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Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)

O CRÍTICO LITERÁRIO

Considero, a crítica literária não como uma atividade parasitária da literatura de criação e a ela contraposta, mas como uma atividade autônoma, apenas distinta da atividade criadora, mas cheia de contatos com ela e representando, antes de tudo, uma concepção geral da existência. Nisso está, creio mesmo, a grande dignidade e a grande responsabilidade da crítica literária, que passa assim, de atividade subordinada, a esforço intelectual livre e original. E a esforço que implica não apenas em uma atitude analítica mas sintética; não apenas de comentário e julgamento, mas ainda de construção própria; não apenas de anotação aos livros estranhos, mas de visão própria; não apenas literária, mas vital. É uma visão geral da vida. Não uma visão livresca, nem só literária ou mesmo exclusivamente estética. Alguém que faz da crítica a sua vivência habitual (e julgo indispensável abrasileirar o espanholismo, tão justificável como existência, de existir) – não pode limitar-se a ver nela apenas um conjunto de anotações às atividades estéticas ou intelectuais dos outros. E a vida toda que tem diante dos olhos. Deve fazer da crítica um modo de exprimir sua própria visão total da vida. Tudo, portanto, entra no domínio da crítica, já que a atividade filosófica – contida na concepção geral da vida – compreende a universalidade das coisas, consideradas em suas relações mais gerais, em suas origens, em seus fins, em suas raízes. Filosofia, poesia e oração se tocam, intimamente, por essa insatisfação das aparências. O crente, o poeta e o filósofo querem vencer, por suas próprias forças, a servidão das superfícies e penetrar no âmago das coisas, dos segredos, dos silêncios... A crítica pertence a esse conjunto de atitudes no espírito. Criticar não é se prender a uma obra, a esta obra. Embora seja ela o seu objetivo direto e imediato, para vê-la bem, tem de ultrapassá-la. Deve procurar ver tudo. Ver o conjunto das coisas. Procurar o que fica antes, por trás ou depois da obra. Considerar o conjunto das obras. Nunca perder de vista a totalidade da existência. Não se confinar nunca no recanto da realidade em que se encontra nem confundir o particular com o geral. A estreiteza de espírito é, por isso mesmo, um dos maiores defeitos de um crítico literário. É a negação formal da natureza de sua própria atividade. Saber compreender, saber abrir-se ao real, ao real na sua infinita complexidade, eis um dos dons preliminares de todo crítico que se preza. A docilidade ao grande cântico das criaturas que se eleva de todos os recantos do universo, como uma sinfonia infinita em que cada objeto tem o seu papel a desempenhar, em que cada atitude tem a sua razão de ser, – é o passo inicial, é a disposição preliminar para que exista crítica literária e não apenas sectarismo crítico. É mister não confundir essa exigência preliminar e essencial à própria natureza da crítica literária, de ter olhos para tudo, – com o cepticismo ou com o ecletismo. O céptico é aquele que não crê em nada e para quem, portanto, são indiferentes todas as atitudes. O crítico céptico não se abre a toda realidade. Fecha-se a ela, por começar justamente negando tudo aquilo que seja afirmação, crença, substância, permanência, vendo todas as coisas como um cenário fugaz de figuras mais ou menos imaginárias. O eclético, ao contrário, crê em tudo; acha bons todos os pontos de vista; não faz distinções entre erro e verdade, entre bom e mau, entre sim e não. Colocando-se no extremo oposto ao céptico, acaba confundindo-se com ele. Pois tanto faz aceitar ou rejeitar tudo, indistintamente. No fim, o que há é uma confusão total, uma total indiferença e, portanto uma evasão da vida verdadeira, do drama do real. Abrir a sua inteligência a todo o real não é, portanto, excluir a discriminação das coisas e das pessoas. Longe disso. É justamente a condição indispensável para que essa discriminação se faça, não arbitrariamente ou na base de uma apreensão parcial da realidade, mas sobre um fundamento realmente inabalável. Abrir o espírito à compreensão de todas as coisas não é, portanto, equiparar tudo na linha de rejeição ou de aceitação total e indiscriminada. É justamente permitir que a apreciação crítica não seja uma anotação meramente subjetiva e unilateral, mas represente realmente uma visão geral das coisas.

