A nossa Academia, a casa de Machado de Assis, recebe hoje o escritor Geraldo Holanda Cavalcanti. Sensibiliza-me particularmente poder dizer estas poucas palavras nesta noite muito especial.
Acompanho Geraldo desde a nossa mocidade na querida cidade do Recife, nos corredores, nas salas, na biblioteca da emblemática Faculdade de Direito, antigo reduto de intelectuais ativos, de escritores ou candidatos a escritores, não menos motivados. Ainda me lembro da sua silhueta esguia atravessando a Praça Adolfo Cirne, com o violino na mão esquerda, e na outra, um livro volumoso, provavelmente um código. Entre a suave melodia da música e a aspereza da normatividade, ele equilibrava as suas assonâncias e dissonâncias. Aí começamos uma conversa, um diálogo aberto e até agora sem interrupções.
A nossa interlocução girava em torno da literatura, da filosofia, da política e, frequentemente, das artes, não fora Geraldo o escritor, o artista plástico, o músico, sempre discreto. Como discreto continuaria a ser a vida inteira, mesmo em outros ofícios menos discretos.
A Academia Brasileira de Letras, ao receber Geraldo Holanda Cavalcanti, acolhe um verdadeiro poeta.
Ele tem sabido cultivar outras espécies literárias, e menos literárias. Para todas, carrega consigo a inabalável vontade de inventar o mundo, inventar e se deixar inventar pela realidade ─ essa trama complexa de homens e coisas, esse caminho tenso, pontilhado de obstáculos. A poesia tem sido sempre, basta observar a cronologia da sua produção poética, a inseparável companheira de viagem.
O seu primeiro livro, de poesia, O mandiocal de verdes mãos (1964), foi editado na Coleção Tempoesia, das Edições Tempo Brasileiro, casa editorial cinquentona, presidida até bem pouco pela competência do meu querido e saudoso irmão Franco Portella. Os originais me foram trazidos pelas mãos diligentes da sua admirável companheira, de vida, de artes e ofício, Dirce Cavalcanti. Logo em seguida, comecei a receber recomendações entusiásticas de colegas que não sabiam das nossas pré-históricas ligações recifenses, e se dispunham a alertar-me sobre a grandeza do poeta. Todos eles enfatizavam a qualidade da sua poesia e, os nomes maiores que mais me tocaram foram os de João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, José Guilherme Merquior. Não precisava. Mas foi bom saber que eles também reconheciam o superior fazer poético do Geraldo. O poeta José Paulo Moreira da Fonseca, diretor da coleção, nos trouxe a sua incondicional acolhida. O livro foi lançado sem pompas e circunstâncias, mas logo obtendo a mais criteriosa adesão crítica.
Depois a carreira diplomática o levou pela vida afora. E sempre nos reencontramos nas mais diversas geografias. Voltei a publicar os seus belos poemas “O elefante de Ludmila” e “A palavra” na Revista Tempo Brasileiro, e posteriormente incluídos nas suas Poesias Reunidas.
Sobre a sua brilhante carreira de diplomata já falei nas palavras de recepção ao presidente do PEN Clube. Agora, preferiria falar somente do escritor, para mim o seu traço mais distintivo. Pretendia ater-me apenas ao intelectual. Mas, a sensatez de minha mulher, Célia Maria, também pernambucana de quatro costados, entendeu que eu devia referir-me mais uma vez ao diplomata tão exemplar quanto polivalente, que nele, por discrição estrutural, ficou menos conhecido. Ou porque dispunha igualmente da antevisão de que no poder eventualmente estamos, e na vida e na poesia constantemente somos. Compreendo e me identifico com essa posição. A proximidade do poder, aqui e lá fora, só me facilitou, entre um ou outro raro clarão, a leitura de algumas parcas apostilas sobre a miséria humana. O poeta, aquele que vê antes, certa vez registrou, com inigualável propriedade:
“Meu heroísmo é viver
imune ao incenso da inveja
ao halo fugaz das vitórias
às pérfidas regalias do poder
Meu heroísmo é sobreviver”
Já disse e repito. O nosso encontro começou há algumas décadas, quando dois jovens estudantes se cruzaram nos corredores da tradicional Faculdade de Direito do Recife. O primeiro estava de partida; o segundo apenas chegara. Um vinha de Olinda, e como que atravessara a rua. O outro veio da Bahia, transpôs o tempo no espaço. Nem por isso deixaram de criar o MRI - Movimento Renovador Independente. A proposta do grupo era razoavelmente inovadora e incomodamente independente. A renovação não foi bem entendida e a independência logo deixou de ser suportada. Mas por aí se iniciou o diálogo, o intercâmbio, a interlocução, que perduraram e perduram, e que foram reabastecidos ao longo do tempo e dos mais diferentes cenários, nacionais e internacionais. E que prossegue aqui, nesta Casa de tradições vivas, e não apenas de comendas ornamentais.
