclopédias e dicionários literários, “nem a mais pequenina referência, contrariadora do seu como irremediável anonimato”. Realmente, nem Sílvio Romero, nem José Veríssimo, nem Ronald de Carvalho, os grandes críticos historiadores da nossa literatura até então, se referiram a Adelino Fontoura. Por maiores que fossem os méritos e esforços de Afonso de Taunay, o historiador não conseguiu elogiá-lo. Só graças a Múcio Leão, quando chegou a vez do ocupante seguinte, foi possível ir mais além e Ivan Lins pôde registrar que para Adelino Fontoura “a Academia tem sido, sem dúvida, o seguro de vida literária”. Essa observação se explica pelo fato de que é ele o único patrono da Academia que não deixou nenhum livro publicado, apenas poemas esparsos na imprensa e uma impressão muito viva em seus contemporâneos. Morreu aos 25 anos, antes de romper o ineditismo.
Mas é justamente isso o que eu acho interessante nesse tributo. Na escolha que Luís Murat fez do nome de Adelino Fontoura – e em sua aceitação por seus pares fundadores da Academia – imprime-se uma dupla marca que define esta instituição em seu nascedouro: a ousadia de Murat e a juventude de Adelino. Duas características que, em geral, não ficaram associadas à imagem pública corrente da Academia, preferencialmente pintada como um rochedo conservador inabalável. Mas também duas características que, para mim, estão indissoluvelmente ligadas a meu primeiro contato com ela, como já evoquei – a lembrança de Alceu Amoroso Lima a contar como na juventude invadira esta Casa carregando Graça Aranha nos ombros, em protesto contra o espírito acadêmico. E foi ainda Dr. Alceu quem nos lembrou que “a maior lição que (Machado de Assis) nos deixou é que o grande inimigo das academias é o academicismo. Ninguém menos acadêmico que Machado de Assis. O que ele nos ensina, por sua obra e por sua personalidade, que transcendem as escolas literárias e as dissidências políticas entre irmãos, é que devemos entrar para as academias, contanto que elas não entrem em nós”.
E mais, diz ele:
“As academias são como as armas. Só devem ser utilizadas em defesa. Em defesa, antes de tudo, do patrimônio cultural de um povo. Devem representar a memória estética, histórica e intelectual da nacionalidade. A oposição entre gerações faz parte essencial do dinamismo mais sadio dos povos. O choque entre gostos e escolas estéticas, por sua vez, é que alimenta a força criadora das vocações intelectuais. Daí ser o sarcasmo antiacadêmico um dos sinais mais sadios da Intelligentsia nacional. [...] É bom que assim seja, pois não há nada mais estimulante do que o epigrama para punir a mediocridade e a vaidade, que são sempre os demônios mais insidiosos das instituições acadêmicas. Ai de nós, porém, se não houver quem preserve os tesouros intelectuais do passado contra a fúria iconoclasta do presente.”
Mas se estou podendo hoje pinçar esses traços de ousadia e juventude nesta cadeira, evocando seu patrono Adelino Fontoura, devo-o (como já mencionei) a seu terceiro ocupante, Ivan Lins, um humanista raro, de obra vasta e multifacetada, homem de imensas virtudes morais e dotes intelectuais, insuperável “no gosto dos estudos especializados e na ojeriza `as improvisações passageiras” – como assinalou Rodrigo Octavio ao recebê-lo nesta Casa. Nas palavras justas de seu sucessor Bernardo Élis, “seus livros abordam setores culturais a que nós luso-brasileiros – tão práticos – não somos muito afeitos, justamente por não frequentá-los”, o que confere a Ivan Lins um lugar à parte na vida espiritual brasileira.
