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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Laudelino Freire

RESPOSTA DO SR. LAUDELINO FREIRE

SENHOR Adelmar Tavares:

Se vos não fora imposto nesta grande hora o uso do fardão acadêmico, mais expressivo se me afiguraria o terdes subido a esta tribuna e vos haverdes investido na posse do vosso título, trajando vestes talares e empunhando a vossa lira.

Não seria faceirice, nem ostentação.
O significativo e dúplice simbolismo para logo diria das alianças que tendes com os mortos da vossa Cadeira, e com o vate sempre vivo, que morto resplandece no seu espaldar.
Vestiríeis a lácia toga do magistrado, para dizerdes de magistrados, e com essa eloqüência só de si semelhante, faríeis justiça aos que em vida com a justiça e da justiça viveram.
Com a lira à destra, já seria a própria eloqüência do coração a insinuar-se no transmitirdes à posteridade os loiros dedilhados.

Tudo isto é, sem dúvida, simbolismo, mas simbolismo apropositado neste momento e nesta noite cheia de esplendor para altear a eloqüência dos sentimentos quando sentidos com verdade.
E esta foi a eloqüência que realmente jorrou do vosso peito arfante sob os rijos doirados acadêmicos, e ao calor da qual iniciastes a formosa oração de hoje por dar-nos, em brevíssima frase, toda a vossa profissão de fé:

– Nada tenho senão minha alma, e nunca reneguei a minha arte.
Foi justamente essa alma de artista vibrátil e sensível, alma de artista que tem dado à arte “o mais imaterial e puro do seu coração”, que atraímos ao nosso convívio, para, em íntima consonância espiritual, sentar-se na Cadeira de um poeta e entoar louvores à fama de juristas.
Onde e como quer que vos apresentásseis, a vossa alma seria sempre a mesma – alma apaixonada do bem, da virtude e do belo, credenciais de raro preço nos dias que passam, tão calamitosos e “infestos à virtude”, época cruel até na paz, como diria o panegirista da vida de Júlio Agrícola.

*  *  *

Às vezes a Academia dá-se ao luxo de inspirar-se, nas suas preferências, numa equivalência curiosa de contrastes, deixando de lado o natural critério das afinidades, aliás jamais observado a rigor.
Seria paradoxal, por exemplo, a aliança de Osvaldo Cruz com o seu antecessor Raimundo Correia, se a palavra grandeza aqui não estivesse a consociar a preeminência do poeta com a supereminência do sábio.

Que maior contraste se nos depara que o da substituição de Alcindo Guanabara pelo Bispo de Mariana, manso pastor que viveu a afugentar pecados?
Quando o Sr. Coelho Neto, prosador por excelência, escolhe por seu patrono a Álvares de Azevedo, poeta por excelência, – que afinidade entre eles há senão a do divino dom com que Deus enriqueceu a tão subidos engenhos?
O princípio da afinidade intelectual nasceu, entretanto, com a Academia.

Vê-lo-eis na Cadeira de Cláudio Manuel da Costa com o Sr. Alberto de Oliveira; na de Gonçalves Dias com Olavo Bilac; na de Alencar com Machado de Assis; na de Joaquim Serra com Patrocínio; na de Evaristo da Veiga com Rui Barbosa, para ficarmos nas em que mais características são as alianças.
Na Cadeira que vos destinou a Academia, Sr. Adelmar Tavares, tendes por patrono um poeta, mas os que nela vos antecederam são prosadores e juristas, feição primordial ainda naquele, dentre estes, que dedilhou a lira com sentimento e graça, mas sem os constantes gritos de agonia, nem a música sempre plangente, raro jubilosa, do vate dos Cantos e Fantasias.

Elegendo-vos, atentou a Academia, não sei se intencionalmente, nas afinidades que vos deixam muito bem na Cadeira de Varela, cujos ocupantes foram Lúcio de Mendonça, Pedro Lessa e João Luís Alves.
Como o primeiro sois poeta; prosador e jurista como os outros.  
Não quis a fatalidade que, eleito acadêmico, lograsse Eduardo Ramos investir-se na posse do título que os seus muitos merecimentos legitimamente conquistaram. Seria no grupo outro, jurisperito e prosador, de estatura e molde dos melhores.