A discrição, a polidez nata, o cuidado ético, tornaram-se responsáveis pela pouca visibilidade da admirável trajetória profissional e intelectual do Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti. Por isso, procurarei reconstituir o seu percurso.
Embora formado em Direito, nunca praticou qualquer das profissões para as quais os cursos jurídicos lhe haviam preparado. Sua predileção pelo Direito Internacional Público o fez pensar, desde cedo, que era na diplomacia que encontraria sua vocação. E assim foi, e assim tem sido.
Entrou no Itamaraty por um concurso direto, no qual tirou o primeiro lugar.
Depois de um estágio na Divisão Cultural, para onde foi distribuído por ninguém mais, ninguém menos, do que João Guimarães Rosa, em função da nota que havia tirado na prova de Cultura Geral, logo foi chamado a trabalhar com o Chefe do Departamento Econômico, Embaixador Edmundo Barbosa da Silva, o que, de certo modo, determinou o início de sua carreira, pois teve uma sucessão de cargos e postos orientados para os problemas econômicos e financeiros. Assim, como Secretário de Embaixada, em seus primeiros desempenhos no exterior, na Embaixada em Washington, na missão em Genebra, e novamente em Washington, foi com problemas econômicos, comerciais e financeiros, que lidou. Dessa época, guardou especial memória da colaboração que prestou na elaboração dos estatutos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da participação nas negociações financeiras para consolidação das dívidas do Brasil com os credores europeus, no Governo do Presidente Jânio Quadros, e da contribuição prestada para a formulação da plataforma dos países em desenvolvimento, na questão agrícola, durante a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).
Os anos em Moscou o aproximaram dos assuntos políticos, mas logo foi chamado pelo Governo a colaborar, como Chefe do Escritório do Instituto Brasileiro do Café, em Nova Iorque, na época das difíceis negociações a respeito da entrada do café solúvel brasileiro nos Estados Unidos, voltando a tratar de temas comerciais.
Trouxe-o de volta às questões políticas o Embaixador Mário Gibson Barbosa, convidando-o para assumir o Consulado Geral em Hong Kong, com a função não declarada de observador da República Popular da China. Nessa qualidade, empreendeu as gestões iniciais junto às autoridades chinesas que culminaram no estabelecimento das relações diplomáticas com a República Popular da China-RPC, quando já estava na Secretaria de Estado, no início do Governo Geisel, numa antecipação premonitória da importância que esse país viria a ter no cenário internacional.
Na Secretaria de Estado, ocupou-se da condução da unidade de planejamento estratégico da política externa e das negociações internacionais com ela relacionadas.
Nomeado Embaixador junto à UNESCO, e eu o pude ver diretamente em ação, teve a oportunidade de dar sua decisiva contribuição às gestões em favor da inclusão de Ouro Preto e de Olinda na lista do Patrimônio da Humanidade.
No México, considero ter sido relevante, ao lado da atuação bilateral que aprofundou no campo cultural — pude constatar pessoalmente a excelente penetração que tinha nesse meio —, sua participação como Presidente do Comitê Indigenista Interamericano, em defesa das culturas indígenas do continente.