Um lugar muito especial em nossas letras merece também o autor dessa observação, seu sucessor Bernardo Élis. Convido os presentes a fazer um teste, para comprová-lo: o do contato direto com o texto. Leiam um conto seu, qualquer um. Larguem pelo meio, se forem capazes. Experimentem tentar esquecê-lo. Não conseguirão. A linguagem, a paisagem, a força e a verdade dos personagens do goiano Bernardo Élis passam a fazer parte permanente da bagagem do leitor. Com ele, estamos diante desse raro fenômeno com que às vezes a literatura nos brinda – sentimos um arrepio na alma enquanto nos olhamos num espelho. Espelho que reflete nossa verdade social de modo irretocável. Calafrio na alma brasileira, captada na essência de nossa língua, que ele registra no difícil equilíbrio do fio da navalha entre o emprego popular e a norma culta, enfrentando com coragem esse desafio exigente com que cada um de nossos ficcionistas tem que se deparar. Não surpreende que Aurélio Buarque de Holanda tenha assinalado que, de tão numerosos, não conseguiria apontar na expressão literária de Bernardo Élis cada passo que lhe acendeu encanto ou até deslumbramento. Nem que Guimarães Rosa, tomado pelo entusiasmo da releitura de um conto de Élis, tenha escrito: “Ninguém, em país nenhum, nenhum tempo, parte alguma, escreveu coisa melhor.” Ao assinalar a riqueza de seu currículo, seu sucessor nesta Casa, Evandro Lins e Silva, comentou que dificilmente se encontraria intelectual com uma atuação igual à sua, com o reconhecimento ainda em vida da excepcionalidade do seu preparo, da sua competência e da sua criatividade.
Tais observações podem igualmente servir de ponto de partida para a celebração do próprio Dr. Evandro. Impecável exemplo de cidadão, seja atuando como advogado, procurador-geral da República, ministro de Estado, ou ministro do Supremo Tribunal Federal, foi sempre um homem capaz de enxergar os pequenos e de oferecer sua plena capacidade profissional e intelectual ao grandioso serviço da nação. Mas também foi por ela amplamente reconhecido, nas homenagens dos presidentes e no carinho dos humildes, nas honrarias que mereceu e recebeu incessantemente, até o fim da vida, em que o último ato de que participou foi para ser empossado como Conselheiro da República. Sempre atuante, participante, em generosa disponibilidade para as grandes causas. Sempre um modelo. Logo após o atentado de 11 de setembro de 2001, escreveu uma das mais brilhantes reflexões que a imprensa publicou sobre esse grave momento internacional, chamando a atenção para a falta de estadistas no mundo contemporâneo – preciosos por sua atuação e sua exemplaridade, marcos essenciais de referência para os povos. Pouco depois, ao ser nomeado Conselheiro da República, escrevi na revista virtual No.com um texto em que o saudava, relembrava esse artigo e destacava a também necessária exemplaridade dos magistrados, num padrão a que ele e alguns outros nos haviam acostumado e cuja carência tantas vezes sentimos em nossos dias. Ele me telefonou, com a elegância de sempre, para trocarmos ideias sobre isso, e, mais uma vez, constatei o imenso privilégio que tive na vida por tê-lo conhecido de perto e podido conviver com ele.
Essa convivência amiga durante mais de trinta anos talvez prejudique um pouco minha isenção para falar de Evandro Lins e Silva com objetividade, porque a emoção insiste em se misturar com a memória e se somar à justificada admiração pelo grande brasileiro. Mas é que, para mim, este imenso respeito pelo jurista e homem público se teceu dentro do clã, com fios quase domésticos. Fosse ouvindo seus palpites em minhas conversas com minha querida Dona Musa, fosse ponderando suas sugestões para as pecinhas que Patrícia, Ana Teresa, Inês e eu ensaiávamos com as crianças da família para o Natal em sua casa, fosse nas discussões domingueiras, comentando as notícias da semana – que muitas vezes nem chegavam a sair nos jornais censurados – à sombra do toldo em seu jardim no Alto da Boa Vista, no final dos anos 60 e início dos 70... Nessas ocasiões, ouvi de Evandro Lins e Silva conceitos que nunca mais vou esquecer, sobre a excelência do júri popular, sobre a necessidade de se humanizar o direito penal e abolir a pena de prisão, sobre o risco de o excesso de lei atrapalhar a justiça, sobre a importância crucial da bondade para um juiz – sinal de verdadeira inteligência, segundo ele. Muitas vezes, começando a engatinhar em minhas tentativas de ficcionista, interessada nos meandros da alma humana, eu puxava conversa sobre crimes passionais, e percebia o cuidado com que Dr. Evandro respeitava os diferentes lados em jogo em cada questão, a importância de se apurar o fato e seu contraditório para buscar a justiça, a insistência no direito de cada um. O fato é que, para mim, o grande jurista não era apenas um figurão distante e abstrato. Era alguém próximo, vivo, entusiasmado e divertidíssimo.
