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Álvares de Azevedo

SONETO

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti as noites eu velei chorando,
Por ti nos sonhos morrerei sorrindo!

 

HINOS DO PROFETA
               I
UM CANTO DO SÉCULO

        Spiritus meus attenuabitur, dies mei breviabuntur, 
                 et solummihi superest sepu
                                                                                                                                                             
                                      Jó

Debalde nos meus sonhos de ventura
Tento alentar minha esperança morta
      E volto-me ao porvir;
A minha alma só canta a sepultura,
Nem última ilusão beija e conforta
     Meu suarento dormir...

Debalde! que exauriu-me o desalento:
        A flor que aos lábios meus um anjo dera
Mirrou na solidão...
Do meu inverno pelo céu nevoento
Não se levantará nem primavera
        Nem raio de verão!

Invejo as flores que murchando morrem,
E as aves que desmaiam-se cantando
         E expiram sem sofrer...
As minhas veias inda ardentes correm,
E na febre da vida agonizando
         Eu me sinto morrer!

Tenho febre – meu cérebro transborda...
Eu morrerei mancebo, inda sonhando
         Da esperança o fulgor!
Oh! cantemos ainda! a última corda
Inda palpita.... morrerei cantando
        O meu hino de amor!

Meu sonho foi a glória dos valentes,
De um nome de guerreiro a eternidade
        Nos hinos seculares:
Foi nas praças, de sangue ainda quentes,
Desdobrar o pendão da liberdade
        Nas frontes populares!

Meu amor foi a verde laranjeira
Cheia de sombra, à noite abrindo as flores
        Melhor que ao meio-dia:
A várzea longa – a lua forasteira
Que pálida como eu, sonhando amores,
        De névoa se cobria.

Meu amor foi o sol que madrugava,
O canto matinal dos passarinhos
        E a rosa predileta...
Fui um louco, meu Deus! quando tentava
Descorado e febril manchar nos vinhos
        Meus louros de poeta!

Meu amor foi o sonho dos poetas– 
O belo – o gênio – de um porvir liberto
        A sagrada utopia.
E à noite pranteei como os profetas,
Dei lágrimas de sangue no deserto
        Dos povos à agonia!

Meu amor!... foi a mãe que me alentava,
Que viveu e esperou por minha vida
        E pranteia por mim...
E a sombra solitária que eu sonhava
Lânguida como vibração perdida
        De roto bandolim...

E agora o único amor... o amor eterno
Que no fundo do peito aqui murmura
        E acende os sonhos meus,
Que lança algum luar no meu inverno,
Que minha vida no penar apura,
        É o amor de meu Deus!

É só no eflúvio desse amar imenso
Que a alma derrama as emoções cativas
       Em suspiros sem dor:
E no vapor do consagrado incenso
Que as sombras da esperança redivivas
       Nos beijam o palor!

Eu vaguei pela vida sem conforto,
Esperei minha amante noite e dia
       E o ideal não veio...
Farto de vida, breve serei morto...
Não poderei ao menos na agonia
      Descansar-lhe no seio!

Passei como Don Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
      E ninguém me escutou...
Oh! nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel, nas longas despedidas....
      Meu Deus! ninguém me amou!

Vivi na solidão – odeio o mundo,
E no orgulho embucei meu rosto pálido
      Como um astro nublado...
Ri-me da vida – lupanar imundo
Onde se volve o libertino esquálido
       Na treva... profanado!

Quantos hei visto desbotarem frios
Manchados de embriaguez da orgia em meio
       Nas infâmias do vício!
E quantos morrerão inda sombrios
Sem remorso dos negros devaneios...
       Sentindo o precipício!

Quanta alma pura, e virgem menestrel
Que adormeceu no tremedal sem fundo,
      No lodo se manchou!
Que liras estaladas no bordel!
E que poetas que perdeu o mundo
     Em Bocage e Marlowe!

Morrer! ali na sombra – na taverna
A alma que em si continha um canto aéreo
     No peito solitário!
Sublime como a nota obscura, eterna,
Que o bronze vibra em noites de mistério
     No escuro campanário!

Ó meus amigos, deve ser terrível
Sobre as tábuas imundas, inda ebrioso
     Na solidão morrer!
Sentir as sombras dessa noite horrível
Surgirem dentre o leito pavoroso...
     Sem um Deus para crer!

Sentir que a alma, desbotado lírio,
Num mundo ignoto vagará chorando
     Na treva mais escura...
E o cadáver sem lágrima, sem círio,
Na calçada da rua, desbotando,
    Não terá sepultura!

Perdoa-lhes, meu Deus, o sol da vida
    Nas artérias inflama o sangue em lava
E o cérebro varia...
O século na vaga enfurecida
Mergulha a geração que se acordava...
   E nuta de agonia!

São tristes deste século os destinos!
Seiva mortal as flores que despontam
   Infecta em seu abrir 
–E o cadafalso e a voz dos Girondinos
Não falam mais na glória e não apontam
   A aurora do porvir!

Fora belo talvez, em pé, de novo
Como Byron surgir – ou na tormenta
   O homem de Waterloo:
Com sua idéia iluminar um povo,
Como o trovão da nuvem que rebenta
   E o raio derramou!

Fora belo talvez sentir no crânio
A alma de Goethe, e resumir na fibra
   Milton, Homero e Dante –
Sonhar-se num delírio momentâneo
A alma da criação e o som que vibra
   A terra palpitante!