Em Bruxelas, ao lado do trabalho de esclarecimento e defesa da imagem do Brasil junto ao Parlamento Europeu, veio a articular os passos iniciais para o diálogo Mercosul-União Europeia. Isso o levou a ser convidado para atuar como Conselheiro para Assuntos do Mercosul do Instituto de Relações Euro-Latino Americanas (IRELA), de Madri, mesmo depois do seu afastamento da carreira.
Retirado de suas funções diplomáticas com o advento do Governo Collor, por uma medida provisória que inabilitava os Embaixadores após quinze anos de exercício, apresentou sua demissão dos quadros do Ministério, havendo sido imediatamente convidado a assumir a Presidência da Ericsson Telecomunicações do Brasil, onde lhe coube a delicada tarefa de defender os interesses nacionais, por ocasião da implantação da telefonia celular em nosso país.
Em 1994, foi convocado pelo Governo a novamente colaborar em questões diplomáticas, na qualidade de Representante Pessoal do Presidente Fernando Henrique Cardoso, no Grupo de Chefes de Estado e de Governo em Apoio ao Multilateralismo (Grupo Carlsson) que, entre outros assuntos, tratava do tema da revisão da Carta das Nações Unidas. Recebeu ainda a incumbência de colaborar na criação da Comissão de Vizinhança com a Colômbia, e de assumir sua gestão como Representante do Presidente, destinando-se a Comissão a desenvolver programas com o objetivo de dirimir os problemas de fronteira e estabelecer, nessas áreas, projetos de cooperação de impacto social nos dois países. Em seguida, voltou a atuar no plano multilateral chefiando as delegações do Brasil nas conferências mundiais sobre população (Cairo, 1995) e sobre Assentamentos Humanos (Istambul, 1996).
Em 1997, foi eleito Secretário Geral da União Latina (Paris), cargo que exerceu até o fim do ano 2000. Muitas são as atribuições da União Latina, como, inclusive, a concessão do prestigioso Prêmio de Roma, que anualmente consagra um novelista dos países membros. Mas o marco definitivo de sua passagem pelo organismo pode ser considerado a série de grandes exposições de arte, realizadas na França, na Itália, na Espanha, e em vários países da América Latina. No Brasil, o público carioca pôde visitar a bela exposição de arte barroca boliviana no Museu Nacional, e o de São Paulo, a grande exposição de pintores do Século de Ouro espanhol, na Pinacoteca, ambas trazendo pela primeira vez ao espectador brasileiro obras primas da pintura dos dois países. Mas, a excepcional exposição do barroco brasileiro no Petit Palais, em Paris, a mais completa já realizada no exterior, a cuja inauguração compareci, foi o grande momento do programa de difusão cultural empreendido na sua administração.
Vale a pena mencionar que, além de haver recebido as mais altas condecorações do Governo brasileiro, é detentor, igualmente, de algumas das mais distinguidas condecorações estrangeiras.
Ele prefere dar especial destaque à comenda da Ordem dos Caetés, que recebeu de Olinda, pelo seu trabalho em favor da inscrição dessa cidade, que quase pode considerar como o seu berço — pois para ela se mudou com menos de dois anos de idade e dela somente sai vinte anos depois — na lista do Patrimônio da Humanidade.
Como se vê, a sua agenda internacional aponta para um novo internacionalismo, capaz de compreender certas emergências apenas esboçadas, bem como valorizar o jogo não raro tenso das diferentes identidades culturais. Sobretudo com relação à Ásia, à África e à América Latina.
Apesar de todos esses cargos e encargos, o escritor latejava, pulsava dentro do seu corpo e de sua alma.