Essa visão se faz, entretanto, como ficou dito de início – “através das obras alheias”.

Nisso se distingue, de modo formal, a crítica da filosofia. Não se trata de uma interpretação direta e sim indireta do universo. No primeiro caso teríamos uma atividade puramente filosófica, pois pensamos filosoficamente quando meditamos diretamente sobre a essência dos seres e suas manifestações. A crítica opera sempre de modo indireto. Seu objeto imediato não são os seres naturais e sim entidades acrescentadas à natureza. Não a esta e sim à arte e aos frutos de sua atividade é que se aplica o esforço intelectual do crítico. As obras de arte é que são o objeto imediato da crítica literária, como dissemos na segunda parte de nossa definição inicial. A elas se aplica diretamente a nossa atenção. Em torno delas gira toda a nossa atividade. A medida do valor do que fazemos, como críticos, é a obra alheia a que aplicamos a nossa inteligência. Por isso mesmo é que devemos sempre, nos críticos, distinguir a sua visão geral da vida e a sua visão particular das obras, através das quais o crítico elabora a sua filosofia. Sucede, mesmo, que essa atividade em relação às obras é a mais importante. Um crítico vale o que valem os seus julgamentos sobre as obras que analisa. Sua visão geral da vida é secundária em relação à sua apreciação das obras. Esta é que especifica a sua atividade. É a causa formal de sua condição de crítico. Digo isso, desde logo, para não pensarem que coloco as obras alheias como simples pretexto ou mesmo como simples instrumento de meditação filosófica de um crítico. Julgo que as duas atividades são complementares. Não há crítica, verdadeiramente, sem uma filosofia da vida e sem um julgamento das obras. Quando se dissociam as duas faces da mesma realidade, mutila-se também a nossa atividade. E passamos então, ou a relegar os autores e as obras para um plano secundário e portanto a sacrificar a atividade crítica precípua às nossas intenções metacríticas. Ou então, desdenhamos dessa metacrítica para nos prendermos apenas a uma espécie de positivismo crítico que é tão mutilante para a natureza total dessa posição do espírito, como é a exclusão sistemática da metafísica dentro de um sistema de ciências meramente experimentais ou naturais.

Visão da vida através das obras alheias, e destas através daquela, exige a crítica, portanto, uma perene retificação para não nos deixarmos vencer - nem pela tentação do abandono das obras e dos autores, em benefício de uma constante afirmação do nosso eu, da nossa própria visão das coisas - em que a obra alheia entre apenas como um estímulo inicial - nem pelo apagamento exagerado do nosso próprio eu, para nos confinarmos no papel de simples reflexos da obra alheia. No equilíbrio justo entre esses dois pólos está a linha mestra do nosso roteiro crítico mais autêntico.

De um lado a necessidade da visão dando à crítica a sua grandeza natural. “Where there is no vision, art and literature perish”. De outro o dever de colocar a obra estudada no centro imediato de sua cogitação e de não a converter em simples elemento ou pretexto para ilustrar um sistema de interpretação geral das coisas. A visão é, pois, indispensável para dar à atividade crítica todo o seu âmbito e o seu equilíbrio total. Mas a obra é que representa a realidade concreta e imediata com a qual o crítico tem de se haver. Por ela começa toda essa aventura apaixonada, caminho da crítica literária, em suas numerosas vicissitudes, que vamos tentar seguir, ao menos em suas linhas mestras, ao longo deste ensaio, fruto de vinte e cinco anos de experiência pessoal por essas regiões já tão exploradas.

A posição do crítico em face da obra alheia se processa em três fases, que podemos chamar de preparação, leitura e redação.