Tinha sido amigo de meu pai na juventude, seu companheiro em atividades políticas e no jornalismo. Depois, como durante alguns anos uma de minhas irmãs foi casada com um filho seu, esses laços se estreitaram. Devo muitíssimo à sua generosidade, como já relatei. Conto agora, aqui, algo que também lhe devo e apenas os íntimos sabem: inspirei-me nele para criar um personagem mencionado de passagem em meu romance Tropical Sol da Liberdade, contracenando com outro amigo, hoje também escritor premiado por esta Casa. Ao ler o livro e se reconhecer, fez pequenas correções de detalhes factuais, mas achou divertido. Várias vezes falamos de livros e trocamos impressões de leituras. Era como se as recomendações literárias fossem parte do meu papel em nossa amizade, já que estava acostumado a que a literatura lhe chegasse por mãos femininas. Tinha recordações muito nítidas e cálidas das histórias contadas por Dona Maria do Carmo, sua mãe, uma mulher que estava sempre com um livro nas mãos e reservava toda tarde um momento sagrado para sua leitura de romances. Além dessa lembrança, toda a vida, tivera nessa área a preciosa assessoria da esposa. Uma das razões que faziam de Dona Musa uma mulher interessantíssima, para mim, além de seu espírito rápido, sua personalidade marcante e sua generosidade, é que foi uma das mais completas leitoras de literatura que conheci. Atenta, voraz, exigente, crítica, sempre atualizada, capaz de comparar com criatividade e humor, tinha excelente memória para pinçar a citação correta e aproximar diferentes momentos leitores. Conhecia Proust como poucos, movia-se completamente à vontade pela obra dos clássicos (sobretudo franceses e portugueses) e ficava empolgadíssima ao descobrir um contemporâneo digno de entrar em seu panteão literário – lembro muito bem como suas filhas, ela e eu vivenciamos a descoberta de Cem Anos de Solidão, recém-saído entre nós. Não é de se admirar, portanto, que personagens e situações vindas da literatura tivessem inspirado várias das defesas que Evandro Lins e Silva fez no tribunal do júri, desde o Otelo de sua estreia e os ecos de Zola e Eça num rumoroso caso do Crime do Padre de Maria da Fé, até mais recentes descobertas de argumentos contra a pena de morte numa leitura de Leonardo Sciacia. Também em suas incursões pela vida pública a bagagem literária lhe foi preciosa. Veio somar-se a sua profunda cultura jurídica, sua vasta experiência e à leitura atenta dos jornais, hábito trazido do tempo em que trabalhou na imprensa, responsável pelo fato de estar sempre ligadíssimo ao dia-a-dia, absolutamente antenado com o momento presente.
Nada disso lhe serviria, entretanto, se todas essas qualidades não estivessem solidamente ancoradas num fundamento ético monolítico, a embasar todas as suas ações em prol da nação e da cidadania, algo que norteava sua trajetória com uma visão de certo e errado, mais ampla do que limites circunstanciais, conjunturais ou partidários. Nunca foi seletivo no combate ao arbítrio, enfrentando-o em todas as suas manifestações. Contra o Estado Novo, foi da Esquerda Democrática, fundador da União Democrática Nacional – UDN, e, mais tarde, do Partido Socialista Brasileiro. E em todos os cargos públicos que ocupou – sempre sem pleiteá-los – como bem assinalou Afonso Arinos, filho, “exerceu-os em estado de absoluta consciência cívica, sempre voltado à ética e ao bem comum”. No Governo Goulart, foi sucessivamente procurador-geral da República, chefe da Casa Civil e ministro das Relações Exteriores. No Itamarati, consolidou a política externa independente (iniciada por Afonso Arinos, pai, em sua breve primeira passagem pela chancelaria) e se orgulhava de que, em sua gestão, pela primeira vez o Brasil teve a oportunidade de votar na ONU contra a pretensão portuguesa de manter as colônias. Com efeito, só então o representante brasileiro Antônio Houaiss pôde realizar um antigo anseio de nossos diplomatas democratas e, cumprindo as instruções precisas da Secretaria de Estado, deu o voto brasileiro nesse sentido – o que depois lhe custaria a carreira de diplomata ao ser cassado pelo regime militar. Mas nem a amizade de Dr. Evandro pelo Presidente Goulart, nem as afinidades com a política das reformas de base