Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Alberto Venancio Filho > Alberto Venancio Filho

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Américo Jacobina Lacombe

Sr. Alberto Venancio Filho,
   
ao percorrer os inúmeros e valiosos trabalhos de vossa considerável produção, um fato de início me impressionou: o culto aos grandes inspiradores de vossa obra, a gratidão pelos colaboradores que vos incitaram a laborar em temas de tão alta significação cultural.

Impressionou-me a seriedade com que fazeis a apologia de um grande nome, vítima ainda há pouco de imperdoáveis incompreensões, e que expusestes em primoroso discurso no Pen Clube do Brasil: Oliveira Viana;

– a evocação de um pensador que anteviu, com impressionante lucidez, os problemas que nos afligem no campo da Educação: Anísio Teixeira, em lúcido prefácio à sua correspondência com Monteiro Lobato;

– a visão exata em belo ensaio acerca da personalidade inesquecível pela correção unida à cordialidade, que foi a de Luís Viana Filho;

– as constantes referências ao talento solar de San Tiago Dantas, tanto na Política quanto no Ensino Jurídico;

– a evocação repetida de um insuperável colaborador dos que pesquisam, cujo nome timbro em pronunciar nesta gloriosa oportunidade por gratidão e justiça: Antônio Gontijo de Carvalho.

Permiti que me detenha na introdução, de vossa autoria, ao livro Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal, modelo de estudioso e magistrado, obra indispensável à compreensão de nossa terra, que bem mereceu o vosso magistral estudo introdutório à edição consagradora promovida pela Universidade de Cambridge.

São todos santos também de minha devoção, que me aproximaram das vossas obras predispondo-me a acolhê-las com simpatia, interesse e entusiasmo.

Sucedeis a figura estelar de Afonso Arinos de Melo Franco, que durante 32 anos participou dos trabalhos desta Casa com excepcional brilho, assim como o fez no livro, no Parlamento, na cátedra universitária, na Imprensa, nos salões e nas praças públicas. Tive a ventura de conviver com esse nosso ilustre confrade e posso repetir o que sabem todos, como era agradável sua companhia e como de seu trato se saía sempre enriquecido.

Não há afinidades eletivas nas escolhas da Academia, eu mesmo, historiador e professor, sucedendo ao ilustre médico e humanista Antônio da Silva Mello. Mas quero crer que na vossa eleição pesou também a íntima convivência que nos últimos anos tivestes com Afonso Arinos de Melo Franco, que vos devotava carinho e afeição filiais. Foi ele que lembrou vosso nome para membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como dele foi a indicação para vossa participação nos trabalhos da  Comissão de Estudos Constitucionais.
 
Retribuístes essa afeição, dedicando-lhe três trabalhos; ainda em vida, o primeiro publicado no volume Afonso Arinos na UnB, estudando o papel do constitucionalista e o do cultor do Direito Público. Nesta ocasião, Afonso Arinos disse a vosso respeito, do fundo do coração, que éreis “meu querido amigo, embora jovem, com a idade de  meus filhos, mas um dos mentores de sua geração”.
 
Por ocasião de seu jubileu universitário, organizastes, juntamente com o Professor Celso Albuquerque Melo, o volume de estudos em sua homenagem com o título As Tendências Atuais do Direito Público. Colaboraram no volume os nossos ilustres confrades Cândido Mota Filho, Hermes Lima, Pontes de Miranda e Evaristo de Moraes Filho,  e no volume retomastes indagações doutrinárias sobre a “Intervenção do Estado e liberdade econômica no Direito Constitucional brasileiro”.

O outro, mais recente, já após o falecimento, na Revista Estudos Históricos da Fundação Getúlio Vargas, analisando o seu papel na Historiografia Republicana, tema de  especial predileção de ambos.

O discurso que acabamos de ouvir, em síntese apertada dada a limitação do tempo, representa o perfil exato desse nosso grande confrade.

Coordenando as notas para esta saudação, observei que 25 anos nos separam desde a vinda ao mundo e também no ingresso na Universidade. Há vinte anos, entrava eu para esta Academia, cujas portas hoje se abrem para acolhê-lo. Minhas palavras têm, assim, o sabor de mensagem de uma geração a outra que lhe sucede.
 
Impressionaram-me os pontos em que as linhas de nossas vidas se aproximam. Nascidos em famílias de professores, devotados à sua missão, e que várias vezes entraram em contato através de amigos comuns; completamos no Rio nossos preparatórios, como se dizia no meu tempo, e procuramos a mesma Faculdade de Direito.