(O Crítico Literário, Alceu Amoroso Lima)

MACHADO DE ASSIS, O CRÍTICO

Perdeu-se, em Machado de Assis, um dos maiores dos nossos críticos. O conceito de Mário de Alencar, vendo na vocação crítica - "a feição principal do seu engenho", creio que pode ser perfeitamente ratificada. Entre as grandes famílias espirituais em que se podem distribuir os escritores, creio que duas das mais importantes são - a dos criadores e a dos críticos. Cada uma delas exige qualidades psicológicas particulares, se bem que desenvolvidas num terreno intelectual comum, pois a crítica literária é uma forma de criação, como esta participa também do gênio crítico. No criador predominam as qualidades de invenção, de fantasia, de vida, de originalidade, de síntese. No crítico, as de bom gosto, de cultura, de sensibilidade receptiva, de análise. O criador é um impulsivo, o crítico um receptivo. No criador trabalham as forças de inovação. No crítico as de apreciação. O criador é a verve , o crítico o "gosto", segundo a distinção de Diderot. Num predomina a afetividade, no outro a inteligência.

Como o ser humano é um só, não há criador que não seja um crítico latente, como não há crítico que não possua em si os elementos de um criador. O gênio literário é aquele que se move indistintamente nos dois terrenos e em ambos se sente perfeitamente à vontade.

Machado de Assis foi um crítico malogrado. Cultivou o gênero no alvorecer de sua vida literária. E logo, com tanta inclinação para o mesmo, que em 1865 pode traçar as páginas do Ideal do Crítico, que, de certo modo marcaram, não só um conceito modelar de crítica literária, mas ainda o padrão que o devia guiar toda a vida nas escassas mas expressivas produções que do gênero nos legou.

O que distinguia desde logo a sua concepção e a crítica era o alto apreço em que a tinha. E que manteve por toda a vida. Considerava a crítica, em 1865, como "a melhor obra dos nossos dias". E nunca, até morrer, teve uma palavra de desconsideração por uma atividade literária que abandonou, por ter optado pela vertente oposta, onde os críticos em geral são tratados com azedume. Parece, pois, ter mantido toda a vida o ideal crítico, que traçara na mocidade. A crítica era então, para ele, não apenas um devaneio ou uma apreciação acidental, mas uma atividade grava e indispensável, um gênero literário fundamental, uma verdadeira magistratura das letras. Não considerava a crítica como Anatole France - simples passeio do leitor pelas obras, mas como Sainte-Beuve. Não pugnava, nem pelo Impressionismo à maneira de Lemaire, nem pelo Determinismo crítico à maneira de Taine, que iria mais tarde florescer por aqui. O crítico era para ele um magistrado. Era um dos poderes na República das Letras. Para Machado o Poder Legislativo, nessa República, era representado pelos Clássicos, pela Tradição, pelas "leis poéticas", pela Gramática. O Poder Executivo eram os autores, em prosa ou verso. E o Poder Judiciário, os críticos. Da harmonia desses três poderes, não explícitos mas implícitos na estética do mestre, derivavam a paz e o progresso das letras.

O Poder Legislativo fornecia as leis fundamentais do Estado literário, sem as quais tudo seria desordem, anarquia e regresso. Machado sempre foi um inimigo da improvisação. Só lhe parecia fecunda a inspiração que obedecesse às regras da liberdade literária. Escrever bem, para ele, não era apenas obedecer ao movimento espontâneo de um talento inato. Era dominar a expressão, depurar o estilo, procurar a palavra justa, vencer o tumulto da criação sem lhe arrancar a espontaneidade. "Nem descuido, nem artifício: arte", eis o lema de sua arte poética. As qualidades que louvava no escritor eram sobretudo aquelas que se conquistavam com esforça e pertinácia. A perfeição - eis a medida de todo escritor que se preza. E esse amor da perfeição, fruto da vontade e do tempo, não é apenas um conselho mas um preceito. "Com os anos, adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição e o dever (sic) de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas idéias e sensações." Sempre censurou o desleixo da forma, e louvou o cuidado com ela. Sempre se insurgiu contra a preocupação de produzir muito, com sacrifício do polimento da obra. Não tolerava a poesia que desprezasse a disciplina do verso . Julgava mesmo que "a boa versificação é uma condição indispensável à poesia". O poeta devia disciplinar a sua inspiração, para melhor aproveitar os seus efeitos estéticos e expressivos. Era um cultor dos clássicos, que lia e citava freqüentemente em toda sua obra, até mesmo nos romances, e louvava aqueles que no trato com os velhos mestres da língua aprimoravam o seu instrumento literário e mesmo o seu talento expressivo. Esses participavam da "boa" doutrina literária e portanto os que desdenhavam dos clássicos pecavam contra as leis que devem governar a literatura. Louva, por exemplo, em Porto Alegre, "um espírito educado nas boas doutrinas literárias, robustecido por fortes estudos, afeito à contemplação dos modelos clássicos".