do governo impediram que Lins e Silva mantivesse íntegras a inteligência e a clareza de análise daquilo que era essencial. Como bem assinalou Fabio Konder Comparato, sempre “Evandro Lins e Silva soube distinguir os interesses nacionais dos meramente estatais ou governamentais, mostrando por essa forma, a governantes e políticos, que a fidelidade aos interesses da nação há de ter precedência sobre a fidelidade ao governo de onde provieram as nomeações para esses cargos públicos”. No final da gestão Goulart, por exemplo, apoiava a política econômica do Ministro da Fazenda Carvalho Pinto, que considerava realista e conduzida com segurança, mas era muito mal vista pela esquerda. Encerrou, então, o Dr. Evandro sua participação no governo e aceitou a vaga que lhe era oferecida no Supremo Tribunal Federal. Na mais alta corte do país, iria defender com coragem a Constituição e o direito, marcando sua atuação pela nitidez e firmeza com que sempre enfrentou os poderosos. Não é de admirar que, quando em dezembro de 1968 o Ato Institucional n.o 5 atropelou essa Constituição, uma das primeiras medidas dos militares tenha sido a aposentadoria de alguns ministros do Supremo, entre eles Evandro Lins e Silva. Isso não impediu que ele continuasse atuando como advogado e no júri, de volta ao escritório que sempre dividira com o irmão Raul, companheiro de todas as horas que ele acabava de perder justamente nesse momento. Ou que, quase um quarto de século mais tarde, somasse sua ousadia e sua juventude às dos estudantes caras-pintadas que tomaram as ruas e levasse a bom termo, com toda sua competência, a tarefa de defender a dignidade da nação no processo de impeachment do Presidente Collor. Para isso, chamou a si essa responsabilidade, conferida por “um mandato popular invisível”. Foi o coroamento de sua carreira, a síntese do advogado e do homem público, o ato que graças à televisão o tornou conhecido em todos os lares do país.
Curiosamente, em nosso convívio, foi só depois dessa consagração pública e de seu recolhimento posterior (tão relativo que incluiu sua eleição e presença atuante nesta Academia), que eu tive a oportunidade de ter uma forma de relação profissional com Dr. Evandro. Aliás, envolvendo também o nome de um grande escritor, encantador e modelo de tantas gerações de brasileiros, sem dúvida um dos mais célebres e respeitados ocupantes da Cadeira número 41 desta Casa – como às vezes é chamada aquela que não chega a ser preenchida.
No final de 1997 fui processada, juntamente com minha editora, pelos herdeiros de Monteiro Lobato, que se sentiram atingidos por meu livro Amigos Secretos, que homenageava o escritor paulista, entre outros. Chegaram a me ameaçar de passar da área cível para a do direito penal. Procurei meu irmão e advogado, André Martins, e falei também com meu querido amigo e defensor nos tempos difíceis, Técio Lins e Silva. Nessas idas e vindas, acabei conversando também com Dr. Evandro, tio e vizinho de Técio no escritório, onde também a esta altura estagiava Tiago Lins e Silva, meu sobrinho. E meu velho amigo quis olhar o processo. Daí a dias, ligou-me para conversar, entusiasmado com as possibilidades da defesa que construía. Atendendo a um pedido seu, levei-lhe meu livro, a obra de Lobato e exemplos de homenagens semelhantes feitas pelo próprio Lobato a outros autores, e que me haviam servido de modelo – como Peter Pan, por exemplo. Dr. Evandro os leu com presteza e – segundo me disse – com encantamento. Agradeceu-me, como se fosse um privilégio, a oportunidade de mergulhar no mundo da literatura infantil nesse momento de sua vida, pela primeira vez podendo apreciar toda a excelência artística do gênero e a riqueza de suas diversas camadas de significado. E reiterou o conselho do Técio: “Deixe que saia do cível e venha para o penal. Aí nós defendemos.” Por conta disso, começou a rascunhar as linhas mestras da defesa – tecnicamente irrespondível, definitiva, brilhante, como era de se esperar. E com uma reflexão muito fecunda sobre o direito à cultura e a abrangência da propriedade intelectual. Os advogados da editora, porém, preferiram entrar num acordo que suspendeu a circulação do livro, e a história ficou por aí. Nunca mais voltamos ao assunto.
