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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Jorge Amado

Chego diretamente da Bahia para aqui vos dar as boas-vindas neste momento em que tomais posse de vossa Cadeira na Academia Brasileira, onde vossa falta já se fazia sentir. Posso dizer que chego quase diretamente da região do cacau, de cidades que nós assistimos crescer, a algumas delas assitimos nascer, como, por exemplo a cidade de Itajuípe, erguida Pirangi, nas proximidades de Sequeiro do Espinho, na época das grandes lutas, nascida na fumaça do clavinote de Brasilino José dos Santos, compadre Brás. Chego das ruas de Ilhéus onde éramos meninos há menos de meio século. Meninos de Ilhéus, e é nessa condição que antes de tudo vos saúdo, com alegria e amizade fraternal, em nome dessa gente grapiúna de quem sois orgulho e glória. Trazeis sua marca poderosa e engrandecestes a civilização por eles criada, a cultura nascidada lavoura de cacau e da saga de sangue e morte na manhã da conquista.

Levastes mais além do progresso material e da existência geográfica essa região e essa gente grapiúnas. Hoje a paisagem e o homem de cacau ganharam a imortalidade, não porque, com justiça e em tempo, vos foi dado vestir esse fardão acadêmico, empunhar essa espada de ouro. Mas, porque essa paisagem e esse homem grapiúnas viverão enquanto viver a língua portuguesa, imortais nas páginas de vossa alta Literatura, dos romances que construístes com o sangue e a carne dessa gente, com suas matas de cacaueiros, seus rios, seus montes, sua força de viver. Grandes romances e definitivos não apenas noslimites de uma Literatura baiana ou brasileira, mas da novelística contemporânea tout court. Ainda há poucos dias o intelectual alemão Curt MayerClason, vosso e meu tradutor, me escrevia, num lúcido entusiasmo por vossa Literatura e a propósito da próxima publicação em língua alemã do Corpo Vivo, ser esse vosso romance “grande em qualquer língua e em qualquer Literatura”. Eis que o menino de Ilhéus, de infância solta nos cacauais, atravessa com seus livros as fronteiras do Brasil e da língua portuguesa,leva o gosto dessa terra e de sua humanidade bravia pelo mundo afora, e outras gentes, no outro lado do mar e das montanhas, saberão de nós e de vossa verdade.

Que diriam os coronéis de cacau. Sr. Adonias Filho, aqueles que matavam e morreram para plantar a terra, ao ver-nos aqui, a vós e a mim, com tão estranho fardamento, membros da Academia Brasileira? Os seus meninos, que eles desejavam doutores, médicos, advogados ou engenheiros, sugaram ao nascer os seios da violência desatada, da indômita coragem e da vida vivida enfrentando a morte; assim cresceram mais do que eles pediram e esperaram, e, em vez de bacharéis, foram escritores, criadores de vida. E somos apenasdois entre os muitos escritores de cacau, a eles nos referimos mais adiante.

Ainda guardo nos ouvidos o som das cavalhadas partindo à noite das fazendas para as expedições punitivas; ainda vejo diante de mim o grande negro José Nique, derrubado morto no chão como uma árvore da floresta,haviam-no abatido a machado. Vejo, numa pensão de Ilhéus, os tiros vindos da rua derrubarem um coronel do cacau e da repetição, que almoçava sereno duas mesas adiante daquela onde eu me sentava em companhia de colegas, jovens estudantes de ginásio. Recordo e me revejo menino de calças curtas a brincar na Praça do Hotel Coelho em Ilhéus, quando um adolescente apareceu; era meu primo Alvinho, ia correndo pela rua, a arma na mão, avisando-me:“Depressa para casa que o tiroteio vai começar.” Já começara numa rua de canto, alguém ficara estirado no chão pobre do mísero prostíbulo e outro homem era caçado como rato. As mulheres dormiam com a repetição do lado do travesseiro, os homens entravam pela floresta abrindo as clareiras, medindo a terra, plantando suas marcas de posse, em geral cruzes sem nome, covas de jagunços mortos nas tocaias ou nos encontros. Nos júris, a voz dos grandes tribunos ressoava, e um deles se chamou João Mangabeira; ali, em meio àquele sangue e àquele destemor, o mestre constitucionalista iniciou seu caminho de luta pelas liberdades e pelos direitos dos homens.

Volto os olhos para os dias de infância e vejo os coronéis do cacau à frente dos cabras partindo para derrubar a mata e plantar a lavoura nova. Foi violenta e bela essa saga de machos, essa conquista da terra. Lá vão os coronéis, vejo entre eles a Adonias Aguiar, a João Amado de Faria. Construíram um País e uma cultura, seu sangue floresce em campos e cidades, em escolas e academias, floresce também em livros, em poemas, em contos, em romances.

As vossas raízes, Sr. Adonias Filho, crescem nessa terra de tão generoso estrume, sois nascido dessa valentia, dessa braveza, dessa dureza de vida, alimentado com essas cores e esses perfumes da selva e das roças de cacau, com essa coragem de enfrentar o desconhecido para construir o futuro, de colocar a vida como prêmio da paixão de criar, de transformar o homem. Sendo um romancista do homem e de sua paixão, sois ao mesmo tempo um romancista do homem grapiúna, do homem do cacau. Se bem vossa matéria-prima no trabalho de criação seja o sentimento íntimo do homem, sua intrínseca verdade, seu medo, sua coragem, seu ódio, seu amor, sua vingança, sua solidão nem por isso deixais de ser daquela paisagem, daquele pegajoso mel do cacau daquele homem que é assim porque ali nasceu e vive. Outro perfume teriam vossos romances, outra cor, uma poesia diversa, senão houvesse ali nascido e nascido, ao demais, quando a conquista se concluía. Quando ainda soavam os tiros e caíam os homens nas tocaias.