Não quer tampouco a linguagem afetada por solecismos ou derivando ao correr da pena e sim cuidada e polida, sem influências estrangeiras ou vulgares. "Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum. Defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa."

Vê-se, pois, que a literatura para Machado de Assis não era uma selva despoliciada, em que os escritores andassem à solta, guiados apenas por seus instintos poéticos, e sim uma cidade civilizada, em que a vida fosse mais apurada justamente pelo fato de dominarem, não a licença individual mas as leis da convivência humana. A beleza é um fruto da obediência à lei e não da anarquia e da revolta. O Poder Legislativo era, portanto, para Machado de Assis, um órgão fundamental da República Literária. Ele se mostrou sempre partidário da literatura dirigida e não do liberalismo artístico...

E a quem cabia a aplicação dessas leis poéticas elaboradas pelos Clássicos da língua, pela Tradição, pelo Bom Senso? Justamente aos críticos. Uma literatura só progride quando possui uma crítica que a policie e anime a produção literária. A ausência dessa crítica, na literatura brasileira do seu tempo (em 1859 ou em 1875) era o principal motivo do marasmo que ia pelos arraiais literários. Em 1865 escrevia - "Com que largos intervalos aparecem as boas obras! Como são raras as publicações seladas por um talento verdadeiro!...Quereis mudar essa situação aflitiva? Estabelecei a crítica". (...)

O Poder Executivo dessa bela República, de que o próprio Machado foi em nossa história literária a figura culminante, não era um Poder Arbitrário, que eliminasse ou escravizasse a si os dois outros poderes dessa Democracia Cultural. E sim o poder supremo, dentro da interdependência e da harmonia, segredo da prosperidade geral das letras. Os poetas e prosadores que constituíam esse Poder Supremo deviam pois respeito e obediência aos ditames dos dois poderes suplementares - as leis do bom gosto e as decisões da crítica honesta.

E essa devia guiar-se, na alta responsabilidade das suas funções por qualidades que Machado enumera desde o alvorecer de sua carreira literária e nunca repudiou, antes sempre aplicou, nas poucas vezes em que, no decorrer da sua vida de romancista-ensaísta, voltou a particar de passagem atividades críticas. Essas qualidades eram: a ciência e a urbanidade; a consciência e a perseverança; a coerência e a tolerância; a independência e a imparcialidade.

Foram essas as oito virtudes cardeais que Machado de Assis atribui ao exercício da magistratura crítica em sua República Literária. Podia-se com elas constituir, desenvolvendo-as à luz de toda a sua obra, um pequeno código de crítica, que até hoje conserva a sua atualidade, e merece ser aplicado. Louva essas qualidades como indispensáveis à "crítica fecunda", única que merece ingresso na Cidade das Letras, pois a "crítica fértil" é filha daquilo que ele chama - "as três chagas da crítica de hoje: o ódio, a camaradagem e a indiferença".

Machado de Assis foi um clássico, um delicado, um casto, um aplicado, nunca improvisou, nunca amou o sensacionalismo, o imoralismo, a hipérbole, e cultivou ao contrário o discernimento, o respeito às leis poéticas, às boas doutrinas literárias, ao bom gosto, à correção do estilo, à madureza da reflexão, à constância no estudo dos caracteres ou no polimento do vernáculo, a tudo enfim o que de bom indicou nesse código do bom gosto que está esparso em seus escassos mas fortes estudos críticos.

Foi o crítico malogrado, talvez porque sentiu entre o seu temperamento de tímido e as exigências da sua concepção da Crítica como uma magistratura literária, - uma distância exagerada e quiçá uma contradição invencível. Que fez? Fundiu o crítico no romancista. E deu-nos, num só planalto, a soma de duas vertentes.