Mas eram diversas as nossas intenções ao penetrarmos na velha Escola. É que eu, não tendo vocação religiosa nem militar, só podia optar pelos cursos de Engenharia, Medicina ou Direito. Optei por este, em busca daquilo que num de vossos trabalhos denominais de “cultura geral”. Não havia ainda as Faculdades de Filosofia e Letras, onde se estudasse a História em nível superior, e a esse setor se inclinava minha formação. Na Faculdade, as cadeiras que mais poderiam interessar a alguém não seduzido pela carreira forense não conseguiram atrair minha curiosidade. Os cursos, com raras exceções, não tinham elevação. O meu grupo de colegas organizou então um Centro de Estudos, com comissões paralelas às matérias do currículo, para tirarmos o máximo proveito do ensino, o Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos (CAJU).

Ao contrário, fostes desde cedo empolgado pela vocação forense. As falhas do ensino nos levaram ambos a analisar desde então as causas das deficiências na formação dos juristas. Esses estudos e esse adestramento, no vosso caso, vão constituir o esplendor material com que mais tarde, em 1968 e 1977, elaborastes, respectivamente, dois grandes livros que constituem excelentes estudos acerca da formação de nossos juristas: A Intervenção do Estado no Domínio Econômico e Das Arcadas ao Bacharelismo.

O primeiro resultou do choque entre a formação obsoleta que recebemos e os casos que tivestes de enfrentar no início da carreira ardorosamente abraçada. Fostes iniciar vossa brilhante vida profissional em um núcleo de notáveis causídicos, reunidos nesta cidade, sob a orientação sábia e patriótica de nosso saudoso amigo Antônio Gallotti. Com essa equipe, à qual também me honro de não ter sido estranho, concluístes que a natureza dos problemas que enfrentam as empresas privadas “difere fundamentalmente da formação recebida nas Faculdades de Direito, imbuídas da velha tradição coimbrã e cujo ensino é centrado basicamente no campo do Direito Privado”. E prosseguindo: “As questões que se apresentam, as soluções que se devem encontrar não têm nos moldes clássicos do Direito Civil as respostas que as novas necessidades sociais estão a exigir.” Estou transcrevendo palavras de vossa introdução.

Daí a necessidade de uma nova colocação dos problemas jurídicos. Vosso livro pioneiro tornou-se clássico, e não admira que o autor tenha sido logo incluído entre os mais acatados juristas de nossa terra. O subtítulo, bem significativo, passou a ser empregado largamente: O Direito Público Econômico no Brasil.

Mas, para estudar a intervenção do Poder Público, foi preciso investigar a origem e a elaboração do Estado Brasileiro. A importância do conhecimento da evolução histórica do País impôs-se à vossa atenção. Um outro setor abria-se, então, à vossa capacidade de pesquisa: a História Nacional. A ele vos dedicastes com a paixão e o escrúpulo que se vão tornar característicos de vossos estudos.

A grande preocupação de vosso espírito era a formação dos juristas no Brasil. Por isso, em conferência na Faculdade de Direito do Recife, publicada nos Estudos Universitários, dedicastes vossa atenção aos planos de Rui Barbosa, em seu famoso parecer de 1882. Após avaliar a importância desses trabalhos parlamentares, focalizastes o ambiente político e social brasileiro da era de 1980 e concluístes que se perdeu uma grande oportunidade de dar à formação de nossos juristas “mais extensão prática e mais espírito científico”.

Os projetos de Rui, que morreram “na traçaria dos arquivos”, na expressão do próprio autor, mereceram poucos estudos de tanta agudeza como os vossos.

A pesquisa da eficácia do ensino do Direito no tempo do Império era vossa constante preocupação. No Congresso convocado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1975, apresentastes o esboço de um estudo sobre o tema, o que de certo concorreu para vossa eleição como sócio efetivo da veneranda instituição. Mas já aí anunciáveis que estava em elaboração um estudo mais completo. No mesmo ano, pronunciáveis uma conferência acerca do tema na Universidade de Brasília e outra em Minas Gerais.

Dois anos depois, publicáveis sério estudo em torno de Os Estatutos de Visconde de Cachoeira, com importante introdução sobre a criação dos cursos jurídicos. O assunto, tão escrupulosamente estudado, resultou num livro que não admira já tenha sido reeditado.

Seja-me permitido destacar, dentre os estudos acerca do ensino jurídico, a comunicação apresentada à Universidade de Brasília no encontro realizado em torno da personalidade de Santo Tiago Dantas. Até o presente momento nenhum estudo focalizou com tanta acuidade a figura solar que deixou, a respeito do ensino do Direito, os mais lúcidos conceitos, infelizmente não acolhidos pelos responsáveis.