Da epopéia da conquista da terra surgiu a civilização do cacau e surgiu uma Literatura de cacau, com suas características próprias, com sua marca inconfundível, sua própria verdade. Para evitar qualquer mal-entendido quero de logo afirmar que só me considero importante na criação dessa ficção grapiúna até onde é importante quem coloca a primeira pedra, o primeiro a abrir uma picada que outros transformariam em estrada ampla. Coube-me começar. Viriam depois os escritores como vós, Sr. Adonias Filho, a dar uma dimensão universal e uma garantia de permanência a essas Letras nossas, com a densa estrutura e a forma magnífica de vossos romances.

Creio que aqui vos saúdo também em nome desses escritores do cacau que vos consideram mestre de nossa Literatura grapiúna como eu vos considero. Participam eles desta festa de hoje, também a sua festa pois é a consagração da Literatura do cacau, daquela criada por vós e da que nós criamos,eles e eu. São nossos companheiros de ofício e de criação, filhos do mesmo solo, sofrido, e vale citar os seus nomes desta tribuna, ligando-os ao vosso nome, pois a Literatura por eles construída nasce da mesma realidade e da mesma ânsia que a vossa.

O romancista James Amado, conseguindo em seu belo e denso Chamado do Mar o difícil equilíbrio entre o conteúdo social e a forma quase torturada. O contista Jorge Medauar, nascido poeta em Urussuca, quando Urussuca era Águia Preta, realizado romancista em São Paulo. Do cacau e de sua gente, e sobretudo dos grapiúnas de sangue árabe, são os seus contos admiráveis, entre os quais algumas verdadeira obra-primas, dignas da mais escolhida antologia do conto brasileiro. O romancista Emo Duarte, do cais de Ilhéus e da inquietação dos jovens a ouvirem os poderosos apelos de nosso dramático tempo, dramático e belo, terrível e fecundo. O contista Hélio Pólvora, de Itabuna, com seus retalhos de vida, sua poesia, a atmosfera de infância de seus contos, sua agudeza. Elvira Foeppel, contista e romancista, abrindo novos caminhos num e noutro gênero. Para citar apenas aqueles cujos livros publicados tornaram os seus nomes conhecidos e cuja presença na Literatura brasileira é indiscutível. Vários outros, porém, lá por exemplo, Zadala Maron, cujo nome cito para nele saudar todos os demais jovens trabalhadores das Letras do Sul do Estado da Bahia.

Mas não apenas floresceu a novelística, também os demais gêneros literários, inclusive a pura flor da Poesia, a rara flor da grande Poesia. Quando nesta noite aqui se exaltam os faustos do cacau, como esquecer o nome de seu poeta, o grande poeta brasileiro Sosígenes Costa? Muitos outros nomes deveria eu lembrar para dar medida justa do que vai acontecendo nessas terras grapiúnas como fermentação de idéias, como trabalho intelectual, como devotamento à cultura e ao esforço de criação. Basta com que lembre porém os nomes de dois desses trabalhadores. Um, o de Nelson Schaun, recorda tudo quanto ali foi feito pela cultura num tempo em que essa palavra pouco ou nada significava para a gente da terra, quando o dinheiro ainda era tão novo que só a ele se dava valor. Nesse tempo, o irredutível jornalista foi o símbolo vivo das Letras e do estudo, de valor intelectual e de esforço cultural. E, nos dias de hoje, um poeta vindo de fora tem buscado, com persistência e entusiasmo, valorizar a civilização do cacau e fazer da região um centro de permanente interesse artístico e constante inquietação literária, o abnegado Abel Pereira.

De toda essa cultura, de toda essa vida intelectual, Sr. Adonias Filho,sois parte e mestre, criação e criador, filho e pai.

Acontece, porém, com todos nós, baianos, nascidos em qualquer quadrante do Estado, seja nas plantações de cacau, seja nas de tabaco ou de açúcar, no Recôncavo ou no Sertão, às margens do São Francisco ou nas distantes fronteiras com Goiás e Piauí, nos garimpos das Lavras Diamantinas ou nos cerros de Conquista, acontece que todos conduzimos pela vida afora um amor de perdição, fatal, irremediável, e esse amor é pela cidade do Salvador da Bahia, da Bahia de Todos os Santos, pela cidade negra e mágica que é a nossa capital, e que permanece sendo a mais forte matriz da alma brasileira. Por seus encantos estamos todos rendidos, a seus pés suspiramos enamoradose seu mar e de seus vales e montes, dessas pedras antigas do Pelourinho, das torres das Igrejas centenárias, do ouro de São Francisco do bater dos atabaques na noite dos candomblés e dos orixás. Essa nossa cidade de tão violento contraste entre a riqueza e a miséria, onde se ombreiam a fortuna maior e a pobreza mais dura e cruel, a dos Alagados. Essa cidade onde, porém, o mais pobre homem do povo, o mais explorado trabalhador, é tão civilizado, de tão fina delicadeza, tão elegante e culto quanto o baiano mais rico e viajado. Cidade onde a gente mais cortês e lhana, mais doce e terna, mais gentil que se possa imaginar é, ao mesmo tempo, dentro dessa mansa doçura, a de mais altivo orgulho, de mais forte consciência de sua dignidade de homem. O último pobre da Rampa do Mercado ou de uma “invasão” qualquer trata o mais rico banqueiro ou o mais arrogante latifundiário de igual a igual, porque se as condições de riqueza colocam um fosso de injustiça e dor entre eles, a civilização os iguala, e se por acaso alguma diferença ainda subsistir será quase certamente a favor do homem pobre nessa cidade onde a cultura é produto do povo e de sua grandeza.