O seu primeiro livro, O mandiocal de verdes mãos, já era uma poesia de corte vertical, mas sem qualquer cerebralismo inócuo. Apenas a recusa do desperdício verbal, da dilapidação retórica, da estridência oca. A argúcia crítica de José Guilherme Merquior constatou logo esse percurso silencioso, procriativo, no interior do qual o próprio lirismo habita descontraidamente. Lembro-me bem de um poema-poética da “Vigésima estória”:
“o ofício de ver por dentro
as coisas que não tem fora
de ouvir sons que não vigoram
o ofício de não ter medo
das coisas que não existem
e das que nos circuntolhem
conhecer do quanto doem
na malha que nos reprime
o ofício de abrir palavras
que delgadas como pontes
religuem as coisas sem nome
ao mundo das coisas dadas”.
Não é difícil perceber que o poeta, na melhor tradição ocidental, reflete o tempo todo sobre o seu fazer, sobre essa poesia entretextual que dialoga com os seus companheiros de ofício, passados e presentes. E mesmo quando escreve não apenas sobre, concede voz ao poeta, furtivo, dividido, o sujeito cindido nos tempos modernos, todo quebrado entre a memória e a evidência, ele sabe reunir pedaços de vida atravessados de lirismo. Lirismo ativo, interpelativo, associativo. Jamais contemplativo ou dissociativo. O que me leva a acreditar que existem poetas por dentro, e fazedores de versos por fora. O comedimento, nessa hora, se choca com o histrionismo. O histrionismo vem a ser o homicídio da representação. O mais que é menos, porque é excedente. Quando o histrionismo entra por uma porta a representação sai pela outra.
Na Revista Tempo Brasileiro publicamos igualmente dois textos referenciais do trabalho poético de Geraldo Holanda Cavalcanti. Esses textos, já citados, são “A Palavra”, uma espécie de metalinguagem vitalizada, e “O elefante de Ludmila”, talvez a versão irônica da vontade de poder. Todos esses poemas, e outros inéditos, passaram finalmente a fazer parte do seu Poesia Reunida (1998), que mereceu, em 2000, o Prêmio Fernando Pessoa, da União Brasileira de Escritores. O volume contém introdução de Álvaro Mutis, na qual o escritor internacionalmente consagrado considera o texto do nosso poeta, cito, “uma obra-prima da poesia brasileira, ou mesmo ibero-americana”.
Mas Geraldo Holanda Cavalcanti é ainda, e como se não bastasse, o excepcional tradutor de Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Giuseppe Ungaretti. Com a tradução de Montale ele obteve, em 1998, o prestigioso “Premio internazionale di letteratura Eugenio Montale”, de Cremona, Itália. Vale acentuar que não se traduz apenas o vocábulo ou o verso. Traduz-se principalmente a experiência intersubjetiva, traduz-se a vida da poesia que é a vida do mundo. E para isso é imprescindível elevar-se ao núcleo da irradiação poética originária. Indagando, perguntando, interpelando até.
É este o intelectual sem adjetivos, Geraldo Holanda Cavalcanti, o escritor convincente e o servidor público que se faz acompanhar de exemplar folha de serviços prestados ao seu país, um intelectual de hoje, denso, aquele que se encontra em condições éticas e técnicas, para levar adiante a ação-reflexiva e a reflexão-ativa, para defender e promover a liberdade de expressão.
É na poesia que Geraldo Holanda Cavalcanti se dá por inteiro, mesmo que aos pedaços. O seu discurso nada tem de contínuo, e muito menos de contíguo. O arco temático projeta um raio extenso que vai desde o amor, ou seja, a vida, até o espectro indecifrável da morte, com quem um dia se deparou diante do corpo inerte da mãe:
“É a morte assim, tão parecida à vida?
Um sopro mais forte como de cansaço
e súbito o silêncio, as unhas brancas e
o frio
Minha mãe nem me viu. Me ouviu? Quem sabe!
Haveria o que dizer se me olhasse?”