Das Arcadas ao Bacharelismo, aparecido em 1977, é o livro com que vos inscrevestes na primeira linha de nossos historiadores da Cultura. Nele se traça uma síntese magistral da evolução dos principais centros formadores de nossa Cultura Jurídica. As fontes foram conscienciosa e pacientemente examinadas. Histórias, relatórios, leis, discussões parlamentares, tudo foi escrupulosamente pesquisado.

As distorções na formação daqueles que os jornais de militares na época do Império chamavam de legistas, em vez de técnicos em Direito, estão implacavelmente caracterizadas. Para compreender a formação da sociedade brasileira, é obra indispensável. Não admira que figure sempre na lista dos trabalhos necessários à compreensão do País.

A deformação dos cursos jurídicos, gerando mais poetas e filósofos que legistas, é apontada como uma das falhas na formação da elite nacional. Concluístes, com o nosso saudoso Confrade Fernando de Azevedo, que as Faculdades de Direito foram o viveiro de uma elite de Cultura e urbanidade, em que recrutaram numerosos elementos a Administração e a Política, o Jornalismo, as Letras e o Magistério (e até mesmo o Teatro), infiltrados de bacharéis, desertores dos quadros profissionais e que guardaram, com a ilustração, apenas o título e o anel de rubi no dedo, como sinais de classe e de prestígio.
   
A extensão da Literatura a públicos mais amplos se deve a três principais fatores: o amparo oficial de D. Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as academias de Direito. Nada mais significativo desse fenômeno que a inscrição, nas Arcadas da Faculdade de São Paulo, do nome de três poetas e não de três juristas. “Uma análise histórica do ensino jurídico no Brasil”, lida na Universidade de Brasília, complementa vossos estudos neste setor.

O tema da formação do advogado volta a vos despertar o interesse na densa Notícia Histórica da Ordem dos Advogados do Brasil, elaborada por designação do presidente da Instituição, Eduardo Seabra Fagundes. A pesquisa perfeita das variadas fontes é a mesma, e a conclusão é sempre de que o ensino teórico do Direito, tal como ministrado nas nossas Faculdades, está fora do mundo moderno.

Mas não sois homem de criticar e planejar nas nuvens. A formação de novos juristas não ficou em projetos e sugestões. Fostes um ativo e eficiente colaborador de um dos mais sérios movimentos para a formação de juristas sintonizados com o nosso tempo. No pórtico de vossa obra inicial, lembrais uma lúcida observação de San Tiago Dantas: “O jurista está no mundo de hoje como deve ter estado o geógrafo na época das descobertas.”

A justa ambição de dar ao estudo do Direito uma feição atualizada não se limitou a discursos e escritos. O notável grupo de advogados, de que fizestes parte inicialmente, promoveu uma das mais sérias iniciativas nesta cidade no campo da Cultura Jurídica. A criação do CEPED – Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito, vinculado à então Universidade do Estado da Guanabara, e funcionando na Fundação Getúlio Vargas, sob a direção do emérito jurista Caio Tácito, com o “trabalho catalisador” do Professor David Trubek e a competentíssima assessoria do Professor Alfredo Lamy Filho, e de que fostes um dos mais ativos propulsores, tornou-se um vitorioso centro de experimentação de estudos jurídicos. Ainda fora desta cidade repercutem os ecos dessa iniciativa original e, até certo ponto, revolucionária.Vários cursos de formação de advogados de empresas foram professados por esse Centro, com excepcional êxito. Na classe dos advogados, vários nomes devem a tais cursos o prestígio de que atualmente gozam.

O Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito lançou semente fértil que se pode reconhecer não só em outras experiências que nele vieram a inspirar-se, senão, também, pelo impacto sobre os integrantes das turmas que seguiram os seus cursos, os quais se têm feito notar através da “atitude objetiva e moderna que vieram a imprimir a sua atuação profissional”.
 
A consagração desses cursos, e os de doutorado nas Universidades, gerou uma corrente de causídicos que vão assumir o papel de liderança nos meios jurídicos. Os resultados desse esforço vão resultar na Memória apresentada em 1966 à Universidade de Upsala.

Um dos frutos dessa nova mentalidade entre os juristas foi o curso de que fostes coordenador, de Direito Especializado, criado por convênio entre o Ministério de Minas e Energia e a PUC-Rio. Foi esse curso que formou os advogados para os quadros do Ministério das Minas e Energia. Já então era notória vossa autoridade no campo da Cultura Jurídica, não especialmente do ensino jurídico, mas da Ciência do Direito em geral.