Não sei, Sr. Adelmar Tavares, se, levado por força dos precedentes, e possivelmente com agrado vosso e maior gáudio nosso, poderei vaticinar-vos outra investidura; esta, porém, com as vestes em que desejei aqui ver-vos, e sobraçando códigos em vez de liras.
Afirmai-nos que não renegastes a vossa arte. Ainda bem.

Ponderai, porém, que para muitos, para quase toda a gente, poetas são... poetas.
Tácito, o grande Tácito, não tinha conhecimento exato e preciso da forma e movimentos da Terra. Considerava o nosso planeta como simples superfície; e a noite, para ele, provinha do fato de ocultar-se o sol detrás das terras altas, das serras e serranias.
Quereis ver como lhe chamaram, em razão deste seu atraso nos conhecimentos geográficos e astronômicos da época?

Chamaram-lhe poeta. Neste assunto e em assuntos como este não é Tácito historiador, nem filósofo: é poeta, – escreveu um dos mais argutos e provectos tradutores.
Por brilhantes e fecundos elevaram-se os espíritos eleitos de Lúcio, Lessa e João Luís, e tanto subiram, que chegaram ao cenáculo da suprema justiça.
Mal vos não ficaria também o sentenciardes aqui perto e, do mesmo passo, entre nós, desferirdes cânticos de amor e saudade.

*  *  *

Diríeis, ou melhor, diriam que tais cânticos são lágrimas sentimentais, lágrimas do passado, lágrimas que ninguém mais chora.
Cuidado, porém, com o homem de olhos enxutos, porque homem é que, não sendo capaz de ceder aos impulsos do coração, está fora da vida do sentimento, e impassível aos enleios do amor nas suas manifestações mais puras.
A verdade, aqui, toda inteira, resume-a a própria musa:

– ...! quem é que não sabe
Numa lágrima sentida
Aliviar-se da vida,
Que pesa no coração? –

Quando o poeta, cuja alma se acrisolou no desalento e na dor, meneia a fronte e nela deixa apagar-se a chama do ideal, que perfuma as tristezas da vida; ou, abraçando-se a idéias transviadas, faz desviar-se a poesia das fontes da “inspiração afetuosa, da meiga singeleza, do puro lirismo” – esse poeta, mais céptico ou reflexivo do que sensível, deixa de ser poeta.
O que seja a poesia, diz-nos a pena mais embebida no espírito do seu tempo, diz-nos Camilo Castelo Branco: – “É tudo o que se nos revela ao espírito sem nos molestar o entendimento; é tudo o que nos banha a alma de unção, desprendendo-a dos liames terrenos; é, enfim, esse toque súbito, chamado arrobamento, ao qual o espírito segue espontaneamente como librando-se muito acima da terra... De lá caímos, é verdade, quando o comércio com a realidade nos acorda da letargia instantânea; mas, embora despertos, sentimos que há dentro em nós uma lâmpada nunca extinta.”
Continuemos a formar a “detestável família arqueológica que ninguém tolera”, família de idealistas, românticos, sentimentalistas, ou com outro epíteto que lhe queiram dar.

*  *  *

Estou assim, sem nenhuma intenção, Sr. Adelmar Tavares, a crismar-vos de romântico.
E acaso ficareis pesaroso com o aludir a esta feição, tão da vossa índole e feitio?
Somos um povo que se não deve queixar do Romantismo, porque foi ele que nos deu plêiades brilhantíssimas de poetas, que foram e continuam a ser os maiores nomes nas boas e belas letras.
As escolas literárias são necessariamente grandes capítulos na história das literaturas, e longe a idéia de proclamar o poder despótico do Romantismo sobre as demais.
Com o alvorecer da poesia romântica, como escola, não foram decerto decepadas as cabeças de Aristóteles, Horácio e Boileau, o “cérbero trifauce”, que, à porta do Parnaso, resguardava as prerrogativas da escola clássica. Não.