Mas ah! o viajor nos cemitérios
Nessas nuas caveiras não escuta
   Vossas almas errantes...
Do estandarte medonho nos impérios
A morte, leviana prostituta,
   Não distingue os amantes!

Eu, pobre sonhador – eu, terra inculta
Onde não fecundou-se uma semente,
   Convosco dormirei:
E dentre nós a multidão estulta
Não vos distinguirá a fronte ardente
   Do crânio que animei...

Ó morte! a que mistério me destinas?
Esse átomo de luz que inda me alenta,
   Quando o corpo morrer,
Voltará amanhã aziagas sinas
Na terra numa face macilenta
   Esperar e sofrer?

Meu Deus! antes, meu Deus! que uma outra vida,
Com teu braço eternal meu ser esmaga
   E minha alma aniquila:
A estrela de verão no céu perdida
Também às vezes teu alento apaga
   Numa noite tranquila!...

 

LEMBRANÇA DE MORRER

                                                              No more! o never more!
                                                                         Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro – 
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha Virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. 

–Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

 

PEDRO IVO

Tristes coroas, sob as quais às vezes
Está gravada uma inscrição d’infâmia !

Alexandre Herculano

Perdoai-lhe, Senhor! ele era um bravo !
Fazia as faces descorar do escravo
Quando ao sol da batalha a fronte erguia,
E o corcel gotejante de suor
Entre sangue e cadáveres corria!
O gênio das pelejas parecia...
        Perdoai-lhe, Senhor!

Onde mais vivo em peito mais valente
Num coração mais livre o sangue ardente
Ao fervor desta América bulhava?
Era ura leão sangrento que rugia:
Da guerra nos clarins se embriagava —
E vossa gente — pálida recuava
      Quando ele aparecia!

Era filho do povo — o sangue ardente
Às faces lhe assomava incandescente
Quando cismava do Brasil na sina...
Ontem — era o estrangeiro que zombava ,
Amanhã — era a lâmina assassina,
No cadafalso a vil carnificina
      Que em sangue jubilava!

Era medonho o rubro pesadelo
Mas nas frontes venais do gênio o selo.
Gravaria o anátema da história!
Dos filhos da nação a rubra espada
No sangue impuro da facção inglória
Lavaria dos livres na vitória
      A mancha profanada!

A fronte envolta em folhas de loureiro
Não a escondemos, não!... Era um guerreiro!
Despiu por uma ideia a sua espada!
Alma cheia de fogo e mocidade,
Que ante a fúria dos reis não se acobarda
Sonhava nesta geração bastarda
      Glórias... e liberdade!

Tinha sede de vida e de futuro;
Da liberdade ao sol curvou-se puro
E beijou-lhe a bandeira sublimada:
Amou-a como a Deus, e mais que a vida
Perdão para essa fronte laureada!
Não lanceis à matilha ensanguentada
      A águia nunca vencida!

Perdoai-lhe, Senhor! Quando na história
Vedes os reis se coroar de glória
Não é quando no sangue os tronos lavam
E envoltos no seu manto prostituto
Olvidam-se das glórias que sonhavam!
Para esses — maldição! que o leito cavam
      Em lodaçal corrupto!

Nem sangue de Ratcliffs o fogo apaga
Que as frontes populares embriaga,
Nem do herói a cabeça decepada
Imunda, envolta em pó, no chão da praça,
Contraída, amarela, ensanguentada,
Assusta a multidão que ardente brada
      E tronos despedaça!

O cadáver sem bênçãos, insepulto,
Lançado aos corvos do ervaçal inculto,
A fronte varonil do fuzilado
Ao sono imperial co’os lábios frios
Podem passar no escárnio desbotado —
Ensanguentar-te a seda ao cortinado
      E rir-te aos calafrios !

Não escuteis essa facção impia
Que vos repete a sua rebeldia...
Como o verme no chão da tumba escura
Convulsa-se da treva no mistério :
Como o vento do inferno em água impura
Com a boca maldita vos murmura:
      “Morra! salvai o império!”

Sim, o império salvai! mas não com sangue!
Vede — a pátria debruça o peito exangue
Onde essa turba corvejou , cevou-se!
Nas glórias, no passado eles cuspiram!
Vede — a pátria ao Bretão ajoelhou-se,
Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!
      Eles a prostituíram!

Malditos! do presente na ruína
Como torpe, despida Messalina
Aos apertos infames do estrangeiro
Traficam dessa mãe que os embalou!
Almas descridas do sonhar primeiro
Venderiam o beijo derradeiro
      Da virgem que os amou!

Perdoai-lhe, Senhor! nunca vencido,
Se em ferros o lançaram foi traído!
Como o Árabe além no seu deserto,
Como o cervo no páramo das relvas
Ninguém os trilhos lhe seguira ao perto
      No murmúrio das selvas !

Perdão ! por vosso pai! que era valente,
Que se batia ao sol co’a face ardente,
Rei — e bravo também! e cavaleiro!
Que da espada na guerra a luz sabia
E ao troar dos canhões intumescia
      O peito de guerreiro!

Perdão, por vossa mãe! por vossa glória!
Pelo vosso porvir e nossa história!
Não mancheis vossos louros do futuro!
Nem lisonjeiro incenso a nódoa exime!
Lava-se o poluir de um leito impuro —
Lava-se a palidez do vício escuro —
      Mas não lava-se um crime!

 

MEU SONHO

Eu: 

Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O fantasma:

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...

 

SE EU MORRESSE AMANHÃ

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!