T. DE A. (Machado de Assis, Obras completas, volume III, 1962)

ELITES E MASSAS

À medida que vamos penetrando no âmago desta solene Declaração de Direitos Universais do Homem, vamos também notando o seu caráter analítico e não sintético, que revela uma codificação mais de tipo anglo-saxônico do que latino. O modelo da codificação de tipo latino foi, sem dúvida, o Código Napoleônico, cuja concisão é tão admirável que é sabida a declaração de Stendhal de ler todas as manhãs um artigo, ao menos, do Código Civil de Napoleão" como exercício de estilo"! As leis inglesas e norte-americanas são, em geral, prolixas e portanto de um estilo, de fundo "romântico", que Stendhal abominava. Por outro lado, esse estilo analítico anglo-saxônico revela um caráter tópico desse sistema legislativo: o da sua elaboração indutiva a partir dos costumes. Ao passo que o estilo sintético latino revela o caráter dedutivo de sua elaboração, a partir da razão mais que dos fatos. Daí a flexibilidade concreta da legislação de tipo anglo-saxônico, e a rigidez bem mais abstrata da legislação de tipo latino. Talvez por esse motivo é que os elaboradores desse admirável documento preferiram para o seu título o temo Declaração ao termo Código. Este possui uma conotação mais rigorosa e inflexível do que a adotada, precisamente para significar que essas regras universais partiram da observação dos fatos e não de uma dedução ideológica e devem ser aplicadas em harmonia com os acontecimentos históricos e com as circunstâncias sociais e não como um enquadramento disciplinar. Quando confrontamos o quadro ideal dessa Declaração de Direitos com as condições imperfeitas, senão catastróficas, do momento histórico que vivemos, compreendemos bem a justificativa desse realismo na elaboração, na apreciação e na aplicação desse magnífico esboço de uma sociedade jurídico-moral perfeita.

O artigo VI da Declaração está assim redigido: "Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei."

Embora subentendido desde o primeiro artigo, nunca é demais que se relembre essa condição predeterminante da cada membro da sociedade, em qualquer sítio ou condição em que se encontre, seja nacional ou estrangeiro, seja inocente seja culpado, seja um membro útil ou inútil da coletividade, como pessoa humana, isto é, uma entidade em si e não apenas como um elemento passivo ou uma parte apenas de um todo social.

Sabemos que uma das tendências características dos tempos modernos, em qualquer regime político ou situação geográfica e social, é para uma civilização de massas. O próprio crescimento demográfico acelerado da humanidade, em conseqüência dos progressos científicos no trato da saúde humana, leva naturalmente a essa tendência à vida aglomerada e citadina, em megalópoles cada vez mais concentradas, em que o indivíduo tende a ser facilmente transformado em robô e integrado em organismos anônimos. Foi, sem dúvida, o exagero de uma civilização burguesa, de tipo individualista, que está levando a vida moderna, em todos os continentes, a um novo tipo de civilização cada vez mais coletivista. Não se trata, na aplicação desse artigo, de propor qualquer retrocesso ao individualismo. E sim o respeito a uma exigência intrínseca, tanto da natureza do homem como da natureza da sociedade. O personalismo é o oposto do individualismo, por mais que possa confundi-los o mau emprego de uma terminologia pouco usual. Não se opõe, porém, de modo algum à socialização imposta pelas condições sociais e pelos deveres que a comunidade impõe a cada um de seus membros. A tendência à civilização de grandes massas humanas, nas quais se integrem naturalmente suas elites culturais e morais, é um tendência irreversível. Não se trata de negar a existência das elites. Mas de impedir que se oponham elites a massas como se as primeiras fossem os únicos elementos ativos da sociedade e as massas elementos passivos.