No meio do estrépito dos alaúdes românticos, ressoem novamente as liras clássicas – exclamou o bardo glorioso da Arte de Amar, e dos Amores de Ovídio, cego predestinado para as musas e que maravilhosamente soubera tanger, com iguais harmonias, alaúdes e liras.
O que fez a reação romântica, dentro da disciplina de escola, foi opor ao princípio da imobilidade da velha corrente o princípio do liberalismo na arte e na literatura.

– E, se ruíra o Capitólio, por que não havia de cair o Parnaso?
Tornara-se excessivo o furor da imitação, que reprimia os surtos da fantasia. A imaginação, sem asas, não se elevava, e com ela rastejava uma poesia sem ideal.
O século XVIII, só para trazer-vos um exemplo, ao mesmo tempo que ostenta a audácia sem limites dos enciclopedistas, mostra-nos uma das suas mais altas mentalidades acorrentada à tibieza incompatível com a expressão assombrosa do seu gênio.

É Voltaire, a quem “toda imagem arrojada intimida e as próprias audácias sublimes de Corneille amedrontam” – tudo em virtude, segundo lhe notara a crítica, “da influência das doutrinas que aconselhavam a cópia dos antigos por única teoria literária aceitável”.
Voltaire, escreveu André Bellesort, foi romântico como foi republicano, com um profundo instinto clássico e monárquico; chegou a dominar-se de superstição pelas regras do Classicismo.
E quem diria que o homem que, no século, encarnou a emancipação do pensamento, se submetesse tão docilmente a tão férreo dogmatismo?!

Outra coisa não sendo a poesia que a expressão do impulso íntimo para “levar o verdadeiro até ao ideal”, isto é, não sendo senão o “reflexo dos movimentos d’alma, iluminados pelos resplendores da fantasia” – os seus princípios ativos, por isso que se inspiram no elemento humano, não podem ficar detidos dentro dos preceitos aristotélicos.
E não ficaram, decerto. A reação triunfou, estribada na verdade, que ninguém deixa de sentir, refletida nesta frase: – Sede homens antes de serdes escritores.

Enquanto dentro em nosso peito palpitar um coração, “e a mente abrasada lhe arrebatar essas palpitações às regiões infinitas, a poesia romântica há de existir, ser fecunda e universal”.
Fecunda, universal e eterna, porque é a expressão verdadeira dos estados d’alma, dos sonhos vagos e das comoções íntimas; é a poesia das ânsias que se enraízam nas profundezas do ser; é a poesia da ternura, da saudade, do infortúnio e da dor.
A vida sentimental exterioriza-se numa escala de paixões, – e o romantismo, que as exprime, é a poesia da vida e a própria vida da poesia.

Nasceu com o primeiro coração que amou, sofreu e cantou.
Quando Jó, beduim sublime, revoltando-se contra a injustiça da sorte e de Deus, – mal se vinha desprendendo a vida da névoa indecisa e tênue do alvorecer da história, – compôs, com as lágrimas inconsoláveis da sua infinita tristeza, a epopéia da dor – revelou-se, já foi dito, “o primeiro romântico da antiguidade”.
Ferindo com o plectro “as cordas plangentes do seu saltério, chora Davi as desgraças das filhas de Sião”; e, nesses salmos penitenciais, quem é que gemia senão a alma dilacerada do “primeiro gênio inspirado desta patética família de poetas elegíacos”?

O amor que ressuma do Cântico dos Cânticos – que é senão romantismo? Que nome aí terá, senão o de romantismo, o respeito à virtude e ao amor puro da aldeã ingênua e casta, que se libertou das tentações de um mundo sensual e corruto?
E Isaías a enfrentar a impiedade do seu tempo com as setas de fogo da sua “eloqüência inflamada de imagens, que nenhum estilo moderno excedeu” – que foi senão um gênio triste e fatídico, mas um gênio precursor do mais puro romantismo?

“E todos os outros profetas”, inquire a crítica esclarecida, “que são senão outros tantos românticos na acepção mais espiritualista e apaixonada da palavra?”
Guarda o mundo o perfume desta poesia semi-religiosa e semiprofana, que, suavíssima, se desprende dos livros sagrados, e consagrados.