O tenaz “aprendizado do impossível” (a expressão é do poeta) jamais resvala na poética do luto, porque cultua o enfrentamento da dor sem pranto e sem lamúria. Nele, a esperança alterna a todo momento com a melancolia. E se, como diz o poeta, na sua “receita de sabedoria”, “o que morre primeiro é a esperança”, a melancolia é a primeira que chega, talvez para aguçar ou compensar a perda da esperança. A melancolia não exclui de todo a esperança.
Poucas vezes me vi diante, tão verticalmente, do saber-fazer da construção poética, chegando até o limite ilimitado do silêncio, como no poema de alta voltagem lírica
“Em louvor do silêncio”:
“Fiquemos calados, querida
se é o amor tão evidente
o que acossa nossas bocas
Pois que palavra mais rica
do que a lúcida sintaxe
que maneja nossos corpos?
Roço tua pele e tua vida
e em nosso silêncio explodem
cometas enlouquecidos”
O poeta ama, e ama tão completamente, que prefere calar, o amor que deveras sente. Sou levado a imaginar que inaugurou o amor silencioso, tão proscrito na alma dos amantes tagarelas, e procurou conduzir até a fronteira do impossível, a gestão impulsiva e escrupulosa do afeto, como naquele segmento do misterioso poema “Clarice”:
“O que queremos dar
é no silêncio que
entregamos. Somente
o silêncio é inteiro”
O silêncio, ninguém duvide, é uma caixa de surpresas. De afetos conturbados e afeições bem administradas. Somente o silêncio pode dizer as palavras que não conseguimos falar. Bem aventurados aqueles que alcançam guardar o silêncio repleto, ou “repleno”, como dirá agora o nosso poeta. Parentes próximos daqueles que auscultam os batimentos cardíacos da vida que circula pelas frestas, pelo sistema sanguíneo, pelos escaninhos do silêncio. Aliás, falando deles me vem logo à mente o nome dos poetas Joaquim Cardoso, João Cabral, Ferreira Gullar, Félix de Athayde.
Porque nunca acreditou na verdade completa, na “cidade inteira”, na paisagem fixa, ele não perde de vista a realidade, e percebe que o real se move o tempo todo, pelas ruas e curvas da cidade, e distribui, com igual espessura pictórica, a opacidade do asfalto e os verdes de todas as cores da Zona da Mata. Aliás, o artista plástico que um dia montou a bem-sucedida capa de O mandiocal de verdes mãos, está sempre presente nas suas decisões visuais. No seu descreviver.
Não é possível discernir sobre o trabalho infatigável do escritor Geraldo Holanda Cavalcanti sem mencionar o tradutor vingado. Nas línguas italiana, inglesa, francesa, espanhola, ele nos trouxe autores admiráveis. Os desafios, as armadilhas, os ganhos do tradutor, como ele nos fez ver, no volume de sua autoria, Memórias de um tradutor de poesia. Ele conhece o que se propõe a ser o respeito e a independência frente ao original. O que torna a tradução, quando bem realizada, um trabalho de coautoria, de interpretação. Como sempre conseguiram os seus companheiros de esporte radical, Abgar Renault, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, Mário Chamie, Haroldo de Campos, Marco Lucchesi, Alberto Pucheu. Mas ele, que aprendeu com a boa modernidade a noção do limite, dirá mais adiante: “Minha primeira tentação é dizer que não há tradução de poesia. Há tradução de poemas”.
Vale lembrar que, ao longo do itinerário criativo, como autor e tradutor, em nenhum instante se deixou levar pela avareza da influência, sobre a qual tanto tem se equivocado o notório, embora não notável, ensaísta americano Harold Bloom. O nosso tradutor em questão parece adotar sempre a mesma postura: manter a distância regulamentar ou a fidelidade altiva.
Poucos conseguem subverter o papel da influência: o importante não é investigar o que o modelo, nem sempre inquestionável pode ditar, mas pensar o que o possível influenciado fez da influência. O mais revelador do acompanhamento desse processo imprevisível é a fascinante reinvenção da influência. O nosso Machado conhecia muito bem esse trajeto inóspito. E quem buscar outros esclarecimentos procure o ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, o autor de Do riso à melancolia.