Quando Pio XII falou da necessidade de transformar as massas em povo, aceitava essa concepção de massas como sendo um elemento passivo ou mesmo negativo nas sociedades. O nome não importa. O que importa é reconhecer que a civilização moderna, quaisquer que sejam as circunstâncias de sua mutação em processo, tende a dar às massas uma importância cada vez maior, tanto na satisfação de suas necessidades fundamentais, como em sua participação ativa na sociedade, através da alfabetização universal, da cultura popular, dos meios modernos de comunicação e assim por diante.

A hipertrofia do conceito de elite é tão errada como sua confusão com uma estrutura aristocrática de sociedade. A passagem da sociedade feudal à sociedade burguesa deu ênfase exagerada ao conceito de elite, como se esta viesse substituir a nobreza do antigo regime. O liberalismo político e econômico pretendeu substituir os privilégios de sangue pelos de saber e sobretudo de fortuna. As elites econômicas, sobretudo a chamada plutocracia, é que vieram substituir a aristocracia do regime feudal ou monárquico absoluto. E com isso se processou um abismo crescente entre elites (ou falsas elites) e massas, que teve conseqüências desastrosas para os destinos da sociedade moderna. Inclusive o de introduzir o preconceito de tratar as massas como aglomerados indistintos de criaturas humanas e só as elites como coexistência da unidades distintas às quais então se reservava a condição de personalidade.

Massas e elites formam uma só unidade, dentro de uma sociedade racionalmente organizada. A diferença que as distingue está ou, antes, deve estar no valor qualitativo das pessoas, individualmente consideradas, e não dos grupos ou classes a que pertencem. O conceito de elite não é um conceito de grupo ou de classe, mas de qualidade individual. As elites nas massas e as massas nas elites são o fim a que deve tender toda sociedade bem organizada. E para isso é mister que "todo homem tenha o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei".

A LIBERDADE RELIGIOSA

O problema crucial da liberdade religiosa é de que trata o artigo seguinte, o artigo XVIII.

"Art. XVIII - Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular."

Esse é outro dos direitos que parecia definitivamente adquirido pela civilizada moderna. Um dos méritos do liberalismo foi, sem dúvida, tentar destruir privilégios tradicionalmente ligados à raça, ao sangue, à força, à religião, através do conceito de igualdade de direitos. O erro do liberalismo foi não estender esse conceito à via econômica, mantendo as desigualdades econômicas como invectiváveis e até mesmo... providenciais. Foi esse calcanhar de Aquiles que o liberalismo está vendo seus méritos desconhecidos e arrastados pelo mesmo turbilhão provocado por seus erros. E um desses méritos que passou a ser desconhecido foi, precisamente, o da liberdade de consciência. Enquanto o elemento religioso predominou, tanto nas sociedades pagãs como nas sociedades cristãs, a religião se tornou um privilégio, diretamente ligado ao reconhecimento dos direitos individuais. A luta pela dissociação entre os direitos individuais, pertencentes à natureza humana, independente de fé religiosa e essa profissão de fé, ligada a cada ser humano em particular, e não a essa condição de membro da espécie humana (pois a fé é uma revelação e uma instrução ("ex auditu") acrescentada à natureza humana e não inata nela), foi extremamente lenta e penosa. Parecia, entretanto, que o racionalismo do século XVIII, no que teve de positivo, tinha alcançado esse objetivo, dissociando o Direito da Religião, cada qual com sua autonomia própria. Mesmo aqueles que reconhecem as origens divinas, últimas, do Direito, em suas raízes nas leis providenciais do universo, não negam ou pelo menos não devem negar a autonomia dos direitos humanos em face da fé religiosa. Essa luta pelo reconhecimento do chamado Direito Comum foi um dos grandes méritos do liberalismo. Acontece, porém que esse desconhecimento das raízes autônomas e absolutas do Direito, seja na Natureza Humana seja na Lei Divina, levou ao positivismo jurídico e à subordinação gradativa do Direito à Política, depois de tê-lo libertado da Religião. E a emenda foi então pior que o soneto. E o Direito veio a perder totalmente, em muitos casos, sua autonomia, passando a subordinar-se ao arbítrio e às vicissitudes das revoluções políticas e à transferência do poder econômico.