*  *  *

Desta poesia que de tão longe vem, Sr. Adelmar Tavares, sois um lídimo representante.
Apraz-me para logo significar a primeira impressão que me causa a vossa obra poética, na qual imprimistes a vossa organização finamente literária, assaz sensível à sonoridade dos ritmos: é que dela trescala perenemente, como de um pequenino frasco de pura essência, o perfume da saudade, brando perfume que se confunde às doçuras da virtude mais acentuada na vossa organização moral – a bondade.

Esses os estados d’alma mais propícios à concepção e execução de uma obra d’arte, porque a fazem o resultado das construções ideais que se esquivam ao contacto dos aspectos materiais da vida.
Sentis-vos ditoso – e no-lo confessais – com serdes o poeta da saudade:

...sou feliz. Toda a glória
Da grande felicidade
É ter também uma história...
É ter do que ter saudade...

Tendes sem dúvida uma história; mas no albor da vida, não se tem ainda uma história, senão pedaços de histórias, trechos de mocidade, banhados às vezes de lágrimas, mas sempre irisados dos sonhos e esperanças, que acompanham o coração, e não o deixam resvalar às desilusões.
Bem o dizeis:

A gente nunca está só...
Ou se está com uma saudade
De um sonho desfeito em pó;
Ou se está com uma esperança
De nova felicidade...
Outro sonho que se alcança.

Sempre uma sombra com a gente,
          Constantemente...
Uma sombra... Boa ou má...
Só é que nunca se está.

Dizeis ainda que

A vida tem dois caminhos...
Um todo cheio de flores,
Todo cheio, outro, de espinhos...

Uns pela estrada florida
Passam, bem longe das dores,
Só tendo flores na vida.

Outros, bem tristes, se vão,
Trazendo os pés nos espinhos
E espinhos no coração...

Todos temos espinhos e amarguras n’alma, cada um com a sua rosa do lago plantada bem perto do coração.
Um dia essa flor inclina-se, descora e morre – e a finalidade dolorosa é a que simbolizais nestes versos maviosos e sentidos:

Era uma vez uma rosa
Plantada à margem de um lago,
Como um sonho augusto e vago
Plantado no coração...

Veio um cisne muito branco,
E enamorou-se da rosa,
Na mais pura e fervorosa,
Na mais ardente paixão.

Um dia a mão de algum noivo,
Colheu a mimosa flor,
Para presente de amor
A quem su’alma prendeu...
E dizem que o cisne branco
Ficou tão cheio de mágoas,
Que uma tarde, sobre as águas,
Abriu as asas... morreu.
...............................................

Lembra este romance tristonho o cadáver de um sonho, que tendes no coração.
Felizes os que trazem dentro no sacrário do peito o culto da saudade e nela encontram lenitivo para as suas dores, como na prece tem o crente o conforto das suas dúvidas.
Quando poetais como que o fazeis bem aconchegado à visão de uma mulher linda e triste, que é a sombra inspiradora de todo o esforço da vossa arte.
O artista, depondo aos pés da sua Deusa as oblatas do seu dulcíssimo alaúde, repete-lhe a cada instante:

Viver feliz com o teu amor  
  E – nada mais.

Fosse pobre pescador, com uma barquinha branca, uma cabana, e em volta da cabana – coqueirais, – viveria feliz com o seu amor. Fosse simples pastor, vivendo na sua choupana, e em volta da choupana – laranjais, – viveria feliz com o seu amor.
Idealiza o poeta uma separação motivada por certo capricho para logo abrir su’alma ao perdão:

Eu que proclamo odiar-te, eu que proclamo
Querer-te mal com fúria e com rancor,
Mal sabes tu como em segredo te amo
O vulto pensativo e sofredor.
Quem vê o fel que em cóleras derramo
No ódio que punge desesperador,
Mal sabe que, se a sós me encontro, chamo
Por teu amor com o mais profundo amor.

A vossa musa, Sr. Adelmar Tavares, não reflete as reações bruscas de um temperamento nervoso, mas mostra-nos um sonhador como banhado das brumas do cair da tarde, ou nos esplendores das brancas névoas de uma manhã tropical, fugindo às espirais das tormentas, mas em devaneios de um subjetivismo amoroso e casto.