Cabe aqui uma pequena pausa para reverenciar a erudição respeitável e bem comportada, avessa ao luxo e à ostentação: a magnífica edição de O cântico dos cânticos, famoso e enigmático poema bíblico, o Ensaio de interpretação através de suas traduções. Esta vem a ser a sua maior obra de erudição. Jamais da erudição costumeira, exibicionista, convencional, e provavelmente inútil. É antes a erudição a serviço da elucidação e do conjunto da obra. O uso da erudição, tão superior quanto criterioso, fortalece em nós o entendimento e os laços de cumplicidade. O livro bíblico até hoje cercado de interrogações, revela e se revela. É quando se aliam, coisa rara, a percepção do poeta e o conhecimento do scholar bem plantado. Um novo jato de luz ilumina zonas que pareciam inevitavelmente soterradas.
Merece destaque a série narrativa de Encontro em Ouro Preto, reunião dessas, agora quem esclarece é o narrador, “artimanhas que o inconsciente elabora à nossa revelia”. O poeta Marco Lucchesi com a sua reconhecida probidade crítica, vê aí a “prosa calibrada, na fronteira, no claro-escuro da palavra, na ambiguidade que parece brotar de situações apresentadas”. A ambiguidade, como se sabe, nunca é o desvio ou a ocultação, porém o modo de ser plural da linguagem literária. Como aquela famosa Capitu, de olhar “oblíquo e dissimulado”.
O dedicado trabalho da linguagem leva o narrador compulsivo a dar vida aos mínimos detalhes, a agarrar o instante pelos cabelos: o encontro desencontrado, os sonhos descarrilhados, o mistério da troca de nomes, a descoberta de Agnes, a miragem mobilizadora de Helena, a bendita maldição do violino, a autoconcentração de Augusto, a irrupção fracassada do improvável colega de escola, até a 49ª vítima.
Às vezes chego a ler Encontro em Ouro Preto ─ vacilo ─ como o conjunto narrativo movido pelo realismo imaginário ou um longo poema em prosa, lírico e curvilíneo. Até porque os padrões narrativos institucionalizados já não conseguem manifestar a multivivência da realidade.
Já foi possível observar que o lirismo se afirmara desde a elevada interlocução com as estórias de Guimarães Rosa. Agora, essas saídas “fantásticas”, configuram e aceleram o que prefiro designar como realismo imaginário, sintagma pleonástico, mas nem por isso menos convincente.
Chegamos agora às suas memórias escritas no volume As desventuras da graça, que viemos a ser informados tratar-se de memória-ficção, capaz de combinar perigosamente a “vertigem do tempo”, nas palavras do memorialista, e as ficções do real, no registro do espectador. Há, sobretudo o equilíbrio instável, no roteiro arriscado de quem se dispôs a saltar por cima das armadilhas das lembranças perdidas, que aqui não é tão somente a rememoração, o inventário, a revelação. Nem a queima de arquivos, nem o ajuste de contas, abusos ilícitos da prática memorialista. Os seus autores, os seus interlocutores, os seus desencontros, as suas variadas cidades desfilam tranquilamente pelas suas páginas.
Permitam-me uma pequena digressão. Tenho para mim que a guerra do Médio Oriente é uma guerra de memórias. Cada um dispara contra o outro o seu arsenal memorialístico. Ninguém está disposto a esquecer nada. E juntos, estranhamente unidos, ameaçam a paz de todos nós.
O autor de As desventuras da graça não esconde nada, nunca trapaceia. Mesmo sabendo que “toda história narrada é uma interpretação”, ele procura deixar bem claro que “tudo o que neste livro está escrito é verdade, e nada do que aqui está escrito posso (diz) garantir que foi assim que ocorreu”.
Ele está longe da “vida passada a limpo”, como queria o nosso grande poeta, porque está perto da vida paradoxal, a uma só vez em baixo e alto relevo.
Convém insistir que a poesia nunca será propriedade privada do poema. Ela pode ser descoberta em muitos outros lugares.