A liberdade de religião, então, que parecia garantida pelo reconhecimento da autonomia, tanto do Direito como da Religião, pelo liberalismo, veio de novo a ser atacada, já agora por motivos opostos. Já agora, não era o privilégio de uma Religião, que desfavorecia as outras religiões, mas o privilégio do Estado, a-religioso, que vinha criar obstáculos à liberdade religiosa, qualquer que fosse.

Nos Estados confessionais, como a Espanha, por exemplo, vemos a religião do Estado (que é no caso o catolicismo) criando obstáculos à liberdade de outras religiões. O mesmo acontece nos Estados muçulmanos, com os privilégios concedidos ao islamismo. E assim com o budismo, o xintoísmo ou os cultos animistas, em outros Estados, asiáticos ou africanos.

A sabedoria da regra de liberdade, consignada neste artigo, é que se coloca acima da variedade "de fato" dos cultos religiosos, sem procurar definir qual deles o verdadeiro e quais os falsos., Podemos nós, cristãos, como os muçulmanos ou outros, considerar que a verde religiosa não pode ser entregue ao indiferentismo. Pode haver muitos caminhos de chegar à Verdade Suprema - e a verdade religiosa é a única verdadeiramente suprema, pois transcende as próprias medidas humanas. Mas isso não impede que reconheçamos que uma coisa é a verdade religiosa "em si" e outra a sua coexistência com outros tipos de religião, que invocam igualmente a verdade como lhes pertencendo. O único meio racional de dirimir essas posições opostas é precisamente o de distinguir o estado de exigência doutrinária do estado de convivência social de fato. E é precisamente esse ponto que todo o artigo da Declaração ora comenta. Não se trata de dirimir situações sociológicas. E nesse pontoe é o bom senso, é a observação histórica, é o raciocínio prático que nos levam ao "pluralismo social". Podemos dizer que o verdadeiro humanismo é naturalmente pluralista. A unidade que existe entre todos os homens precede a variedade, mas não subsiste praticamente sem o reconhecimento desta. Daí a superioridade intrínseca da concepção pluralista, especialmente numa sociedade de tipo crescentemente "universalista" como a nossa, da era industrial e tecnológica que estamos vivendo. Todo unitarismo, hoje em dia, resulta num despotismo, em que a liberdade religiosa é arrastada de roldão com outras imunidades, que a sabedoria dos séculos tinha lentamente elaborado. Este artigo é fruto dessa sabedoria. Há meio século talvez parecesse, como outros, supérfluo ou redundante.

Hoje nos parece cada vez mais atual. Vimos, por exemplo, como no próprio âmbito da Igreja Católica, cujo culto é tradicionalmente dirigido pela razão (a ponto de Bernard Shaw ter lançado um de seus muitos paradoxos, ao dizer que nunca seria católico por ser a Igreja "excessivamente racionalista"), foi difícil chegar ao ecumenismo. O texto relativo à liberdade de consciência, durante o Vaticano II (redigido pelo saudoso jesuíta "father" Murray, cujo conceito de liberdade foi tão combatido pelos antiliberais, como foi o de Maritain), foi refundido sete vezes e não chegou a uma forma satisfatória. Mais simples e mais aceitável, do ponto de vista puramente sociológico como é o desta Declaração, é o que está consubstanciado neste artigo.

Nele estão bem especificadas as diversas facetas da atitude religiosa ou não, impedindo que uma impeça socialmente a liberdade de e outra. e garantindo, com isso, o direito da explicitação da fé e de sua transmissão educativa até hoje negada por legislações totalitárias que, garantindo em princípio a liberdade religiosa, tudo fazem "na prática" para impedi-la ou limitá-la. O recrudescimento das paixões religiosas ou anti-religiosas, em nosso tempo, é um prova da vitalidade e da atualidade do sentimento religioso que tantos já deram como definitivamente extirpado da espécie humana. Mas justamente por isso é que as liberdades garantidas neste artigo, básicas para a coexistência pacífica da humanidade, devem ser enfaticamente garantidas e praticadas por todas as legislações; o que infelizmente ainda está longe de acontecer em nossos dias de paixões contraditórias desencadeadas.

(Os Direitos do Homem e O Homem sem Direitos, 1974.)