A mim parece-me que sois um destes torturados que dentro em si mesmos sentem a própria força criadora num ideal realmente sonhado, que tanto mais se afasta quanto mais é desejado.
Trazeis uma dor íntima, que a vossa musa não revela, mas se compraz em acariciar com as doces recordações do vosso primeiro amor:

Tudo se perde. A esperança...
A fé... A ilusão querida
De uma jura que enganou.
Tudo!... Menos a lembrança
De quem a gente na vida
        Primeiro amou...

Foi-se-vos a vossa rosa do prado, deixando-vos abraçado à imortal saudade da que consigo levara as alegrias do poeta.
Não sois infinitamente um triste, mas tendes diante de vós uma campa, onde se vão aninhar, com as primaveras que ela oculta, as carícias do vosso viver.
Daí, dir-se-á, a vossa “constância em amar uma saudade”:

Chorar sem esperança, de saudade;
Chorar quem nunca mais olhos verão;
Chorar alguém que nos levou metade
Da vida, e nos levou o coração...
Chorar quem demos tudo de amizade,
Amizade de amor, pura afeição
Nascida da alma, filha da bondade,
Do que irradia em nós como um clarão;

Chorar quem foi razão de um existir,
Chorar todo um presente que consiste
Num passado, sem fé por um porvir;

Ah, singela expressão da minha mágoa!
Quem poderá dizer, lágrima triste,
O profundo da tua gota d’água?!...

Outra musa vos está a advertir, porém, que

Quando as rosas da vida nos fenecem
Das folhas mortas linda virgem sai,
Como novas roseiras nascem, crescem
Da semente da rosa que se esvai.

E tendes aquela doce e pequenina cruz, diante da qual, em transportes de íntima comoção, podeis dizer: – Luz dos meus olhos.
Sim, tendes um anjo a florir a vossa existência, e a quem perfumais com a pureza dos cuidados e afetos:

.......................................................

Minha filha, meu sonho, meu carinho,
Amparo meu quando eu ficar velhinho,
Luz dos meus olhos que serão sem luz...
Deus me dê forças neste mundo vário,
Para levar-te ao cimo do Calvário,
Oh minha doce e pequenina cruz!

O desalento da vossa poesia afina melhor o vosso estro com as coisas tristes do mundo, com os pequenos dramas de amor e com o que de evocativo há nas cenas e quadros do natural.
E, com efeito, mais se embevece a vossa musa na contemplação de uma paisagem crepuscular, qual a da linda praia de Olinda, onde a vossa meninice esvoaçou, do que em subir ao píncaro do rochedo, relancear a vista pela amplidão do mar, cantar as horas alegres do dia, agitar-se ao sopro das grandes imagens, ou bater asas em vôos arrojados.

Não há fragilidade de inspiração, mas a inspiração de veraz lirismo. É menos a poesia do pensamento do que a poesia do coração, que referve n’alma, matiza e doira com os encantos da ternura a vida, a luta e as próprias potências do céu e da terra.
Com que inefável melancolia, Sr. Adelmar Tavares, descreveis, ao pôr do sol, aquela praia linda, plantada à beira-mar de Olinda:

  Aquela praia linda,
De Milagres, plantada à beira-mar de Olinda,
Ao pôr-do-sol é como um sonho que se esfuma...
  Como um lençol de bruma
Estendido às alvíssimas areias.
Ninho branco de ninfas e sereias.
Fica entre coqueirais a igreja pequenina,
  Alva como uma lágrima do céu,
Como uma noiva, de capela e véu,
  Que estivesse a esperar
O noivo que se foi para não mais voltar..

*  *  *

Pelas tardes serenas
   Em surdina
Passa um rumor de penas,
São elas – são as tristes andorinhas,
Que vão falar de amores marinheiros
E de fadas marinhas,
Aninhadas às folhas dos coqueiros...
O sino tange... O som do sino é como ai
  Que pela praia vai
A se perder... Do alto da tarde desce
Qualquer coisa de prece...
– São as Ave-Marias.
É a canção outonal dos jangadeiros
Que levaram assim dias inteiros
De pescarias. –

Minha história de amor ficou também contigo,
         Branco recanto amigo!
Na água do mar, na luz do sol, na voz do vento,
Hás de sentir que está meu pensamento!
Ninguém te entende mais do que a minh’alma
Que em sonhos, noite calma,
Como um fantasma errante
Vai-te beijar distante...