O católico familiarmente cuidadoso, solidamente plantado, cultor das práticas e cerimônias religiosas, jamais imaginaria que teria bem adiante, não sei se sob o calor dos trópicos ou o frio moscovita, o seu encontro, ou desencontro, com as desventuras da graça. Criado no código de chumbo do jesuitismo inaciano, detentor do poder cultural desde a colônia, desde os idos e havidos da Ratio Studiorum. As cenas e contracenas dessa experiência marcariam para sempre a “tumultuada aventura de minha (sua) vida religiosa”. Mas nunca deixou de abrir o maior crédito de confiança ao anjo da guarda. Também como ele, não me furtei, em conferir especial papel a esse generoso personagem místico. Foram a minha mãe, Maria Diva, e a minha mulher, Célia Maria, quem introduziram em minha vida, os prestimosos e valiosos serviços do anjo da guarda.
É enriquecedor poder compartilhar da densidade intelectual, da amplitude existencial do olhar agudo ao recolher poeticamente os pedaços de vida que se cruzam e se fragmentam sobre e sob os endereços diversos da realidade. Dele também se poderia dizer que nada do que é humano lhe é indiferente.
Talvez ele surpreenda com a construção antecipada da estrutura simultânea do tempo. O tempo nunca foi uma série compartimentada de presente, de passado e de futuro. Suponho que estamos diante da primeira memória não sucessiva. Logo, convém prestar atenção na sentença que ele nos adianta: “Construo o passado à medida que o reconstituo”.
Quando a memória e a ficção se unem lealmente os resultados literários chegam a ser surpreendentes.
Antes de concluir, não querendo abusar da paciência geral da nação literária, gostaria de salientar a consistência argumentativa na obra monumental de elucidação reflexiva: A herança de Apolo (Poesia Poeta Poema), livro substancioso, compêndio involuntário, porém compêndio, em vias de publicação. Todo esse movimento de construção, de desconstrução e de reconstrução da aventura poética chega a seu estuário complexo, culto e compreensivo. Aí se configura e se desfigura exaustivamente o espólio cifrado da metáfora. Essa linhagem que se estende desde os apologistas até os denegadores da ocorrência metafórica, como o grande poeta espanhol Antonio Machado, que não se exime de afirmar: “Bons poetas são parcos no seu uso”. Que não ouçam, ou que ouçam essas afirmações os vates estridentes, servidores insidiosos da poluição sonora. Ainda bem que, ao lado das explosões escandalosamente metafóricas, insistem e persistem as edificações silenciosamente metonímicas.
A herança de Apolo, largo itinerário percorrido por poetas e pensadores na tentativa vã de definir a poesia. Palavras, palavras, acionadas pela ambição malograda. Porque toda definição termina sendo reducionista. Aproximar-se, viver junto, contar com razoável repertório de referenciais, vem a ser o modo mais indicado de compreender. É o que faz Geraldo Holanda Cavalcanti nesse empreendimento substancial, astuciosamente culto, constituído por fragmentos da lucidez matizada. Mostra ele os vários cognomes do poeta, mostra, sobretudo, as variações viscerais dessa interminável peripécia, harmoniosamente distribuída entre a poesia, o poeta e o poema.
As insuficiências teóricas, o analfabetismo, induzem a confundir, simploriamente, poesia e poema. Como se uma não fosse parceira ─ mais até, instância constitutiva ─ da outra. Tudo isso se esclarece nessa consolidação das leis, mais do que legais, legítimas, da poética de todos os tempos. No entanto, o nosso poeta sabe, e deixa transparecer limpidamente, de forma interpelativa, na metalinguagem do poema “A palavra”, tão festejada por Mestre Abgar Renault:
“Quanto carrega cada
palavra proferida
e de quanto se alarga
quando ouvida?
Quanto dura a palavra
que da boca ferida
no instante se apaga
recebida?
Quanto deixa gravada
a palavra colhida
na memória apagada
esquecida?”