Essa outra marca de nosso complexo cultural baiano também está presente em vossa obra que é produto de suas coordenadas. Da que vem da civilização do cacau, com sua violência, suas cores, todas as gamas do amarelo, sua alma sem medo, seus sentimentos fundos e sua dura verdade. Com essas características nascentes, já eram sangue de vosso sangue. E da que vem da civilização da cidade de Salvador da Bahia, cuja poderosa influência começastesa sofrer quando as portas do Ginásio Ipiranga se abriram para o estudante vindo de Ilhéus. Isaías Alves de Almeida, o então jovem educador, cujo nome se faria nacional e por todos respeitado, não tinha vocação de carrasco e, em geral, permitia aos seus internos prisioneiros a cidade da Bahia como mensagem.Foi por então, com certeza, que tomastes contato com a riqueza incomensurável, a imensa doçura, a força de criação e a capacidade de resistir a todos os obstáculos e a todas as dificuldades que caracterizam nossa civilização baiana.

Já escrevi em qualquer parte que toda a Arte, seja literária, seja plástica, que se cria em Salvador, nasce direta e imeditamente da densa cultura do povo. Os orixás de ferro de Mário Cravo, os de madeira de Agnaldo e do Mirabeau Sampaio, nossos mestres escultores, a pintura dos eruditos como Carlos Bastos, Janner Augusto, José de Dome, Henrique Oswald, Hélio Basto e de primitivos como Willys, João Alves, Cardoso e Licídio, os gravadores como Calazans Neto e Emanuel, os desenhistas como Juarez Paraíso, a magnífica criação do tapeceiro Genaro de Carvalho, e sobretudo a extraordinária recriação do mundo da Bahia na obra sem exemplo de Carybé, o mais baiano dos baianos – toda nossa plástica é nascida da fonte dos artistas populares, dos artesões da madeira e da prata, da cerâmica e do ferro, do metal e do barro. Nascida de um Frei Agostinho da Piedade com suas imagens tão fortes, como o São Pedro Arrependido da igrejinha de Mont Serrat, nascida de um João Duarte da Silva, riscador de milagres estabelecido na Ladeira do Taboão, no século passado, a pintar suas aquarelas para autenticar as graças obtidas pelas crentes, para pagar promessas a Senhor do Bonfim e a Nossa Senhora da Conceição da Praia. Esse João Duarte da Silva, figura das mais curiosas, mereceu um estudo esclarecedor de Clarival do Prado Valadares que, com razão e agudeza, intitulou de Universidade do Taboão aquele mundo que vem do Terreiro de Jesus, desce pelo Pelourinho, pelas Portas do Carmo, pelo Taboão, pela Baixa dos Sapateiros, se estende pelo Santo Antônio Além do Carmo, pela Cruz do Pascoal, pelos Quinze Mistérios, mundo de uma intensa vida popular.

Toda nossa Literatura baiana está igualmente plantada nessa realidade cultural da cidade de Salvador, nessa sua força de povo e ai daquele jovem que queira romper com sua gente e criar sua obra na pura masturbação das palavras, jamais chegará a ser um verdadeiro escritor. Sua Literatura não passará de um jogo floral e, em verdade, por mais aparentemente moderno e revolucionário, ele será apenas velho, tolo e acadêmico. Acadêmico no pior sentido da palavra, Sr. Adonias Filho, não como sinônimo de membro desta nossa ilustre Companhia, pois a nossa Academia, vale a pena dizê-lo, não se tranca, medrosa e reacionária, para evitar o sopro das idéias e das experiências literárias. Ao contrário, ela as aplaude e as premia; e, àqueles que, com tais experiências realmente se distinguem, aqui ela os recebe entre seus membros. Para prová-lo basta citar entre os acadêmicos mais recentes o nosso Guimarães Rosa, com sua discutida e tão importante experiência formal. Poderiam até os rançosos reacionários da Literatura acusar a nossa Academia de novidadeira. Ainda bem.

Deixemos, porém, de lado a Academia e nossos colegas de fardão para falarmos nesses jovens acadêmicos – sempre no pior sentido do termo – de um formalismo vão, com seus “ismos” e seus “asti”, seus concretismos, seus anti-romance, sua vã e vazia bazófia. Quanto a mim, sou a favor de todas as experiências, no campo da Arte e da Literatura são todas elas válidas. Sem experimentar, o artista não avança em sua Arte e não faz avançar a Arte. Mas nem por experimentar e buscar novos caminhos, nem por se levantar na necessária e inevitável luta contra os que os precederam, nem assim podem e devem os jovens artistas abandonar a realidade onde se movem e onde criam, nem assim podem faltar às suas obrigações para com seu povo. Esses jovens ansiosos de forma e novidade devem-se mirar em vossa experiência, Sr. Adonias Filho. Vossa obra é admirável exemplo de como é possível trabalhar a forma sem perder o contato com a realidade em torno, sem faltar à verdade de sua gente e de seu tempo.