*  *  *

         Agora és muito linda,
         Alva praia de Olinda,
Coalhado todo o mar de vigas e batéis...
– Mar que, escravo de ti, vem te beijar os pés.
– Milagres – que é que têm teus coqueiros sombrios?!
Que estranhas emoções, ao pôr-do-sol, revelas!
Quanta esperança vem no fumo dos navios!...
Quanta saudade vai no côncavo das velas!...

Bastariam tais versos para consagrar o poeta, se antes já ele se não tivesse imposto como trovador espontâneo e delicioso.
Mantendes a tradição da velha poesia trovadoresca, e dessa flor provençal sois delicado e sincero cultor.
É, e sempre foi, o trovador vassalo do amor, e do amor faz o seu culto mais fervoroso.
As canções que aformoseiam a “Luz dos meus olhos” e a “Noite cheia de estrelas” refletem a mesma vassalagem amorosa dos trovadores provençais.
Com elegância e elevação observou o douto Sr. Júlio Porto-Carreiro, o mais carinhoso dos vossos críticos, que a vossa poesia se volta sempre para a figura feminina, que vos comanda o cérebro e o coração, e a quem ofereceis em holocausto a vossa arte e talento.
Confirmais inteiramente a observação:

Não sei porque, quando canto,
Por mais alegre, a canção
Tem uma gota de pranto
Que me vem do coração.

– Amar é obra perdida –
Mas, que dissessem, queria,
Se não fosse amar na vida,
A vida – que valeria?!

Sou jardineiro imperfeito
Pois no jardim da amizade
Quando planto um amor-perfeito
Nasce sempre uma saudade...

A Deus cabe a sem-razão,
De não ser o amor perfeito
– Quando fez o coração,
Não fez do lado direito...

A ventura que hei buscado
Pela vida, sempre em vão.
Que vezes não tem passado
À altura de minha mão...

Esta a feição delicada, ora graciosa e sempre sentida do trovador.
Tanto que surgiu, revelou-se a trova poesia rigorosa na técnica, na rima e sonoridade rítmica. Aperfeiçoou-se na beleza dos temas, na agudeza dos conceitos e na harmonia das palavras. Cultivaram-na finos espíritos entre nobres e burgueses, reis, damas e monges; e foi nesse ambiente de aristocracia que se desenvolveu até chegar à perfeição, sem se desvestir da nobreza das suas origens.
Da antiga província romana, onde nasceu para a nossa língua, emigrou como alva flor, para, perfumando a arte noutros meios, entreabrir-se aos brincos da fantasia.

Modo natural e simples de poetar, é a expressão mais espontânea dos sentimentos que o amor inspira. Será sempre, por isso, poesia do coração, na qual apenas entra a arte para enfeitá-la com as pompas da forma, que, apurada e perfeita, só pensamos encontrar nos vates, em quem, delindo-se a imaginação, a métrica artificiosa supre os primores da originalidade e do sentimento.
Não se percebe na vossa técnica o esforço da perfeição da forma. Não vos preocupais com a combinação mágica das tintas, nem nas linhas dos desenhos revelais nenhuma audácia.
Sempre o desartificioso, a simplicidade, a naturalidade.

Sem sacrificardes a verdade que na pintura buscam as imagens exprimir, não sois, entretanto, inteiramente esquivo às pinceladas coloridas e fortes.
A poesia é já de si uma pintura que, quando animada de imagens que dêem a sentir a representação simbólica das coisas, realiza o tipo de uma linguagem que mais se ajusta aos seus fins, isto é, institui “uma língua ao mesmo tempo harmoniosa e imitativa, que com os sons, números e acentos comuniquem às palavras, quanto pode ser, o caráter das coisas, de forma que não só mova o ânimo com a expressão dos sentimentos, o colorido das imagens, mas também encante o ouvido com a beleza física dos sons”.
Dais de quando em quando cópia desta língua harmoniosa e viva, imitativa e forte, como neste passo em que descreveis, no silêncio da noite, o som dolente do violino:

É uma sonata histérica e doentia,
Que geme e ri, que grita e que cicia...
Sobe em dorida imprecação, gargalha,
Clama, pragueja, e se enfurece, e ralha,
E vem descendo, e anseia, e se quebranta,
E trila, e arrulha, e chora, e reza, e canta!