Sois logo solicitado a colaborar com a comissão organizadora, elaborando o plano inicial da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Fostes ainda assessor técnico da Presidência da República, para os assuntos de Educação, assistente do diretor de Ensino Superior, assessor do Professor Carlos Chagas Filho na comissão especial para programação de Educação, Ciência e Cultura na Organização dos Estados Americanos, colaborando na CAPES com esse modelo de servidor público que é Almir Castro; e, finalmente, fostes professor da cadeira de Introdução ao Desenvolvimento Brasileiro, na Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, de saudosa memória.

Não admira que, na Comissão Preparatória dos Atos Constitucionais, chamada dos “50 Notáveis” e presidida por Afonso Arinos, fôsseis encarregado de relatar o tema – Ordem Econômica – e, em consequência, autor de capítulo correspondente, nos Comentários à Constituição, ora em elaboração.
 
Quando conheci mais a fundo vossa obra A Intervenção do Estado no Domínio Econômico, já lá se vão mais de vinte anos, escrevi-vos uma carta, conservada em vosso arquivo, como tive, há pouco, a satisfação na qual ousava dizer: “Não é um livro: é a abertura de um campo, com uma larga visão e um espírito de pesquisa, raros em nosso meio. Tenho a impressão de que você se meteu num caminho de onde não voltará sem na boa dúzia de obras complementares.”

Não era difícil profetizar. Dez ensaios sobre os problemas do Ensino Jurídico se seguiram, todos coerentes com os planos desenvolvidos nas duas obras-mestras, orientadoras de toda a vossa produção: A Intervenção do Estado e Das Arcadas ao Bacharelismo.

Em outro substancioso estudo sobre a A Ordenação Jurídica da Economia, enunciais esta conclusão lapidar:
   
Pode-se afirmar que o problema mais sério com que se defronta a ordenação jurídica da Economia Brasileira é o adequado funcionamento das instituições administrativas que, na maioria dos casos, ainda não se encontram aparelhadas para desempenhar as novas funções que lhes são cometidas. Constantemente, ao aparecimento de um problema novo, fala-se logo na reforma de uma lei ou edição de uma lei nova, quando, quase sempre, as leis já existem e estão apenas dependendo de execução eficiente.
   
Mas um outro campo se abriu diante de vossa capacidade de investigar, na senda do Direito e do Ensino Jurídico. Além da Notícia Histórica da Ordem dos Advogados do Brasil, a que já nos referimos, mais de vinte ensaios de vossa autoria, sobre eventos ou personalidades históricas, foram acolhidos nas mais sérias publicações do país. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro incorporou-os à sua Revista e aos Anais dos congressos de História. Perfis intelectuais como os de Afonso Pena Júnior, de nosso colega Evaristo de Moraes Filho, de Alfredo Valadão, de Fábio Konder Comparato, de Celso Lafer e de Miguel Seabra Fagundes, de Filadelfo Azevedo, de Levi Carneiro, Constituem uma galeria que formaria um volume respeitável.
 
Mas a História do Ensino Jurídico abriu-vos o ingresso a dois setores em que vos distinguistes logo: a História da Educação e a História Política. Da biografia de Montezuma, o grande advogado, passastes à de Zacarias de Góis, em publicação da Câmara dos Deputados, e à de Carlos Peixoto e o “Jardim da Infância”.
 
O estudo sobre Carlos Peixoto e o “Jardim da Infância” colocou nova luz sobre esta fase pouco estudada da História Republicana, e para a qual trouxestes com o zelo de sempre documentos e escritos inéditos. Passou a ser de citação obrigatória nas referências à época, revelando o vosso especial interesse por esse período de nossa história.

Nesse aspecto, merecem referência os prefácios feitos para a biblioteca O Pensamento Político Republicano, organizada pela Universidade de Brasília, em colaboração com a Câmara dos Deputados, para a qual preparastes as introduções aos volumes O Estado Federado e sua Organização Municipal de Castro Nunes, O Poder Executivo na República Brasileira de Aníbal Freire e Problemas de Direito Corporativo de Oliveira Viana. Nesses prefácios, o trabalho do jurista se conjuga à visão do historiador e do sociólogo, colocando as obras no seu exato contexto e realçando o papel de seus autores no cenário intelectual da época. Assim mais uma vez revelastes a visão interdisciplinar do estudioso que não se contenta com um único ponto de vista, mas que procura estabelecer interrelações.
 
Na introdução ao livro de Oliveira Viana Problemas de Direito Corporativo, realçastes com proficiência a visão moderna do Direito como instrumento de mudança social e o papel das instituições administrativas nesse processo de transformação, discutindo na teoria as práticas que foram aplicadas no Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito.