Em vosso estudo sobre a ficção baiana, publicado no segundo volume de A Literatura no Brasil, realização tão importante de nosso caro AfrânioCoutinho, renovador da crítica nacional, escrevestes:

Tudo o que importa, porém, na ficção baiana, é a ilustração exterior, a fixação da paisagem social, o impressionante enraizamento na terra. Os romancistas não fecham os olhos, não limitam os sentidos e, precisamente porque aceitam sem disfarce o oferecimento da vida e das coisas, não se recolhem a uma atitude intelectiva. Inutilmente buscaremos um analista de paixões, um dialético, um lógico, alguém que aprisione a ficção no círculo de um debate íntimo, uma questão metafísica, uma explicação subjetiva. A supressão desse plano – inconsciente porque acompanha a novelística em toda a evolução, de Rosendo Muniz Barreto a James Amado – decorre sem a menor dúvida do transbordamento da própria terra, sua luz, as cores, a poderosa atmosfera plástica. Para o romancista, a noção que o sentimento estético impôs, e ao qual não pôde fugir, foi a do espaço.

Observação justa, caracterização perfeita: nela cabemos todos nós, os do cacau, assim como os da capital, João Cordeiro, Dias da Costa, Vasconcelos Maia, José Pedreira, Ariovaldo Matos, A Mendes Netto; os ficcionistas das Lavras, do São Francisco, do Recôncavo: Herberto Sales, Ruy Santos, D. Martins de Oliveira, Wilson Lins, Osório Castro, Luís Henrique, Clóvis Amorim. E, como ali provastes, essa foi a herança que recebemos daqueles que, antes de nós, trabalharam e construíram a ficção baiana: Resende Muniz Barreto, Lindolfo Rocha com sua poderosa Maria Dusá, Cardoso de Oliveira com um tão curioso romance de costumes. Fábio Luz, o brilhante e encantador Afrânio Peixoto em cuja obra de romancista pela primeira vez aparece a paisagem de cacau, e, finalmente Xavier Marques, grande do romance brasileiro,fundamental em nossa novelística. Em relação a todos eles e a todos nós é bem justa e precisa vossa observação. Falta acrescentar, porém, que, com o vosso aparecimento no campo do romance, desde a publicação de Servos da Morte, essa realidade alterou-se e a ficção baiana, mantendo essas suas características fundamentais, adquiriu outra dimensão, pois surgiu alguém capaz de colocar em nossa ficção “um debate íntimo, uma questão metafísica, uma explicação subjetiva”. Vossa obra de romancista veio fazê-lo sem, no entanto, em nenhum momento romper essa densa ligação com a terra e com o povo. Vosso exemplo eu o vejo frutificar no romancista Nestor Duarte, debatedor de idéias, e refletir-se em sadia influência sobre os ficcionistas mais jovens, um David Salles, um Noenio Spinola, uma Sônia Coutinho, um João Ubaldo Ribeiro. Todos eles beberam em vossas experiências, em vossos grandes livros. É necessário, porém, que eles aprendam a lição completa para que nãotirem os pés do chão, não percam contato com a terra, não fiquem vagando no espaço, suspensos como balões cheios apenas de ar. É necessário que leiamem vosso citado ensaio essas suas palavras de sábia conclusão:

Os pontos de convergência no romance baiano, porém, desaparecerão em face do denominador comum que é a terra em seu extraordinário poder de inspiração. Os ficcionistas não dispõem de força para contorná-la e seus recursos imaginários nela se integram, reprojetando-a, nesse esforço em vencer uma realidade invencível. O chão, que em sua crosta sustenta o material artístico – as paisagens, o mar, a ilha, o rio, a seca e o garimpo, o cacau e o sertão –, constitui uma espécie de embasamento para novelística. Em nenhum outro alicerce, como este, o regionalismo se firmará como autenticidade. E em nenhuma outra fonte encontrará os veios que o transformem em um corpo tão maciço quanto o romance baiano.

É desse regionalismo que vem a expressão própria, a mensagem geográfica – absorvendo processos históricos e sociológicos – distinguindo-o quando vai fundir-se no leito do romance brasileiro. A característica regional, como a figuração nais sólida, não permite que o romance baiano se desintegre, os romancistas e seus livros, indo preencher classificações na ficção nacional. O critério de escola seria indefensável, absurda qualquer tentativa para situar Lindolfo Rocha como um naturalista ou Afrânio Peixoto como um neo-romântico. Mesmo no agrupamento regionalista, talvez o mais amplo na ficção brasileira, o romance baiano será facilmente reconhecido. Certos elementos, como vimos, apenas ele possui. E de outro núcleo não sabemos que, congregadas as parcelas, possa apresentar semelhante homogeneidade, continuidade e duração.

Essa compreensão, essa fidelidade ao complexo da cultura baiana é que possibilitou à vossa novelística dar um passo adiante em relação ao chamado Romance de 30, o romance da geração surgida nas águas da Revolução de 30 com tudo que aquele movimento popular continha de desejos de um Brasil mais além do atraso e da miséria, da jugulação pura e simples aos interesses do capital estrangeiro, um Brasil de indústrias e progresso, de desenvolvimento e democrático, um Brasil iniciado com aquele movimento revolucionário e que não mais parou nem pode ser detido por nenhuma força. Mesmo quando aparentemente isso acontece, trata-se apenas da ilusão de um instante, miragem de loucos sem perspectiva histórica.

A grandeza da novelística surgida em 1930 reside sobretudo em ter rompido com um idílico romance rural, vindo de Inocência e chegando até0Cabocla, em ter rompido com um romance que desconhecia os problemas do Brasil e do seu povo. O Romance de 30 colocou esses agudos problemas na tábua da discussão e, a começar de A Bagaceira, do mestre José Américo de Almeida, passando por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Otávio de Faria, Marques Rebelo, Lúcio Cardoso, Érico Veríssimo, José Geraldo Vieira, Rachel de Queiroz e este vosso amigo, foram levantados e tratados todos os problemas do homem brasileiro e da terra brasileira. Com generoso ímpeto e o desejo de contribuir para o esforço empreendido pelo povo em revolta. Nunca nenhum de nós pensou, no entanto, em estar concluindo o definitivo ciclo do romance brasileiro. Apenas o estávamos continuando, ao romance brasileiro, partindo das obras dos grandes mestres do Romantismo,do Realismo e do Naturalismo. Em Literatura ninguém está concluindo, ninguém está dizendo a última palavra, escrevendo a última obra-prima, realizando finalmente a experiência decisiva. Ninguém.

Acontece, no entanto, por vezes, como resultado de determinadas circunstâncias históricas, no processo das profundas mudanças econômicas e sociais de um País ou de uma área geográfica comportando regiões do mesmo ou de diversos países, surgir uma geração de grande força a realizar obra básica. Foi o caso desses ficcionistas vindos no bojo dos movimentos revolucionários que eclodiram em 1930. Tão forte sua presença, tão importante sua contribuição no quadro geral da novelística brasileira, que o tempo imeditamente a seguir não comportou o aparecimento de uma nova geração a levantar- se contra ela, a superá-la em oposição à sua problemática ou à sua experiência literária. Os romancistas a surgirem após o ciclo de 30, a surgirem com a guerra, não apareceram como uma negação e sim como um aprofundamento e uma nova dimensão desse romance. Fazendo com que certos problemas interiores do homem passassem a ocupar na estrutura do livro um lugar proeminente, que nem sempre lhe era concedido pela novelística de 30, mais preocupada com os problemas exteriores a envolverem o ser humano e a condicioná-lo. Igualmente o cuidado com a forma, com a língua escrita, e a preocupação com a arquitetura da narrativa, foram objetivos desses novos romancistas, enquanto o objetivo dos ficcionistas de 30 era escrever uma língua mais acessível ao povo, era tomar da língua falada para transformá-la em instrumento literário.

Ficcionistas como Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Josué Montello, Dalcídio Jurandir, Dinah Silveira de Queiroz, Herberto Sales, Dionélio Machado, José Condé, Orígenes Lessa, Mário Donato, para citar apenas alguns, vieram, de uma ou de outra maneira, nos anos imediatamente posteriores ao movimento de 30, acrescentar à realidade de nossa ficção, engrandecida com aquela eclosão tão rica, um trabalho consciente, uma elaboração, um artesanato que lhe deram um novo valor qualitativo, que ampliaram as suas dimensões. Como as ampliaram também ao lhes somar certa pesquisa interior, certo mergulho mais denso na alma do ser humano, universalizando o herói
nacional de nossa novelística. E, se em alguns mais preocupados com o brilho literário do que com a força da vida, as pesquisas formais conduziram a uma esterilização, a uma castração da força criadora; se, em outros, as tentativas de um intimismo e de uma temática dilacerados em sentimentos artificiais levaram apenas a uma cópia em mau carbono de certos autores europeus e de uma má transposição do romance de Dostoiewsky, de Joyce ou de Kafka para nossas plagas americanas e tropicais – não foram esses os casos de escritores que venho de citar e cuja experiência desembocou na atual novelística brasileira, tão numerosa de bons autores e tão diversificada em seus caminhos que nem vale a pena querer enumerar nomes, tantos são os de obrigatória citação.

Entre esses romancistas surgidos após a eclosão do ciclo de 1930; esses que tomaram da experiência ainda recente e a levaram adiante, esses que souberam somar ao “denominador comum que é a terra”, para usar vossa expressão, que lhe souberam acrescentar a essa terra, a esse chão, a nudez interior do homem, sua solidão ao lado de sua solidariedade humana; esses que fizeram de um duro artesanato o caminho da elaboração da Arte. Entre eles, nenhum tanto trabalhou e tanto rendimento deu de seu trabalho como vós, Sr.Adonias Filho. Não vos devemos apenas quatro admiráveis romances como dádivas de um grande escritor a seu povo, a seus leitores. Mas esse romances – do primeiro, Os Servos da Morte, ao último, O Forte, cujas páginas acabo de ler – são ao mesmo tempo uma contribuição das maiores e mais originais ao desenvolvimento de nossa novelística brasileira, ao engrandecimento de nossa Literatura.

É tempo de falarmos sobre esses vossos livros. É tempo de trazermos a esta sala nobre – onde tomaram assento os construtores de nossa Literatura, ou seja de nossa vida imortal, e onde hoje estão alguns dos grandes do Romance, do Conto, da Poesia, da Dramaturgia e da Crítica –, é tempo de aqui trazermos vossas histórias e vossos personagens, os do campo bravio e os da cidade de Salvador para que possamos contemplar a face da vida por vós criada, Sr. Adonias Filho, para mais uma vez nos comovermos com a dramática realidade de vossa gente, empenhada num combate de violência e de ódio, de solidão terrível, de muito amor quase sempre desgraçado.

De Os Servos da Morte a O Forte construístes umo obra de densidade pouco comum em nossa Literatura, onde as figuras se movem como num baixo relevo de tragédias, numa “atmosfera de pesadelo e de loucura, toda aclarada de Poesia trágica”, como sobre um de vossos romances escreveu o crítico Oscar Mendes. Atmosfera de pesadelo e de loucuras, sim, as vossas criaturas estão presas nas malhas de um destino sempre terrível, ao qual não podem escapar, contra o qual é inútil esforço, “criaturas condenadas ao nascer”, como disse o poeta Odorico Tavares. Entre elas se situam, como determinantes, o ódio e a vingança, o desprezo, a maldade, por vezes uma crueldade sem medida.

Os homens são bichos da terra, brutos nos quais de quando em quando brilha o reflexo de uma distante luz de humanidade. Todos os vossos personagens, de Paulino Duarte a Cajango, de Jerônimo a Jairo, vivem em angústia e desespero, não se abre o mundo para eles como vergel florido nem a vida é doce enleio, nem mesmo franca coexistência de homens diversos em diálogo amistoso ou debate leal. Mundo de espantos e ameaças, de sina cruel e de erguidos muros de ódio, barrando e impedindo os claros sentimentos, a bondade, a esperança, a doçura de viver e a compreensão entre os seres. Largos e amplos só os espaços da Natureza, o bosque, a selva, a serra, o vale. Mas nem mesmo essa Natureza é acolhedora e amiga, quase sempre é agressiva e hostil, “paisagem vazia, sem expansão, comprimida na monotonia dos tabuleiros”,como aparece em Memórias de Lázaro. Ou “é a montanha torcida terra que se levantou dentro de um furacão”, como surge em Corpo Vivo. Chão desolado onde só os homens realmente fortes e brutos podem subsistir e multiplicar-se. Porque em todos os vossos romances, sobretudo nos três primeiros – Os Servos da MorteMemórias de Lázaro e Corpo Vivo, vossa desnuda trilogia dos campos do sul da Bahia – os heróis são machos de comprovada rudeza, e suas raízes mais esconsas estão na saga do cacau, naqueles coronéis conquistadores, naqueles trabalhadores que, ao lado da pá e da enxada, levavam o clavinote, o punhal, o parabélum.

Mundo de espantos e de terrores arrastando o leitor numa vaga de lancinante solidariedade para com toda aquela miséria e para com aqueles brutos, mais talvez com os carrascos do que com as vítimas. Porque as vítimas em vossos romances não são, por passivas e frágeis, seres de bondade e ternura, são vítimas apenas porque sua fraqueza as impede de serem desalmados algozes. Não nos infundem piedade e nosso solidário gesto é para com essa parte de animal que todos possuímos e escondemos, é para com aquilo que ainda é informe e inacabado no ser humano, é uma solidariedade mais de consciência humilde e despertada que de bondoso coração.

Não é tanto ao coração do homem que vos dirigis, Sr. Adonias Filho, é sobretudo à sua inteligência, à sua consciência, como a lhe repetir, em cada página de vossa dura novelística, por vezes até cruel, que ainda não chegou o homem a construir seu leito de verdadeiro humanismo, que seu caminho para realizar-se homem de fato e de verdade é ainda um atalho de horrores e misérias, de angústias e brutalidades, de uma gestação feroz que apodrece a própria paisagem em torno e esconde o azul do céu como se o homem não o merecesse. Certas páginas de vossos romances levam a natureza humana ao máximo da crueldade e da primitiva violência, como aquela, por exemplo, nas Memórias de Lázaro, em que Rosália, com seu “coração perverso” menina ainda, matava ratos e furava os olhos aos pássaros. Páginas belas e terríveis.

Não me parece, no entanto, que, em sendo assim tão dolorosa e nua a vossa criação, os seres a viver e a padecer nesses vossos grandes livros, possamos vos chamar de pessimista em relação ao homem e ao seu destino. Penso, para assim concluir, em Cajango, no momento final de Corpo Vivo, vosso romance de minha particular predileção pela alta beleza de sua escritura e pelo perfeito arcabouço de sua concepção. Escrevestes: “Cajango e a mulher, as mãos nas mãos, pisam o chão úmido. As rochas como que se movem, dobrando-se a serra, para recebê-los. Descobrirão as cavernas, examinarão os fossos, encontrarão o caminho.” Encontrarão o caminho.

Vossos seres de tão informe e ao mesmo tempo tão densa humanidade, não estão para sempre perdidos e condenados, condenado para sempre e para nunca mais o ser humano e sua aventura na terra, sua vida vivida e por viver. O homem está caminhando seu caminho, está abrindo seu caminho; mas em vossa opinião ele vem de iniciar essa caminhada, apenas começa a abrir uma vereda ainda estreita e difícil, plantada de espinhos venenosos, habitada por venenosas serpentes. Ainda assim, porém, ele vai adiante, rompe seu peito e sua angústia explode, enrola-se em sua maldade e dela se alimenta, mas vai abrindo seu caminho, alargando sua picada, seu atalho brabo, vossos homens brabos. Homens, contudo, e, por vezes, no âmago de tanta injustiça e dor,surge uma pequena luz, sua débil esperança.

Esses vossos livros do tempo, do chão e do homem do cacau, desse homem marcado pelo sangue generoso e árdego a estrumar a terra, marcado pelo signo da violência desencadeada, de uma saga de brutos em histórias de espantos, são hoje uma das mais altas e belas realizações de nosso Romance e uma presença já indiscutível no Romance contemporâneo. Prevejo para vossa obra, inclusive para vosso mais recente e magnífico romance, O Forte, rápida e brilhante caminhada pelo mundo afora. Vossos livros se destinam ao sucesso internacional, disso não tenho dúvidas. Não tardará que as traduções agora iniciadas se multipliquem a levem vosso nome e nossa fisionomia grapiúna aos quatro cantos da terra.

De caso pensado, deixei à parte vosso último romance, esse O Forte, cuja paisagem não é mais a agreste mata do cacau, cuja realidade humana não é a saga de espantos e horrores. O vosso romance da capital, da cidade do Salvador da Bahia, a história do velho forte condenado a ser destruído. Porque sendo ele vosso romance mais maduro e possivelmente o mais perfeito como construção e arquitetura, porque formando com os três anteriores uma unidade como experiência literária e como emoção e mensagem a serem transmitidas, se bem seja irmão dos demais – eu diria que a brisa da Bahia o percorre, essa viração que cercou e tornou menos intolerável a vida no forte, como que essa brisa dá uma nova graça, uma nova beleza a esse romance, acrescentando-lhe em relação aos anteriores algo de inédito e de surpreendente. Como se uma estreita porta de lirismo se abrisse num muro de ódio e de vingança. É a presença e a influência de nossa cidade, sua força de vida a que ninguém fica insensível.

Nesse vosso romance maior, maior mesmo que Corpo Vivo, o destino do forte é trágico e terrível, e o destino dessa gente, o ambiente, a História, a mesma dessa atmosfera. Mas há um chão de idílio, um estremecer mais terno de corações como se a paisagem onde a História cresce e se afirma e nos domina e nos prende num ritmo que torna impossível abandonar-se a leitura, como se essa História do forte e de Tibiti e Jairo rompesse de súbito com aquela quase impossibilidade de amor que seca e queima vossa gente cacaueira. Porque existe nesse vosso último romance a marca da cidade com sua inspiradora beleza. Talvez por isso Tibiti tenha os dentes “cor de pão” e os “olhos de ferrugem”. O forte a ser derrubado e o amor de Jairo e Tibiti são como que defendidos pela velha, pela antiga cidade.

Amo esse vosso romance, Sr. Adonias Filho, e o li duas vezes apaixonadamente, em duas diversas leituras, uma como a bebê-lo de um trago, outra como a saboreá-lo letra a letra. E desafio quem quer que seja a abandonar a sua leitura antes de chegar à última página, tal a sua força, sua beleza, essa beleza da Bahia, pois é dela, como é dito no romance, “é da Bahia que vêm o barulho e o calor”. Essa Bahia onde, como lá está escrito, “tudo se altera quando as luzes se acendem. A leveza no ar, o vento esfria, vão surgir as estrelas. Os conventos, encapuzados como seus frades, entram nas sombras. Acalma-se o mar, as ondas fracas, não dançam os saveiros.” Grande romance da cidade da Bahia, esse vosso O Forte, grande romance brasileiro.

Perdoai-me, Sr. Adonias Filho, se me perco em adjetivos e não faço a crítica, a análise, o erudito balanço de vossos livros, se quase me esqueço de chamar a atenção para vossa atividade de ensaísta, seja a de ensaísta político, tão distante de minha maneira de ver problemas e soluções, seja a do excelente ensaísta literário que sois, como o prova vosso volume de estudos sobre diversos ficcionistas brasileiros e vossa atividade crítica nos jornais. Não sou crítico literário, para tanto jamais tive vocação, qualidade ou gosto. Sou apenas um modesto contador de histórias de minha gente, de meu povo, do cais da Bahia e das matas do cacau e jamais almejei ser outra coisa.

Se fosse vosso desejo escutar aqui, hoje, nesta noite de festa, de vossa festa, a análise de vossa obra admirável e seu justo conceito, a medida exata de vossa importância em nossas Letras, de como vem sendo realmente grande vossa contribuição à nossa novelística, terias escolhido para vos receber e saudar um dos vários mestres da crítica literária com assento nesta Casa. Mas longe de vós a vaidade, não apenas a mesquinha vaidade dos medíocres, mas também aquela justa e permitida aos grandes de vossa grandeza. Escolhestes com o coração, ao conterrâneo, ao amigo de infância, ao colega de colégio interno, ao companheiro de Letras, à fraternal amizade jamais estremecida seja pelas divergências literárias, seja pelas divergências políticas, pois sabemos, um e outro, Sr. Adonias Filho, o bem pouco que valem os fuxicos da Literatura e as futricas da Política ao lado da inteireza do homem, de sua dignidade. Escolhestes o amigo de uma amizade nascida antes mesmo de nosso nascimento, pois já era de nossos pais. Eis por que só tendes hoje direito a esses desarrumados adjetivos e a pobres louvores sem maior erudição ou penetração crítica. Amo vossa obra de romancista, tenho por ela a melhor admiração, e dessa estima e dessa admiração compartilham milhares e milhares de leitores.

Alegria de minha vida, da mais pura e permanente, tem sido minha capacidade de admirar, de estimar a obra alheia e aplaudi-la mesmo quando não é ela a irmã da minha, mesmo quando o seu autor não pensa como eu penso, mesmo quando me separam da obra ou do autor diferenças e maneiras de ser, pontos de vista. Amo ler um bom romance, ver surgir um jovem romancista, bater palmas a uma experiência bem-sucedida, e creio que admirar é um dos maiores prazeres entre os reservados ao homem e sobretudo ao homem de letras.

Sei que existem alguns homens cujo prazer, cuja alegria, cuja felicidade reside no ódio, no desejo de fazer mal aos seus desafetos. Esses jamais poderão gozar do prazer de admirar e aplaudir, estiolam-se na inveja e no ódio, seres infelizes. Quanta satisfação não me tem sido trazida por vossa obra pela qual minha admiração e minha estima têm sido constantes? Quando um novo triunfo vem marcar vossa carreira de escritor, eu o comemoro como se fora um triunfo meu, como se eu fosse parte e participante de vosso êxito, de vosso trabalho, de vosso talento realizado, de vossa madura experiência literária. Assim, bem sabeis com que alegria imensa me encontro nesta tribuna, e de como é sincera cada uma das palavras de louvação por mim aqui pronunciada. Sabeis quanto desejei vossa eleicão, como queria vossa presença nesta Academia Brasileira de Letras para que assim ficasse a Literatura grapiúna aqui representada em suas duas vertentes, em sua completa realidade.

Houve quem tentasse, mesquinhamente, maliciar com o fato de ser eu, velho e provado homem de esquerda, a recebervos aqui, esta noite, devido às divergências que separam a vossa e a minha atuação política, o vosso e o meu pensamento político. Como se o fato de ser vosso adversário no terreno das idéias políticas pudesse influir em minha opinião e em minha estima por vossa obra de romancista (e a obra de um romancista não se limita aos quadros de uma posição política nem mesmo quando o próprio romancista assim o deseja, pois basta que ela possua um sopro de humanidade para romper com todas as tolas concepções de escola, tendências ou sectarismo), como senão pudéssemos ser amigos de fraterna amizade pelo fato de discordarmos sobre concepções e soluções políticas. Bem idiotas são esses sectários e dogmáticos de qualquer posição, partido ou ideologia, de qualquer seita seja ela de esquerda ou de direita. Como homens políticos, creio possuirmos em comum, mais além das nossas divergências ideológicas, algo da maior importância, Sr. Adonias Filho. É nosso horror, nossa total desestima por todo e qualquer sectarismo, por essa estreiteza de visão e de ação que é a negação da inteligência, e que é o único e mísero capital de certos homens políticos – homens de qualquer tendência –, sua única maneira de fazer política. Para esses a política é apenas o ódio, a injustiça, a perseguição, a negação da cultura e do humanismo.

Não vim da Bahia a esta Casa e a esta festa para falar de Política nem para discuti-la. Vim para falar de Literatura, de vossa obra e de vós, Sr. Adonias Filho. Mas não quero deixar de trazer aqui meu testemunho, como vosso amigo e, ao mesmo tempo, como vosso adversário político, sobre a maneira como exerceis o poder político, como utilizais vosso prestígio político. Vós o fazeis de uma forma brasileira, que é exatamente a negação do sectarismo, da estreiteza, da violência. Vós o fazeis com cordialidade, com a maior preocupação pelos vossos adversários, buscando ajudá-los nas dificuldades surgidas,utilizando vosso prestígio para impedir injustiças, para que uns não sejam demitidos, para que outros sejam libertados. Tendes sido, e posso disso dar testemunho, uma espécie de Ministro das boas causas, coberto de pedidos, agitando-se para atendê-los, a todos, sem querer saber se estais a atender correligionário ou adversário, querendo apenas ajudar. Forma brasileira de fazer política e não fazendo-a como exercício de ódio e de vingança, como desejam os desprezíveis piolhos de todas as tendências e idéias.

Eis por que, Sr. Adonias Filho, mesmo ao falar de política sinto-me aqui inteiramente à vontade ao saudar-vos, eu, com minhas convicções e ciente de vossa maneira de pensar. Porque nem vós nem eu, Sr. Adonias Filho, jamais exigimos de quem quer que fosse atestado de ideologia para lhe darmos nossa amizade ou nossa admiração literária. Isso fica para quem não possui senão o dogma e a seita mesquinha que a nada conduzem, nem a parte alguma.

Aliás, sucedeis nesta Casa a um escritor que era um homem exemplar no que se refere à convivência humana, à doçura de caráter, ao amor pelos homens e à capacidade de querer, de estimar e de assistir mesmo àqueles mais distantes de seu claro pensamento e de seu jamais traído corpo de idéias. Álvaro Moreyra foi neste particular o perfeito brasileiro; sua casa, onde fervilhavam as idéias e discussões, esteve todo tempo aberta e acolhedora para qualquer intelectual, fosse qual fosse sua maneira de pensar. Álvaro tinha horror a tudo quanto significasse limitação da liberdade, era ele um pássaro livre em nossas Letras, livre nos grandes espaços e em sua vida, e não colocou jamais suas idéias como muralha a separá-lo dos demais e, sim, como instrumento de diálogo e de compreensão.

Como grande escritor que sois, ocupais com todo merecimento essa Cadeira antes na posse de um jogral da crônica e da Poesia, de um admirável homem de letras. Mas também o substituís com todo merecimento como cidadão, pois como ele o era, nosso inesquecível Alvinho, sois vós, Sr. Adonias Filho, homem da convivência e da flexibilidade, sois brasileiro como ele, dotado com as virtudes mais brasileiras, as da ternura humana, da cordialidade, da boa amizade, do amor.

Cercado pela admiração da crítica e de vossos leitores, pelo apreço de vossos colegas de ofício, pelo respeito de vossos adversários políticos, pela amizade de todos aqueles que convosco tratam e convivem, aqui chegais, Sr. Adonias Filho, consagrado por vossa obra, mas não ao término glorioso de uma carreira romancista. Esta noite de festa, quando se alegram e comovem os corações de vossa gente, o coração materno de D. Rachel, pulsando por ela e por Adonias Aguiar, que morreu sem ter a alegria de vos ver Acadêmico, o coração solidário de Rosita, o coração filial da outra Rachel, o de Adoniazinho, os de vossos irmãos e irmãs – esta noite de festa é a consagração de um grande escritor de nosso tempo, maduro em sua criação. De um escritor, porém, que ainda tem muito a nos dar, muita história de seu cacau, de sua cidade de Salvador a nos contar, muita experiência a levar adiante, muito ainda a escrever.

Aqui chegais, Sr. Adonias Filho, quando a vossa obra atingiu a madureza e começa a romper os limites de nossa língua para tornar-se universal. Eu vos desejo, nesta hora solene e feliz, bom trabalho, duro e consciente trabalho e êxito cada vez maior, para nosso orgulho e para nossa alegria.

28/4/1965