As hipotiposes imprimem a estes versos muito vigor e elegância. O iterativo daquele i sutil e triste nos dois primeiros, do a brilhante e arrojado nos que se seguem, vigorados pela epizeuxe que preside àquela seqüência verbal – tudo são ornatos e matizes de intensa e bela expressão.
Outros irmãos vossos, e dentre os maiores, nos mesmos transportes da grande arte, largo uso fizeram desta opulência nativa do pátrio idioma.
Na soberba e maravilhosa descrição de uma enchente, tem Alberto de Oliveira pinceladas deste vigor:

E tudo atroa, e espuma, e ferve, e ronca, e brama.

Que é que faz o poeta na sua ânsia de perfeição? Responde Bilac:

Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua.

Para Raimundo Correia todo mundo sente dentro n’alma um Atlântico invisível... que

...ora, inchado, estoura, e arqueja, e nuta;
Ora, túrgido a cr’oa vitoriosa
De rutilante espuma, aos céus levanta;

Ora, plácido ofega... e só se escuta
A saudade – sereia misteriosa,
Que em suas praias infinitas canta.

E vós, Sr. Adelmar Tavares, como aqueles, estais a sentir, ao longe, no mistério da solidão noturna, a doçura de um som, que

... vem descendo, anseia, e se quebranta,
E trila, e arrulha, e chora, e reza, e canta.

*  *  *
Para responder a qualquer reparo à escassez da obra de Heredia, François Coppée, ao recebê-lo na Academia Francesa, reconhecendo embora que no poeta a abundância é dom maravilhoso, acentuou que o fim da arte não está no produzir demasiado, mas na perfeição, naquela mesma perfeição que houvera o poeta atingido com o seu único livro Troféus, cujo êxito fora, como indica o título, triunfal.

Essa perfeição está no doloroso e supremo empenho que revela o artista de a possuir e alcançar.
O espírito humano, já foi dito, e todos o sentimos, é o infinito possível. Essa possibilidade, vogando no seio da eterna harmonia, gera as ondulações do belo, em presença do qual sente o poeta, torturado do ideal, a necessidade de que o “seu alaúde troveje no inferno, cante ou gema na terra, suspire no céu e se disperse pelo infinito”.
O vosso alaúde não troveja, nem se dispersa: suspira ao enleio da ternura e canta os hinos do amor e da saudade.

*  *  *

Evoquemos, Sr. Adelmar Tavares, a figura austera e simples daquele lavrador, – “que fez da terra o seu ideal querido” – diante de cuja imagem se fundiram a dor filial e o lavor da arte, no soneto que intitulastes –  Francisco, meu pai:

Como que o vejo... O chapelão caído
Sobre a cabeça branca de algodão...
Buscando o campo – o dia mal nascido,
Voltando a casa – o dia em escuridão.
............................................................
Mas um dia, eu, pequeno, vi, cavando,
Sete palmos de campo, soluçando,
Uns homens rudes... Tempo que já vai!

“Francisco, adeus!” diziam repetindo.
– Meu pai desceu de branco... Ia dormindo...
Fechou-se a terra... E não vi mais meu pai!
Que sentiria o coração desse bom velho se aqui estivesse a pulsar junto ao vosso, ao ver coroar-vos a fronte o prêmio merecido?

*  *  *

Tendo-me cabido a grata missão de dar-vos as boas-vindas e saudar-vos em nome da Academia Brasileira de Letras, de modo mais expressivo não poderia fazê-lo do que vos cingindo com as mimosas flores da vossa musa.
E não é sem uma doce comoção íntima, filha da amizade, que, ao receber-vos entre nós, posso confirmar-vos:

Esta, Sr. Adelmar Tavares, a vossa verdadeira noite cheia de estrelas...