Há, porém, páginas de vossos trabalhos que não resultaram somente de vossa inteligência e de vossa erudição. São, como diz a expressão clássica, escritas com a pena molhada no coração. Refiro-me aos estudos sobre a História da Educação, especialmente os relacionados à Associação Brasileira de Educação, e aos pioneiros dessa atividade entre nós. Acrescentem-se ainda os estudos euclidianos. É que neles vossa mão foi conduzida pela lembrança do exímio educador que vos formou com o carinho de sua indiscutível competência.

Sou testemunha da história da ABE, desde os tempos das catacumbas. Possuo uma das vias do ato de sua fundação, na antiga Escola Politécnica, em que figuram as firmas dos seus fundadores. Eram poucos. Mas todos conscientes do combate que iam travar. Não chegavam a vinte. Honro-me de ver entre eles três nomes de minha família, e, em letra miúda e discreta, lá figura a assinatura de Francisco Venancio Filho. Acompanhei os primeiros tempos da nossa ABE, desde o período em que nem sequer possuía sede, e o sábio Heitor Lira, com a vista em declínio, sentindo que entrava na fase final da existência, esforçava-se por lançar os alicerces da nova instituição que, ai de nós, não conservou as linhas mestras que a experiência daquele douto companheiro lhe traçara.

Sei, de um saber de experiências feito, como foi difícil conciliar, em vista de nobres ideais, correntes divergentes, quiçá conflitantes, em matéria de Política e Pedagogia. Nada disso seria possível sem a cooperação de espíritos conciliadores, com alto senso de tolerância e respeito pelos outros, de que foi modelo o Professor Francisco Venancio Filho. Dele tratou, com autoridade de colega e testemunha, o nosso saudoso Paulo Carneiro, em estudo primoroso: “Francisco Venancio Filho – Homem de Ciência e Educador”, em conferência aqui proferida. E relembrou as palavras de Roquette-Pinto: “Durante toda a existência, Venancio foi enamorado das coisas puras e belas. O amor da terra e da gente do Brasil foi nele um sentimento sério, sem clarinadas patrióticas, sem retórica, sem lantejoulas.”

E, após revelar traços de extrema delicadeza de sentimentos e de espírito público do homenageado, concluiu: “Ninguém sabe ser melhor amigo do que ele. Ninguém serviu com maior desprendimento a causa pública, nem deu mais alto exemplo de fidelidade aos seus ideais, aos seus labores, à sua terra e à sua gente.”

Nenhum dos ouvintes poderá esquecer a emoção com que nosso grande colega pronunciou estas palavras.

A ele dedicastes um comovente opúsculo: “Francisco Venancio Filho – Um Educador Brasileiro, reunindo a conferência que proferistes na ABE e uma preciosa bibliografia comprovando a abundante e notável atuação do grande professor. A ele vos referistes no discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em que estudastes O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, ocasião em que fostes saudado pelo nosso inesquecível Francisco de Assis Barbosa. Tudo que eu possa dizer a vosso respeito não tem o valor daquela saudação que vos consagrou como o “iniciador dos modernos estudos de direito econômico”.
 
Nesse mesmo discurso, considerastes tríplices vossos interesses intelectuais: “O Direito, a História e a Educação.” Mas no setor histórico um tema também dominais par droit de naissance: o culto de Euclides da Cunha. Francisco Venancio levou a devoção euclidiana ao ponto de falecer numa comemoração cívica do autor de Os Sertões. Vossa conferência sobre “Euclides da Cunha e Seus Amigos”, publicada na Revista do Instituto Histórico, foi pronunciada como quem desempenha um mandato sentimental. Porque não sois somente um pesquisador consciencioso. Tendes a consciência do dever de perpetuar os altos ideais pelos quais se consumiu vosso ilustre pai, o mestre exemplar e chefe de um lar admirável, em que contou com a colaboração de uma esposa perfeita, emérita professora e companheira ideal.
 
Tudo que eu pudesse dizer a respeito de vossa personalidade como intelectual já foi dito na vossa posse no Pen Clube, em 1987, pela palavra do homem de letras que é também o Ministro Marcílio Marques Moreira: “Amplo conhecimento do Direito, a que dedicou com a maior parcela da sua carreira profissional, acurada sensibilidade pela História, intenso interesse pelo processo e instituições políticas e bom domínio da temática econômica.”

Só nos cabe, por fim, um sentimento de alegria: gozar agora, permanentemente, de vossa companhia, quer dizer, desfrutar do maior prêmio que pode ter um companheiro de lutas e ideais – viver em contato intelectual com um amigo de longos anos e solidário nos grandes temas do nosso tempo, enquanto Deus assim o permitir. 

14/4/1992