Ao falar do poema, previsível morada da poesia intermediada pelo poeta, Geraldo Holanda Cavalcanti faz uma severa advertência: “deixar a definição do poema aos poetas é rodar num círculo vicioso”. É um dos pontos altos dessa articulação persuasiva, ampla, geral e irrestrita, da Poética e da Retórica de Aristóteles com as inflexões sancionadas pela Enciclopédia francesa.
A herança de Apolo é o manual, talvez um pouco volumoso, mas em nenhum momento dispensável, que os poetas deverão carregar consigo. A panteonização precipitada do poeta corre o risco de autorizar o esbanjamento falimentar. A todo instante é urgente tomar decisões sobre o inesperado ou o esperado da palavra caprichosa. Da palavra esquiva e raramente explícita no interior da qual significado e significante pactuam a sua contemporaneidade. A poesia, basta observar atentamente, deve ser a promessa e a instigação que o poeta recolhe e conduz ao poema, no jogo crispado de metáforas e metonímias. Sem concessões à grandiloquência.
O exercício bem-sucedido da consciência crítica, em meio à liberdade conquistada pela linguagem, será certamente um valioso suporte dessa jornada. A liberdade da palavra nunca deixou de existir, nem debaixo das formas paleo ou neoconservadoras. O que se torna inadiável é evitar as derrapagens irracionalistas. O impulso “arrebatador”, por exemplo, não pertence à esfera da racionalidade. A oportuna dessublimização deve ser lícita, prudente até, e não escandalosa ou abjeta. Caso contrário pode cair na vulgaridade.
A busca valéryana da correspondência entre o pensamento e a linguagem logo se transforma em ponto de honra. Responde assim à formulação de Ezra Pound, por ele veiculada, segundo a qual o “poeta precisa conhecer o seu ofício assim como o músico conhece a sua teoria”. Fica difícil aprovar as contas do poeta analfabeto, em matéria de poesia. Como não raro acontece.
O poema é o domicílio da poesia. Quem dirige essa arriscada travessia vem a ser o poeta. Se ao condutor faltar aptidão, mesmo tocado pelas melhores intenções, a poesia pode se perder no meio do caminho.
Além do mais a poesia não envelhece. Já o poema envelhece, está sujeito à esclerose múltipla da palavra. O desequilíbrio entre forma e conteúdo alimenta essa ameaça, e pode estimular a agonia. Daí a repulsa que ainda provoca, agora mais do que nunca, a formatização. Já a forma, ao contrário, confere vida ao conteúdo, e existe por causa dele.
É mais do que coerente o longo percurso poético de Geraldo Holanda Cavalcanti. Sessenta e tantos anos de reflexão densa, sobre e com a poesia, da dessacralização da palavra até a desmitificação do poeta.
Os momentos finais de A herança de Apolo são incisivos: “Não é por ser poeta ─ conclui ele ─ que o poeta é superior a quem quer que seja. Muito menos deve sentir-se ele, legitimamente, “escolhido” por forças superiores para cumprir uma missão em virtude de sua qualidade de poeta. Não existe uma missão do poeta, como não existe uma missão do músico, do pintor, do romancista. Não estão os seus ofícios governados por categorias éticas estranhas ao próprio universo da arte”. E acrescenta: “Nenhuma razão existe, pois, para que o poeta se sinta sagrado, divino, profeta, ou o que mais seja que lhe confira o direito a uma especial reverência por parte dos demais seres humanos”.
Foi com este verdadeiro poeta que iniciei um diálogo, ininterrupto, respeitoso, profícuo, em dias longínquos, nas margens do rio Capibaribe, e que prossegue, e prosseguirá sempre, à beira da baía de Guanabara, nas janelas entrecruzadas dessa nossa outra cidade querida.
Poeta Geraldo Holanda Cavalcanti, a Casa de Machado de Assis, do bruxo enigmático e sábio, a partir de agora é sua também.
Rio de janeiro, 18 de outubro de 2010