Meu amigo e conselheiro, não chegou a ser meu advogado. Continuou apenas meu amigo e conselheiro. Um grande amigo. O conselheiro de nós todos, e da República, reconhecido pelos chefes da nação. Como todos nós aqui, sinto muita falta dele, de sua orientação clara e corajosa, nítida e justa. E é na reverberação da ética inflexível e exemplar de brasileiros como meu pai e ele, que procuro moldar minha atuação.
Assim, como todos nós, aplaudi mentalmente a cena que me trouxe a televisão, quando o Presidente Fernando Henrique empossou Evandro Lins e Silva como Conselheiro de República – da mesma forma que aplaudíramos semanas antes quando o Presidente Lula, recém-eleito, foi visitá-lo em casa e lhe prestar o tributo devido aos sábios tutelares da tribo, em gesto que dignifica quem presta a homenagem e quem a recebe. A nação mal podia imaginar que, enquanto assistia ao noticiário da posse, Dr. Evandro já estava hospitalizado, em consequência da queda que o levaria. Poucos dias depois, voltando de seu sepultamento em estado de orfandade, passei uma noite de sono agitado. Acordei de madrugada, recordando um sonho de extraordinária nitidez em que ele se despedia de mim e no final perguntava: “Gostou de minha defesa?”
Tinha vontade de responder, de dizer bem alto que sim, gostara, de todas as defesas que ele fez de todos nós. Mas não sabia a que se referia meu inconsciente, nem qual o sentido do sonho. Teria que esperar ainda algumas horas. No final dessa mesma tarde, recebi um telefonema surpreendente. Passados cinco anos da ação, de repente, do nada, o representante dos herdeiros de Monteiro Lobato me procurava justamente nesse dia para dizer que eles tinham mudado de ideia, reconheciam que haviam sido mal orientados na ocasião, que não havia motivo para o processo, e me comunicavam que decidiram permitir que meu livro fosse novamente publicado e sua circulação restabelecida. Desliguei o telefone emocionada. Com a certeza de que a justiça fora feita, numa homenagem coincidente.
Por tudo isso, encerro esta evocação com palavras que, mais que de tributo, são de carinho e agradecimento a tudo o que Evandro Lins e Silva fez por todos nós. E que se ampliam para rapidamente incluir tantos outros no meu coração, que me ajudaram a estar aqui agora, a começar por meus confrades nesta Casa, que hoje abrem as portas para me acolher. E também a meus pais, Dinah e Mario Martins, mapa e bússola de seres humanos íntegros, na certeza do amor e do respeito aos valores que realmente devem contar. Também agradeço a meus filhos, Rodrigo, Pedro e Luísa, amor que não cabe em palavras, e a seus pais Álvaro Machado e Lourenço Baeta, que pela vida afora aguentaram esta mãe e mulher escritora, desligada no dia-a-dia, difícil, exigente, independente, inflamável. A meus irmãos e irmãs, companheiros de ninhada, na certeza da cumplicidade. A meus sobrinhos e sobrinhas, em cujo delicioso convívio encontro amizade e estímulo vivos e raros. Aos médicos cuja competência me permitiu sobreviver, para estar aqui neste momento e para a alegria de conviver com meus netos, Henrique e Isadora. A meus muitos e sucessivos cunhados e cunhadas que foram virando meus amigos. E a meus amigos mesmo, resultado de uma vida partilhada.
Não preciso dizer que tê-los hoje ao meu lado é uma imensa alegria. É isso o que faz a festa, como sabem. Festa de uma glória inimaginada, por ser recebida nesta Casa ao lado de nomes tão expressivos de nossa cultura, consagrados pelo tempo, agora que vai chegando a vez de minha geração. E nesta hora de emoção, passo a palavra final a um grande poeta e romancista desta geração, a quem me orgulho de ter tido tantas vezes como porta-voz ao longo da vida e que, mais uma vez, fala por mim num momento intenso. Agora, na Academia Brasileira de Letras, agradeço a Chico Buarque de Holanda por introduzir a necessária humildade neste momento, ao lembrar que a glória não passa de uma companheira das rugas e de um efeito do tempo que nos carrega:
Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela.
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela.
Modelando o artista ao seu feitio,
O tempo, com seu lápis impreciso,
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapeso de um sorriso.
Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta.
O velho cantor sobe ao palco.
Apenas abre a voz, e o tempo canta.
Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino.
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito.
No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito.