Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Abl > Cgi > Cgilua.exe > Sys > Humberto de Campos > Humberto de Campos

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Luís Murat

SENHOR Humberto de Campos:

Há esforços que abrangem uma área muito mais vasta do que geralmente se supõe.
Os homens são energias congregadas para afeiçoá-los a um certo fim, a uma certa necessidade que, embora se oculte e desperceba, é, contudo, a razão de ser da sua vida, a manifestação de alguma cousa que jaz no fundo de sua natureza moral.

O espírito que agrupa essas energias é o que vai imprimir ao conjunto a direção de que necessita para atingir o alvo a que deve chegar.

Em meio às dificuldades que se lhe antolham, alguma cousa que ele desconhece, que foge à sua compreensão, não cessa de influir para que se não perca um só dos esforços necessários àquele progresso.

A vida não é um prazer, nem uma dor, mas um encargo grave que é mister conduzir e terminar com honra para nós, dizia Alexis Tocqueville.

Em verdade o é, e de tal modo avulta com os anos, que difícil se torna carregá-la se alguma cousa, a que nos referimos, a não estimular e levar à solução final.

O que é mister é não forçar a marcha e, tampouco, remiti-la. O que incumbe fazer é obedecer ao instinto que nos está abrindo caminho, obviando ao que possa levantar-se para obstar a que levemos por diante a nossa tarefa.

Em toda parte há homens que arrostam com os maiores obstáculos, não para conseguirem alguma cousa, mas porque alguma cousa os obriga a esforçarem-se, a abrirem caminho, a lançarem mão de todos os meios para chegarem ao seu fim.

Esses é que são verdadeiramente os mais dignos, os mais aptos, os vitoriosos.

O que julgou ser o incentivo que os elevou às posições mais notáveis, não foi mais do que um elemento subsecivo, aparente, cooperador, a que teve de obedecer, porque representava o que naturalmente devia repontar das circunstâncias que o destino ia criando para preparar ao elemento oculto, de que ele carecia para sua expansão.

Essas circunstâncias não surgem ad ephesius: são aparências da realidade oculta, formas que traduzem o que, de per si só, não poderia manifestar-se, pois a realidade está em nós mesmos, faz parte da nossa constituição espiritual. É aí que devemos procurar a causa e não em um fato ocasional, de importância secundária.

O que a palavra de um homem ilustre iluminou e fez ressoar, estava à espera só de um estímulo, precisava, apenas, de um bafejo, de um sopro, de um pouco de calor, para abrir-se e espalhar o seu perfume...

Ao espírito de espontaneidade individual é que deve o mundo o que possui hoje de grande nas artes, nas letras, nas ciências, na filosofia, na indústria, no comércio e na política.

Mas que é esse espírito de espontaneidade, tão sobrelevante e acatado, senão aquele gérmen, que permanece sem vida no fundo da nossa organização moral, aguardando, apenas, que uma rajada imprevista venha trazer-lhe o que a sua natureza ansiava por encontrar – o estímulo, o calor, o bafejo?

É a fonte, sim, de todo o desenvolvimento normal do indivíduo, e Tocqueville, acertando em atribuir a essa fonte vital tudo quanto possuímos de verdadeiramente notável, sem o querer, talvez, deixava, em esboço, uma teoria da qual podia sair mais desenvolvida a fórmula sobre a qual fora assentar tudo que resume a ação do pensamento, no sentido do progresso geral da humanidade.

Já se disse, e vós o repetistes, Sr. Humberto de Campos, que uma existência fácil e suntuosa prepara mal os homens para lutar contra as dificuldades, e deixa adormecer a consciência da sua própria força, sem a qual a atividade humana é desprovida de toda eficácia.

Que induzira a uma tal conclusão quem não fora dos mais mimosos da fortuna? O conhecimento objetivo dos fatos? Não. Mas o conhecimento do mundo interior; da nossa natureza moral; do espírito em que se acham acumulados todos elementos com os quais não podemos deixar de contar para a nossa diretriz na vida. É ali, e não fora, que devemos procurar a causa do nosso desenvolvimento intelectual, pois a normalidade não tem outra origem senão o que constitui o fundo da nossa natureza. Abrir mão dessa observação, ou insistir em tomar o efeito pela causa, é não ter uma ideia perfeita do fundamento ou da razão de ser da nossa aparição no cenário do mundo.

Daí a frase do mesmo autor, afirmando pertencer este mundo à energia e acrescentando que nunca deve haver descanso na vida, qualquer que seja a época. Se o esforço está fora de nós, e mais, ainda, dentro de nós, é claro que o que dissemos acima é uma verdade.

Se uma intensa aspiração basta aclarar-nos o caminho, a desanuviar-nos o destino, a transformar a possibilidade na realidade, como atribuir a ocorrências fortuitas a causa do nosso progresso e do nosso triunfo?

As resoluções tomadas na mocidade têm uma significação mais profunda do que geralmente se pensa. O espírito que conduz a nossa marcha não é jovem como a muitos pode parecer. Vem atravessado por correntes opostas, mas que nem por isso desprezam esse fundo de solidariedade que constitui o eixo da nossa evolução. A complexidade espiritual não exclui a harmonia, é antes, até, uma condição dela: são como as tempestades do polo. Quantas energias ocultas não se associam para que se dê esse fenômeno tão maravilhoso? Quantas forças desencontradas não vêm aliar-se para formar aquele núcleo, ao alcance dos nossos sentidos?

Nos desertos polares há uma festa de luzes, disse-o a clarividência de um dos mais acatados espíritos da França. As duas almas do globo, acrescentou, no seu duplo prestígio, elétrico e magnético, expandem-se, criam, organizam, triunfam.

Nas nossas almas, como nos desertos polares, há também uma festa de luzes. As torrentes jorram em cambiantes; os elementos cruzam e despedaçam as nuvens; há uma verdadeira expansão de todo o nosso organismo, dentro do qual se opera essa transfusão feérica, essa explosão de formas multicores, de que se reveste a ideia, quando associada a outras forças menos dotadas de energia.

Há na natureza humana um poder que não se nos revela senão a meio, e é isto, de certo, o que nos autoriza a crer que nos nossos corações há uma agulha imantada, como a dos polos. E, de fato, quem poderá negar que ela se não fizesse sentir, Sr. Humberto de Campos, no vosso destino?

Sempre emocionada, sempre agitada por correntes opostas, ei-la a dirigir-vos os passos, a encaminhar-vos para um certo rumo, sem ao menos suspeitardes. E, ao fim da jornada, quase, relanceando o olhar pelo caminho percorrido, ainda julgais que a causa, o motivo do vosso êxito, da vossa boa fortuna, fora a passagem de um dos nossos homens de letras pelas regiões do Norte, de onde sois filho.

É sempre assim. Nunca reparamos no que nos alçapremou e glorificou.

Apegamo-nos a verdadeiras bagatelas para justificarmos o nosso triunfo na vida. Ora, é o pintor West a explicar como se tornara notável na sua arte: – “foi um beijo de minha mãe que me fez pintor”, dizia ele; ora, é Correggio, afirmando que o gênio se lhe revelara à contemplação das obras de Miguel Ângelo; ora, Lutero, acreditando fosse a leitura da vida de João Huss o que o levara a empreender os seus grandes trabalhos, como se não houvera nele, já, o gérmen que apenas precisava de um incentivo para medrar e florescer.

Estudando a obra de Emílio de Menezes, divergis de alguns que viam nele um humorista.

Estabeleceis, com muita habilidade, a distinção que deve haver entre o humor e a sátira, distinção que eu nunca pude perceber bem. Tão sutil é a nuance que os extrema; tão aproximada a índole de um e de outro que estava quase a dizer que o humour é a Sátira, mas através dos nevoeiros de Londres, e da natureza singular e de difícil penetração dos anglo-saxões.

Alegria séria e fleumática, zombaria cheia de amargor, mal oculto sob a forma de panegírico; melancolia que torna ao sorriso irônico; eis o humour.

Os snobs de Thackeray, obra apontada como a mais perfeita no gênero, não é só uma boutade com o fim apenas de fazer rir ou de dizer mal. São uma série de estudos, cujo fim principal é fustigar, com espírito, os ridículos da sociedade e da administração inglesa. Sobreleva, nesse escritor, um profundo sentimento de piedade, embora oculto. Que importa, se a intenção é a mais alta, e o pensamento extreme se apraz ao revolver o que a sociedade ou o homem tem de mau, para, sob o látego do chasco, corrigi-los, orientá-los, modificá-los?

Não eram coléricos, nem rancorosos os sentimentos que o coração de Thackeray aninhava; tampouco se lhe não vincava a fronte, numa explosão de ódio concentrado, se uma dessas vergonhas sociais lhe anunciavam os olhos.

Sua pena não visava à destruição; nem se aprazia em trucidar, mas em levantar, em melhorar, em reformar.

Achava a hipocrisia o vício capital da devota Inglaterra. – William Hughes firmava que o seu intuito principal era mostrar o egoísmo que afeta a bondade; o orgulho, sob a máscara da humildade; a bonomia estudando os próprios efeitos diante de um espelho. E acrescentava: Thackeray possui o raro engenho de pintar a comédia humana sem cair na caricatura.

Ora, Emílio de Menezes era exclusivamente um caricaturista. Nenhuma das qualidades dos humoristas ingleses encontro nele.

Ressalta do espírito geral da obra de Sterne, por exemplo, a inclinação bufa.

Suas homilias, suas prédicas aos seus paroquianos, são mais chistosas que elegantes ou profundas. Cheias de analogias grotescas, de comparações bizarras, perdiam o caráter suave, delicado ou grandioso da forma erudita ou sagrada da palavra que ressuma do Evangelho, para se perderem em deleitações, cuja excentricidade tantas vezes fora increpada pelos seus paroquianos.

Sacrificando, destarte, o que a homilia encerra de grave e sugestivo, ao prazer dessultório e deprimente do grotesco, viu seu nome, nem sempre acatado, embora o sentimento que emprestava às suas criações.

Se examinarmos, entretanto, com atenção as suas obras, que releva do conjunto delas? Que há nessa organização que assim se impôs à nossa admiração? A sua delicadeza; a sua sensibilidade tão viva, sempre interessada no amanho das emoções; dando vida, quase que eterna, ao que parecia destinado a viver um momento; a imaginação, com as suas asas velozes e possantes, a percorrer espaços sem fim; a submissão a todos os nadas que o atraíam e o dominavam, muitas vezes, atormentando-o; pondo em perigo a sua sagacidade; essa bondade e essa melancolia, misturadas a todos os acessos da sua alegria e da sua loucura. Sofria? delirava? Que eram seus sonhos, que o êxtase, a volúpia espiritual, ou as vibrações d’alma, acordavam no fundo de sua natureza psicológica, tão complexa e interessante?

Como tocar essas essências preciosas que a sua alma, como uma abelha, fabricava, com tanto amor, e que Voltaire anotara com um sorriso de bonomia?

Que eram elas, ou o que continham, que levava o mesmo escritor a compará-las aos painéis de Rembrandt?

E essa quase divinização do sentimento, não seria o sublime? Fazer viver e sentir muito não será abrir caminho à perfeição? E quem aperfeiçoa não dá à obra de Deus um destaque que lhe faltava, pelo modo como a desfearam, a reduziram, a obscureceram?

Eu não vejo como se possa comparar, quem não teve outro fim senão o ridículo dos seus semelhantes a esses corajosos reivindicadores da honra e da liberdade humana.

Que é que os levara a combater? Que exprimem essas lutas senão um grande e incomparável interesse pela causa do bem? Esses corajosos ataques que visavam, senão aplainar dificuldades tremendas e seculares, abusos e opressões, com um grande ardor, com uma grande fé, com uma grande persistência, e, às vezes, mesmo, com uma grande resignação?

Dickens, estudai-o bem, é a expressão da simpatia pelo sofrimento das classes deserdadas, e a tal ponto subira esse ardor combativo que é considerado um verdadeiro reformador, devotado à causa do progresso.

Na Petite Dorrit, a verve explode em rasgos de filantropia e estoicismo; a face do monstro é avergoada sem piedade, os abusos do governo são batidos na bigorna de uma crítica inexorável; a rotina burocrática desfibrada, e o nepotismo, a desmembrar-se do corpo anquilosado da aristocracia inglesa, e não sei já a quantos séculos em plena desmoralização pública, desfeita em pedaços e arrastada à execração da verdadeira moral e da verdadeira política.

Tudo, em Dickens, é condenação dos prejuízos retóricos, da papelada inútil, amontoada, finalmente, nos arquivos da nação; é o ridículo como arma de propaganda, de revolta, de demonstração sistemática e definitiva de que a constituição política do país onde nasceu, não é o que se pensa, nem o que se devia esperar, pois não tem faltado à Inglaterra quem lhe mostrasse o verdadeiro caminho das reivindicações sociais.

Sua obra retalha o que o abandono deixou sem cuidado, o que a fé desconjurara; o que a aliança com os prejuízos apeara ao grau inferior das contingências naturais; o que a hipocrisia e o egoísmo extremaram, ao invés de igualar e disciplinar para as grandes lutas da vida. A quem fez ele a guerra? Às paixões que aviltam a alma, e não a tocam do ouro dos sentimentos superiores, quando um objetivo desinteressado e altruísta inspira o ato. Se são acerados os seus gracejos é que de alguma parte vem o molde em que os funde, a craveira em que os mede, a liga em que se misturam pensamentos elevados e instintos baixos a fermentarem no bas fond da sociedade que ele vitupera e argui.

Não lhe passam, à toa, pelo escalpelo, os lordes pletóricos, as damas ridículas, os cockneys em molambos; os basbaques dengues; os benjamins efeminados.

A tesoura com que retalha essas carnes é cruel; mas necessária Assim, Swift, e antes dele, na caligem dos templos bíblicos, os Jós, os Isaías, os Ezequiéis.

Examinando, porém, a estrutura íntima desses vingadores excelsos dos infelizes e oprimidos, não encontro nenhuma diferença entre eles – diferença fundamental, orgânica. Não vejo como classificar Emílio de Menezes nesse grupo de defensores dos direitos e prerrogativas populares.

Que pleiteavam Juvenal e outros? A mesma cousa que os escritores ingleses, chamados humoristas.

Alcides Maya escreve: “o humour é sombra d’alma, humanidade que se não resigna de todo, que ainda sonha, ainda solidária...”

Mas que alveja a sátira senão amparar os espezinhados da sorte; aliviá-los da opressão que os aflige; pô-los ao corrente do que se passa nas altas camadas sociais ou, então, escalpelar os abusos, os vícios, os defeitos de toda gente, sem distinção, nem piedade. A sátira é, também, sombra d’alma; não é céu calmo, mas o que vibra o raio destinado a fulminar as tiranias abjetas, ou as democracias falaciosas. É uma operação do sentimento, como o humour, quando a razão o caldeia e embebe na mesma emanação sutil e violenta. E não haverá, parelhamente, um suicídio a rir como na em que Juvenal dilacera os hipócritas ou na em que faz sentir os perigos dos grandes exaltamentos, isto é, quando não possuímos o módulo das empresas a que nos arriscamos ou a contrastar a nossa capacidade moral?

Que há neste grito senão o conselho e a medida?

“Insensatos! Não será na argila que se bebem os venenos? No fundo da taça de ouro, faiscante de pedrarias, a espumar do vinho de Sétia, não estremeceis?!”

Os quadros de Juvenal são violentos, horríveis e espantam como essas figuras medievais, que os pintores insistiam em reproduzir na tela.

Dickens não é um vencido, como não o fora Thackeray; o ideal ressuma das páginas das suas obras, como fonte de justiça, de amor e de simpatia, tal como em todos os satíricos, em todos os grandes intérpretes da palavra suprema, a agitar-se na consciência dos verdadeiramente inspirados pela sublime loucura de igualar as condições, de suplantar a injustiça, de defender o direito, de triunfar, em uma palavra, dos que erradamente têm conduzido a humanidade ao estado em que hoje se acha.

Se o humorista é um forte bom, vencido, mas sobranceiro à derrota, como ainda o afirma Alcides Maya, assumindo uma atitude não de orgulho puro, e sim de altivez d’alma, que direi do satírico, de Juvenal, por exemplo, que foi o maior de todos; de Juvenal, a emoção, a febre, a chama trágica, o arrebatamento para a honestidade, o riso vingador, a personalidade, a humanidade, segundo a definição tão tocante e profunda de Victor Hugo?

Que é que lhe iluminava a consciência? A justiça. A palavra? A justiça, ainda. O coração? A justiça sempre.

Que irradiava do pelourinho a que amarrava os criminosos? Um clarão de liberdade e de sempiterno amor pelos que a injustiça dos poderosos havia amordaçado ignominiosamente. Como castigar a força, senão expondo-a à execração pública; como minorar os sofrimentos, senão dando um exemplo de coragem e de abnegação?

O escritor que recuasse, explicais, Sr. Humberto de Campos, em um trecho do vosso discurso, na imolação de uma página genial no altar de uma pilhéria comum, não seria um humorista.

É o caso de Emílio, que sacrificava tudo para enxertar em um assunto sério uma pilhéria que fizesse contrastar a matéria em que assentasse a conversação com a singularidade de uma anomalia ou de um achincalhe. É o caso do ramalhete de penas de pavão na cauda do porco.

Sacrificava tudo ao chiste, e até a sua nobre musa numa imolação infeliz, quando fazia dos defeitos humanos o pábulo da sua verbiagem e do seu mau humor, quase sempre velado por um certo ar de bonomia que lhe era peculiar, e de aparente indiferença pelos preconceitos da sociedade em que vivia. Não foi, pois, nem um humorista, nem um satírico, mas um caricaturista, como disse acima.

Olhava para os erros e corrupções de seu tempo, sem nenhum desejo de os corrigir ou melhorar.

Não foi nem o luto, nem a paródia, nem a ironia, como esses três aspectos da alma humana devem ser considerados.

Era o ideal eclipsado, olhando, apenas, o lado que ele julgava mau dos seus desafeiçoados; exagerava-lhes os pequenos defeitos, pelo prazer único de ver sangrar a ferida que a sua mão rasgara.

Mas o que é pior, é que muitas vezes não havia nenhum motivo para isso; forçava o ridículo ou o grotesco sem grande variedade de detalhes. O que ele queria, era fazer rir; dominar com a sua verve as pessoas que o ouviam, fazendo-se temido dos que o não prezavam.

E conseguiu-o. Isto contribuiu muito para lhe prejudicar as grandes e notáveis qualidades de poeta que folgo em reconhecer.

Preza-se a graça, o toque ousado, fino, mordaz, polido, delicado, quase galante de Cervantes, e, principalmente, quando sobreleva a tudo isto “uma maravilhosa intuição dos fatos íntimos do espírito e uma filosofia de aspectos múltiplos, parecendo possuir uma carta nova e completa do coração humano”.

É o conhecimento do fundo moral do homem; é a visão clara e nítida de todos os fatos ocorridos nessa prodigiosa e complicadíssima trama que produz em Cervantes uma sensação imprevista, sensação essa que transborda e provoca no leitor uma impressão sempre nova, porque os seus recursos são infinitos. As explosões de novidades, permita-se-nos a expressão, não estão só nos personagens, senão também na ação e no estilo.

O espírito de Cervantes é um combatente, como o foram o de Isaías, de Ezequiel; e mais tarde, o de Swift, o de Thackeray, o de Sterne, o de Macaulay, o de Dickens.

Circunstâncias, sempre novas, giram em torno da ideia-mãe. Dessas circunstâncias que ele muitas vezes provoca; do cenário que a sua verve prepara, e o seu espírito combativo sugere, para o fim de atacar, ferir e rechaçar os incidentes e ocorrências do momento, irrompe um conjunto de formas novas, em que a piedade, porventura, preleva a todos os outros motivos que o grotesco imaginara para desluzir ou deprimir os personagens. Embalde! Quanto mais se esforça por dominar a cena, mais se avoluma o sentimento de piedade, a força de simpatia e de solidariedade humana, e é isto, precisamente, o que torna o gênio de Cervantes o mais original, o mais delicado e o mais amável de quantos têm existido.

Com o seu bom senso, a sua clarividência, que são sempre o bom gosto, e, poucas vezes, a sabedoria, vergasta, sorrindo, quem merece o seu castigo e, na própria pilhéria, estadeia, sem se ensoberbecer ou se enfatuar, o respeito oculto, a dignidade, que em muitos ressumbra, do ridículo, aparentemente dominador.

E, a tal ponto a invenção se torna sensível e tocante que, ao darmos de rosto com o ridículo do asno, a galhofa se transforma em dor pungente e nos faz vir lágrimas aos olhos.

E foi por isso, talvez, que disseram que o hipogrifo se transformara em Rocinante, e que, por trás do personagem equestre, Cervantes criara o personagem asnal. Daí o motejo épico.

Ora, observando todas essas cousas, – o ridículo, muitas vezes sobrepujado pelo épico; o bom senso, que não sendo propriamente a virtude, pode ser o interesse modificado pela cultura, pela educação e pelo preceito altruístico da solidariedade humana, aproximando-se, destarte, da fórmula cristã do amor do próximo; os governos atrelados às suas ambições; o desmaranho do lar; os palavrões, servindo de égide ao que se convencionou chamar – a honra militar; a glória guerreira; a obediência à senha; o tumulto das paixões hipócritas; os personagens traídos pela sua própria astúcia e pelo hábito de enganar aos outros, tudo isto, que é grotesco, pode também ser épico, e pertencer tanto ao humorismo como à sátira, tanto a Swift, Thackeray e Sterne, como a Homero, Juvenal ou Carlyle.

A sátira é uma arma que tanto faz correr lágrimas como sangue. Quem assim a definiu, viu-a sobre todas as suas faces; percebeu na antiguidade o seu soluço e o seu estertor e viu-a no presente capaz ainda de despertar em cada homem a consciência da sua dignidade, em cada povo o sentimento de orgulho que é o único que pode salvá-lo da desonra e da escravidão.

O satírico é a retidão, o cavalheirismo, a exaltação, a piedade, a justiça, a consciência do próprio valor, pronto sempre a vingar um ultraje feito aos fracos ou a ungir com a sua dedicação e o seu sacrifício quem, desprezado e perseguido, apela para esse poder oculto, mas sempre eficaz, uma vez que haja sinceridade na súplica. O satírico é o braço que a Providência enviou para escarnecer do poder do homem, e feri-lo no coração com o dardo da sua eloquência e da sua verve.

A história, sendo cômica, é também trágica; o satírico participa dessas duas formas da ação humana, através os tempos.

Senhor da verve e da eloquência, resguarda-se, entretanto, dos percalços que a ironia provoca, sem ultrapassá-la, desferindo, como de uma cidadela invencível, os pelouros com que vai reduzir a escombros todas as mentiras que a convenção engendra, todas as facécias com ar sério das democracias emolientes; todas as vitalidades apodrecidas da raiz ao cerne.

É nas esferas puras da verdade, nos cumes mais empinados da moral, nos relevos mais culminantes em que a filosofia assenta os seus princípios e as suas leis liberais, que a sátira plana. É uma escola de bom gosto, de cultura, de louvor, de ironia, de combate. Não fustiga nem avergoa, exclusivamente. Ama o bem; abre-lhe ensanchas a que se expanda; aqui, leva a vida às almas mortas; aos corações dessangrados; às consciências obscurecidas por um falso ensino ou intuição religiosa.

Se Emílio de Menezes não desconjurou a fé na arte, na ciência, na filosofia; se não abriu e fez campo contra predicados que honram a vida, não os exalçou, nem defendeu com aquele ardor e paixão de uma natureza que não tinha nada de céptica, em relação às cousas que se prendem ao nosso destino e finalidade.

Não distraiu de si pela mão de uma convicção arraigada a coragem e afoiteza com que proporcionamos aos nossos semelhantes os benefícios do conforto e da resignação. Quem se resigna, sobe. A resignação é uma ascensão. Se a sátira é, antes de tudo, o respeito de quem a pratica, supõe, destarte, uma existência pura, extreme de toda censura.

Tão ao próprio com as contingências e evoluções do espírito, a sátira faz de cada defeito, que preleva e castiga, um caminho que vai direito à perfeição.

No culto da imparcialidade adquire a precisão do golpe, tão necessário para ferir o que a natureza moral do homem possui de monstruoso e heteróclito.

É pois, sim, como o dissestes, Sr. Humberto de Campos, um dos elementos indispensáveis à disciplina dos instintos, dos costumes, das instituições. “É mesmo o freio de ouro das sociedades desembestadas.”

Essa, releve-me a querida memória de Emílio de Menezes, não a possuía ele. Foi, repito, um caricaturista, indisciplinado, terrível, quando o agastavam as insolências, as vaidades, os desregramentos e intemperanças dos que, por muito terem, julgam que a nobreza consiste na fortuna, e a moralidade no escândalo, sempre escondido por trás da proteção e do dinheiro.

Trechos há no vosso lindo discurso, Sr. Humberto de Campos, a que eu não posso deixar de referir-me pelos conceitos que encerram e pelas imagens com que os adornais. Infelizmente, o tempo e o momento me não permitem segui-los com aquela curiosidade e anotação que seriam necessárias.

Aludis com razão à música de vocábulos de que é feita a arte de Emílio de Menezes.

Chamais a esse engano do poeta o veneno de sua glória, se bem fosse também a sua virtude. “De imaginação pouco fértil nesse terreno e de coração mal encordoado para os dedos do sofrimento, e, sobretudo, sem o patrimônio de cultura que lhe permitisse o suprimento com o recurso das adaptações inteligentes, tinha ele de apelar, necessariamente, para o artifício, para a espuma colorida, para os efeitos do vocabulário, que substituem insuficientemente a ideia. Quando o pensamento é polido recorre o artista à beleza da orquestração, em que consegue realmente resultados maravilhosos.”

Dizem ser esse o defeito de Théophile Gautier e de outros que julgavam inspirar-se na sua maneira de versejar.

Não é bem isso, segundo penso.

Como ele havia escrito que a poesia é uma arte que se aprende, que tem seus métodos, suas fórmulas, seus métodos, seus arcanos, seu contraponto e seu trabalho harmônico, essa afirmativa, adstrita à que também averbara de inconcussa e absoluta, ao comparar as palavras a pedras preciosas, deu margem a que se lhe adulterasse o pensamento, inculcando-o como o maior de todos os infratores das leis severas do verso, como um inimigo da ideia e da imagem.

A despeito da preocupação dos ritmos harmoniosos, das rimas ricas, dos tours do pensamento, rebuscados e preciosos, não falta a Théophile Gautier o sentimento profundo das cousas, a alma, sem a qual é impossível realizar qualquer das vistas ou intuitos da poesia.

A visão do pitoresco bem como o sentimento da expressão plástica não lhe turbaram a intuição moralizadora e reconstrutora, como se pode facilmente ver pela leitura das suas obras poéticas.

Isso que ele aduz, em defesa das suas opiniões, e que eu noto também nos vossos versos, Sr. Humberto de Campos, isto é, que as palavras têm em si mesmas e fora do sentido que elas exprimem, uma beleza e um valor próprio, quem o contestará?

As pedras são expressões de cousas que os olhos materiais não podem tocar, porque pertencem a um outro mundo, onde as forças exprimem qualidades desconhecidas à nossa inteligência. As palavras cristalizam-se, mas não podem refletir a verdade. Que são elas senão meros representativos de cousas que se ocultam às nossas vistas e ao nosso entendimento?

O sentimento, como a ideia, precisam desses relevos condicionados à contingência geral de um mundo que recebe as impressões sob a forma de estratificações tão singulares que não há como desenredá-las das espessas camadas em que vêm envolvidas.

Assim, o espírito que falta à palavra vai necessariamente viver noutra esfera, cuja manifestação não será possível, visto faltar-lhe os meios de comunicação.

Estudar profundamente os dicionários é conselho que não se deve desprezar, mas é mister estudar o organismo de cada palavra e as suas relações com os demais membros da frase.

De um glossário opulento, sem dúvida, precisa o poeta para dar expressão às impressões íntimas que o arrebatam e o forçam a emiti-las, como condição imprescindível de equilíbrio.

Escolher as palavras, como faz o ourives com as pedras preciosas, para lhes dar um destino qualquer, não é pequeno trabalho, pois no escolher está o conhecimento da harmonia, das combinações misteriosas a que somos forçados pela natureza mesma dos assuntos, pela variedade dos elementos materiais com que temos de jogar para que não faltem à obra de arte os atributos necessários ao seu acabamento definitivo.

Outros achavam ainda que ele queria dar à poesia a impassibilidade, a imobilidade dos mármores. Daí, o erro de certa escola que o não compreendera e que fez dessa arte sublime um fino jogo de palavras que vós, Sr. Humberto de Campos, explicastes com a narração da história do anfíbio e do milionário extravagante.

Que são os mármores, no fim de contas? Cousas imóveis, sem vida, sem nenhuma expressão, sem nenhum desejo ou vontade, sem nenhuma intenção ou objetivo? Impugnando a opinião estranha de Winckelmann, generalizando, senão apurando a contradita de Michelet, escrevi alhures:

Esses deuses, estampados no mármore, vieram do Egito. Parecem conservar a nostalgia do seu país, mergulharem no passado com uma ansiedade incrível. Arrancaram-nos do seu berço para os colocarem nas praças públicas de Atenas.

Tornam-se cidadãos, perdem o caráter absoluto e inexpressivo, presidem as reuniões, enchem de respeitoso acolhimento o lar doméstico e todo o infinito da sua natureza se perde em pequenos atos que o jônio ou o dório exaltavam em suas cerimônias. É notável como os deuses se vão lentamente humanizando.

Palas, na Ilíada, tão feroz e sanguinária, que fere Marte, em combate com uma pedra, na Odisseia, é a palavra de ordem e de sabedoria, pleiteando os direitos do homem, junto aos deuses.

Em toda parte, na arte mesmo de Sófocles, antecipando a de Eurípides, se vê que o próprio rochedo é enternecimento, que a arte grega não é de nenhuma forma fria e indiferente. A filosofia de Hércules é a filosofia da bulha e do contraste. Não punge mais a chaga de Filocteto que a sua insânia, ou a apóstrofe de Prometeu, ou, ainda, o sonho daquele velho cego que procura na hospitalidade o conchego e o repouso.

Todos esses maravilhosos enternecimentos que, dir-se-ia, dilaceraram o coração do mármore, comunicam-se à alma helênica e atravessam séculos.

O raciocínio, o sofisma, os segredos da lógica dão mais força à já violenta agitação das olímpicas metamorfoses, o pensamento ondulante do gênio iônico. Vede essas escravas encantadoras, deliciosas, que a meiguice milesiana torna mais caras. Que beijos ardentes naquelas bocas, que doidice e fantasia naquelas imaginações incontentáveis!

Há como que um soluço a ressoar eternamente naqueles peitos de mármore, porque Ésquilo, que tantas obras-primas inspirou à escultura, era verdadeiramente o gênio da dor. Ora, a dor é movimento e o movimento é vida. É ainda pressentimento, é acento trágico. O espanto, que foi a ideia fixa de Miguel Ângelo, é o que se vê nos tetos da Capela Sistina. As dúvidas de Ésquilo possuem um poder extraordinário. Distraímo-lo da arte que as múltiplas condições mesológicas e históricas criaram e vieram corrigindo, a despeito da sua perfeição original.

Essas duas naturezas isoladas, trágicas e transbordantes, o gigante grego e o gigante da Renascença, sem linhas precisas, excessivos, quase fulminantes, deliram, estertoram como vítimas de um mal desconhecido, proclamando furiosamente a justiça.

Exorbitante psicologia a que a história literária consagrou aos mais altos destinos humanos, mais do que a expressão de uma sociedade, mais do que o conflito latente de um povo, tomado de uma ânsia irrefreável. Essa não se fixa, não se limita, não se reduz a fórmulas.

O amor neles não era passageira e leve convulsão, como quer Marco Aurélio, mas um abalo profundo, um choque imprevisto, enérgico, que as correntes orgânicas põem em jogo; massas flutuantes, antagônicas, muitas vezes explosivas.

A palavra, na poesia, é como o tipo nas criações helênicas: o espelho em que a inteligência vai refletir-se. Sem isto, não podia discernir e retratar os eternos exemplares das cousas, tais como existem no mundo das puras essências. Os gregos, para exprimirem uma ideia dominante, procuravam um acordo na reunião e escolha das formas. Daí, essa agitação, esse movimento contínuo nos mármores. Daí, ainda, esse espelho onde se refletiam as lutas, as dores, os gozos, a vida moral, em uma palavra, de toda civilização helênica.

A imagem da vida, agitada, móbil, e ruidosa da Hélade, está admiravelmente representada na sua escultura. Quanta vida moral, quanta angústia nas sublimes e terríveis atitudes de alguns daqueles mármores!

Hércules, por exemplo, a contorcer-se sob a túnica, quase a morrer, indicando pelo rosto contraído e feroz as torturas que está sofrendo, prova bem alto que eles não são frios, que tudo aquilo representa uma alma em luta, símbolo de inquietude e de dúvida; de um ideal de liberdade e de fé, ansioso por um novo fanatismo, por um outro espírito, embora terrífico e ameaçador, diferente do que sonhara Ésquilo, baseado na justiça, transfigurado nessa Minerva, a fundar o irrepreensível tribunal que durante muito tempo fez de Atenas o centro e o templo do direito.

Agitação em tudo! Como nas sombras do túmulo de Édipo vai a imaginação encontrar os mistérios mais recônditos do eterno castigo, iluminado pelo espírito vindicador da justiça!

Expressão da cultura, símbolo tumultuário, em verdade, Prometeu, ensinando “uma cousa que a Ásia não sabia, como pelo ferro e pelo aço, pelo esforço, a arte faz jorrar essa filha imortal, a razão, a sabedoria, o éter do pensamento lúcido”, o sensorium Dei, na frase de Newton, a só inventiva e fecunda, exatamente oposta ao torpor sonhador do miraculoso Oriente. Insensatos! Como ânsias e paixões tão violentas podem quebrar-se docemente nas curvas desses seios e dessas axilas lúbricas!

Feita, é certo, mais de violência insensata e dolorida do que de doçura e resignação, como a arte cristã, a escultura grega, depois de convulsionar longa e furiosamente nos seus rebojos, no alto das montanhas ou no fundo dos báratros, ascende gloriosa e serena, deixando em cada coração a imagem impotente das cousas que passam, a vaga melancolia dos objetos que perduram na memória, como vínculo de solidariedade entre o presente e o passado...

Essa não foi, certamente, a arte de Emílio, mas é, talvez, a vossa, Sr. Humberto de Campos.

Se nem sempre a medida é exata, o contorno apurado, a feição delicada; o molde é de bom quilate. Em poesia, que montam os excessos, e uma ou outra irregularidade, se a beleza é irregular nas suas combinações para produzir a graça, excessiva, às vezes, para produzir a linha ideal que deve conduzir à perfeição?

Sainte-Beuve escreveu: on peut lancer et perdre bien des flèches; basta, porém, acrescentava, para honra do artista, que algumas deem em cheio no alvo, fazendo ressoar a árvore profética, o carvalho de Dodona.

Badigeonner à la toise, eis o verdadeiro mal.

As preocupações de forma, de cor, de sonoridade do estilo, são antes um agrado encantador das musas que um desvio da linha da beleza a que o pensamento deve obedecer.

A tirania que a palavra pretendesse exercer; o culto que desvaira alguns cultores da poesia, pretendendo substituí-la à ideia, como se ela reunisse as qualidades necessárias a manter o movimento e a vida na estrofe, tudo que não é consentâneo com a arte, nem com o bom senso, banistes das vossas preocupações artísticas.

Não há em vossos versos expressões banais, nem rebuscamentos inúteis que tanto prejudicam esse gênero literário. O verso é correntio, sem afetação; batido, com força, é certo; mas sem rebarbas ou arestas, pois o metal em fusão penetrou bem na juntura das fôrmas. Não esquecestes o preceito, que o desenvolvimento da individualidade pode tornar-se causa de decadência. Encarais o assunto com desprendimento e tornais a ideia uma força ou um  nexo em que entram o caráter a virtude como emblemas que se não dispensam, porque a vida resulta do acordo dos sentimentos superiores. Desenvolver a individualidade é provocar a ruptura do equilíbrio; é cair nos excessos do egoísmo. A arte precisa ser impessoal para conseguir a perpetuidade; precisa ser desinteressada para levar aos corações a chama que deve abrir a corola à flor; inundar de luz o receptáculo abatido pela escassez de elementos vitais; entusiástica, porque é o melhor condão das cousas que procuram viver, a despeito da morte que ronda a vida, em todas as camadas ou círculos em que a ação de um poder oculto se faz sentir.

As vossas poesias não lembram outras; a vossa cultura garante-as desse perigo e dá-lhes um caráter pessoal, que é, talvez, a qualidade que releva, entre tantas que, com prazer, observei. Não vos falta, permita-me a expressão, a severidade do espírito dórico à fecunda imaginação sensualista do iônio. Isto quer dizer, Sr. Humberto de Campos, que a imaginação não emula primazias à razão, mas procura congeminar-se para o mesmo fim.

Andam ali, muito mão por mão, o naturalismo e o espiritualismo, e, até nesses cantos tropicais, em que a violência do clima estua com fragor no ritmo e no estilo da frase emocionada, um fundo de grandeza espiritual transparece e acolhe com simpatia o cenário exaltado pela vossa imaginação. Não se dirá que são quadros apertados por um objetivismo obscuro ou estéril: não lhes falta o alimento maravilhoso tão necessário às criações poéticas. O idealismo está ali a revoar, sem perder as qualidades humanas em que se esconde para melhor derramar a sua luz.

Entre os gregos duas escolas disputavam a soberania: – a que se empenhava com fervor em inquirir o mundo dos sentidos e a que impelia os espíritos para fora do universo material, exaltando-se às regiões da pura idealidade. Prefiro esta àquela e não raro se me depara o vosso empenho de seguir a mesma direção, quer sob o ponto de vista propriamente formal da vossa inquirição, quer acordando em desdobrar aos olhos do leitor as paisagens menos obscuras e imperfeitas do mundo natural.

É na idealidade que o estro deve ir buscar a inspiração; sobre ela assentar o seu poder; em torno dela bater as suas asas. Nela reside a liberdade, e a inspiração só opera milagres quando a procura e a encontra. A inspiração, pois, deve gravitar entre a ideia, a mimese de Platão, e o naturalismo, sempre fecundo, de Aristóteles.

Todas essas formas da realidade subjetiva e objetiva vejo representadas nos dois volumes dePoeira. Quadros après nature; alegorias vivas, animadas, a exaltarem-se, aqui e ali, se algum relevo mais frisante provoca no vosso espírito um desses milagres tão comuns nas naturezas verdadeiramente poéticas. Conciliar a euritmia com a beleza é o mais fecundo, o mais artístico dos esforços. Variar o movimento, a ponto de levar ao espírito do leitor a convicção de que todo o movimento é forma e toda forma movimento, eis o que devia ser a preocupação de todos quantos se entregam à arte tão difícil do verso. Na ideia reside a realidade e na realidade a vida. E que pode traduzir melhor a vida que o movimento? Mas o movimento só o é enquanto o não observamos de um plano superior. Uma vez atingido o grau acima, a forma envolve o conjunto abstrato, e a ideia é atingida, não já como uma simples operação do espírito, mas como um objeto palpável.

Acontece exatamente o inverso do que se dá na natureza material, em que a vida se vai desprendendo do eixo das suas operações superiores, para se deixar envolver por uma camada grosseira, que a subtrai completamente à sua origem.

É em torno desse poderoso núcleo de sensações que voeja a ilusão, e esta constitui um dos elementos, senão o elemento capital, dessa ciografia em que operam, por assim dizer, todos os segredos das luzes e dos sonhos...

Não é que vos falte um canon, uma medida, e proporções rigorosamente estabelecidas. A vossa arte, sem lhe faltar elegância, não exclui a liberdade. A idealidade tão culminante em alguns imaginários da velha Hélade, por mais severa que se nos afigure, não se evola do debuxo ou do contorno; mas, reparai, que se não desatam, tampouco, da pureza e do rigor do traço, a perfeição, a graça, o colorido, a delicadeza dos ornatos e os encantos da ilusão.

Assim, muitas poesias do primeiro e segundo volumes da Poeira.

Se há alguma cousa a increpar nelas é a tendência para o cepticismo e o materialismo, tendência que avassalou a literatura em todos os tempos, à míngua de uma filosofia bem orientada.

As cousas misteriosas são o que há mais belo, grandioso e doce na existência. É tão divina a natureza do segredo que o símbolo sugeriu às artes um modo de interpretar a vida.

A "Morte de Moisés", a "Lenda do cisne", "A Oração de um inca", "Condor", "Daho-Upas", "Alegorias", "Canto bíblico" e tantas outras poesias, são envoltórios de um pensamento fugidio, errático, perdido num suave simbolismo, embora vago, em que a matéria se evola para dar lugar ao sonho.

Assim também grande parte do segundo volume.

Alegorias é uma poesia profunda, em que a arte se não desdoura em ombrear com a ciência:

É um ígneo rio que rebolsa e estruge
No organismo telúrico o profundo,
– Sangue fervente e tépido que ruge
Nas artérias pletóricas de um mundo.

Novo Alfeu de outra fábula, que a austera
Voz terrível de um deus fez rio em chamas,
Brama, galopa a trepidar... No entanto
Do planeta a face álgida e bruta,
Onde tudo é sereno, e é riso e é canto,
Não se a vê, não se a sonha, não se a escuta.

Depois a descrição magnífica de um incêndio.

A labareda entrando o cimo da folhagem; rebentando frondes, desabando-as, inteiriçando-as, comburindo-as.

A intenção é humana, vigorosa, entremeada de gemidos, de soluços, de lágrimas, que se não ouvem, nem se veem, mas que se adivinham.

Uma das mais sugestivas e fulgurantes páginas de Michelet é a que atribui à América uma função, um papel, de coordenadora telúrica; reguladora dos fogos e das águas. Alta poesia, profunda ciência! Uma visão estranha percorre o santuário da natureza, em calma, agora, após o crepitante movimento que as estrofes descrevem lembrando-nos a página do aludido historiador.

De fato, a América é previdente, por não poder ser contemporizadora.

É um organismo, em verdade, a terra: – os seus continentes representam alguma cousa mais do que uma expressão geográfica. Momentos há em que abrem caminho a manifestações tão extraordinárias que, dir-se-ia, representariam órgãos encarregados de distribuir a vida e o equilíbrio por todo organismo.

“Com seus movimentos concêntricos, suas curvas elegantes, traçadas em redor do Sol, seu movimento de si para si, pela ascensão incessante das suas forças interiores, seu movimento elétrico, tão sensível no Equador, e suas correntes magnéticas, tão sensíveis para os polos, sua circulação líquida nas correntes do mar, sua circulação aérea tão rápida e tão leve, que, por uma troca incessante de nuvens e vapores, harmoniza sua vida de superfície”, a terra não é só, como dizeis, Sr. Humberto de Campos, um rio de chamas, é um organismo profundo, com um coração – Java e Cuba, de onde partem duas torrentes cálidas: “Vão ao norte; são resfriadas, e, revivendo em seguida, voltam incessantemente ao coração que as lançou, auxiliam a correspondência magnética elétrica do Equador ao Polo. Suas tempestades são solidárias. O estio, quando a fusão polar, quando as correntes do norte nos vêm, refresca-a e o elemento magnético parece ir adiante da eletricidade central. Daí, violentas tempestades que perturbam os nossos sentidos.”

Eis a alma humana, eis a terra.

Quanta vida, quanto movimento, quanto claro-obscuro nesses dois volumes da Poeira, indicando uma natureza em espasmos constantes, um duplo movimento elétrico e magnético; uma pletora de vida estuante, a que não corresponde a frieza, a incapacidade, a temperatura, sempre baixa, do nosso meio literário.

Não me é possível, infelizmente, alongar-me como desejava. A leitura dos vossos livros sugere-me uma série de considerações que não posso acudir de momento.

A todas as cousas emprestais um talento e uma espontaneidade que não nos é lícito deixar de admirar. Sente-se um verdadeiro prazer à leitura do vosso livro Da seara de Booz, tão original, quanto gracioso e profundo.

Todas aquelas impressões, todas aquelas imagens, tão vivas de fatos remotos, se adaptam admiravelmente ao assunto, muita vez trivial da atualidade.

Faz sorrir o engenho da procura e o fino da comparação.

Que lindos painéis a invocarem aqueles contrastes e analogias; que ressurreição animada naqueles episódios ou figuras, tão bem condicionadas à literatura leveira dos jornais!

O fato mais insignificante da nossa vida quotidiana e burguesa é ali posto sob a égide de uma lenda ou acontecimento memorável. De sorte que o incidente adquire uma tal importância, assume um tal valor literário que não julgo exagerar se disser que há nesse livro verdadeiros primores, pelo surto da memória, pelo colorido da imaginação, pela perfeição do estilo, pela originalidade e graça do quadro. As cores da lenda; o sainete original e extravagante que acaso se lhes nota, não desmerecem ou perdem com a aplicação; antes adquirem mais vida, pois a alma que os anima, não se extingue, nem flutua, a esmo, na nova trama em que a envolvestes. Sendo, algumas vezes, mais vivo o colorido, o sentimento, nele oculto, torna-se mais intenso e arde com mais força. Não é fácil esse gênero de literatura. Supõe, além do engenho, o gosto na escolha do símile, uma memória fácil e segura; um critério arguto e estético, indispensável à seleção, ao preparo, ao encontro e fusão dos prismas.

De fora, parte dessas exigências essenciais não prescinde da ironia ou do modo como deve tratar as tintas, sem prejudicá-las ou constrangê-las. Aí, sim, talvez se nos depare o humour, segundo a vossa própria definição e que alguns julgam encontrar em Emílio de Menezes. A vossa ironia ressumbra do orgulho satisfeito; da equiponderação dos valores morais que se não desequilibraram na luta, nem se desgastaram no amanho da terra que fertilizastes e abençoastes pelo trabalho. Em Emílio, como já dissemos, há o caricaturista, irreverente e revoltado contra as intransigências do meio; contra a impermeabilidade do ambiente moral às suas tentativas de dominação e avassalamento. Em um, o triunfo das ideias; a capitulação das cousas transitórias, à sua vontade, dominada por um sentimento justo; no outro, as oposições sistemáticas, derivadas de um gênio questuário e voltívolo, em que não luziam predicados de intransigência e de perseverança e nem esse devotamento à ciência que Augustin Thierry punha acima de todas as forças da inteligência e do coração, no tocante ao êxito das nossas tentativas. Não alonguemos os contrastes, não esmerilhemos as vantagens que sobram a um e diminuem em outro.

Preciso terminar, embora não haja posto em foco todas as qualidades do vosso caráter, e todos os dons da vossa inteligência, Sr. Humberto de Campos. O que obtivestes é tudo obra do vosso esforço, da vossa perseverança, da vossa energia. Sem esses nobres atributos não se escrevem obras como Da seara de Booz. Quando se abre mão de vantagens como as que a vossa situação material vos proporcionou, membro de uma família abastada, como éreis, para empreenderdes a romaria que empreendestes, é porque se possui, de fato, esse dom, quase sobre-humano, que a pena de Voltaire, com tão vivo empenho, exalçou e enobreceu. A mais alta sabedoria é, em verdade, uma firme resolução.

Eis aqui porque hoje vos venho trazer as boas-vindas; eis o motivo da vossa presença neste cenáculo.

Li algures que feliz é aquele que conserva sempre um sorriso nos lábios, como Horácio. É que ele evitava sempre tudo que perturbava o equilíbrio da alma. Nunca se excedeu em suas ideias e em seus sentimentos. É o vosso caso.

Nesse admirável morticor em que se espraia a vossa imaginação, a serenidade e o equilíbrio despontam e dominam o quadro.

Bem vejo, e com que tristeza! que nesses prismas se não realçam os estímulos que nos estão avivando no coração e na consciência esse fundo de religiosidade que deve ser a alma dos nossos sentidos, a expressão, não fugaz, mas eterna, da nossa vida. Contemplais com indiferença esse lado do panorama interior. Parece que só observais formas confusas, sem claridades. No ambiente em que respirais falta o ar puro das eternas verdades. Estas estão modificadas e adulteradas; por isso, ao invés de se vos depararem aqueles emblemas de outros tempos mais felizes, só encontrais restos ou sombras do que foram, porventura, a vida e a forma de um pensamento iluminado pela religião do bom senso e da esperança.

Não arguo, pondero; não retrilho, observo e anoto com pesar.

Aos vossos olhos não chegou ainda a luz do astro que há de conduzir as almas desviadas do verdadeiro rumo, dando-lhes a luz necessária a uma peregrinação menos torturante.

Com o cristianismo, mas com o cristianismo do seu fundador, desaparecerão os vãos simulacros, a alegoria física que tanto empeciam o ardor descritivo do verso.

As montanhas, as árvores, os ventos, as vagas, adquiriram um prestígio que até então não tinham.

Falaram, gemeram, e conduziram as almas, como os abetos dos Pireneus, o peregrino tresmalhado.

As vozes concertaram e deram ao alaúde mais calor e mais vida, e os oráculos transformaram-se em vozes da natureza.

Essa é a verdadeira poesia; – a poesia da fé, da esperança, do amor, na sua tríplice expressão – a família, a pátria, a humanidade.

Assim, é no amor que a poesia deve inspirar-se e essa culmina na palavra do Evangelho, que não é diferente daquela que fez estremecer a alma de Orfeu, dando-lhe a verdade eterna.

Tudo o amor vence, tudo, tudo o amor consegue. Num dos cantos órficos, lê-se: “Foi o amor que me fez escavar a morte para achar a vida; arranquei a ciência oculta sob as múmias. Os padres de Ísis e Osíris desvendaram-me seus segredos. Eles não tinham que seus deuses, eu tinha Eros. Pelo amor falei, cantei, venci. Por ele soletrei o verbo de Hermes e o verbo de Zoroastro; por ele pronunciei o de Júpiter e o de Apolo.”

Havia nessa alma como na de todos os grandes portadores do fogo divino uma fé inabalável, uma certeza de que além deste mundo alguma cousa de superior e de eterno existia, indispensável ao nosso progresso intelectual e moral.

Essa alguma cousa era Eurídice morta, que lhe deu a verdade eterna, como em vida lhe havia dado a embriaguez da felicidade. Amemos, mas como devemos amar, fazendo da mulher o fundamento da nossa vida e a esperança do nosso destino.

Pitágoras manda honrá-la no céu e na terra; porque ela na humanidade representa a natureza; e a imagem perfeita de Deus não é o homem só, mas o homem e a mulher. Daí, sua fascinante e fatal atração; daí a embriaguez do amor, onde se representam o sonho das criações infinitas, e o obscuro pressentimento de que o Eterno masculino e o Eterno feminino gozam de uma união perfeita no seio de Deus.

Eis aí o amor, eis aí a graça. Com o amor, se nos desvelam os olhos; se nos abrem os corações para os altos sentimentos da honra e da virtude e se nos repontam as asas com que devemos voar para o infinito de todas as perfeições.

É o que queria ver em todos os nossos poetas; um como renascimento celeste. As virtudes mais alevantadas não podem ter outro assento, nem outro incentivo.

Não imitemos Lucano; mas os que faziam dos mitos a feição mais caroável do engenho.

Pela mulher compreendemos estoutra mulher – a Natureza. Que seja ela a imagem santificada e que nos auxilie a remontar, por graus, na frase de Edouard Shuré, à grande alma do mundo, que cria, conserva e renova, até a divina Cibele, que arrasta o povo das almas em seu manto de luz.

Quando digo a mulher, resumo o caráter e a honra, o pensamento e o coração. O conjunto dessas partes é o que forma o que chamamos o homem e a mulher. Nessa dualidade purificada e santificada pelo amor reside a grande obra de Deus. Extremar, pois, a mulher das paixões, erguê-la ao mais alto pedestal como um numen, é o dever de todos os poetas. Vejo, com prazer, que a não diminuístes, tornando-a um objeto de cobiça material. Em vossos versos não a deprimis, mas a exaltais com fervor e, não raro, aparece abrilhantada e enaltecida por um ou outro conceito verdadeiramente cristão, pois, onde ela é, sem dúvida alguma, considerada o complemento do homem, é nas páginas reivindicadoras do Evangelho. Aí, sim, é a esposa e não a amante, o ídolo a atrair a nossa irreverência ou a nossa cupidez, consoante o grau ou a precariedade do nosso espírito.

A filosofia céptica é o resultado do nosso pensamento materializado. Tornemo-lo, pois, capaz de penetrar o que a Natureza nos esconde, e compreendamos os nossos deveres, em relação àquela que constitui a parte mais íntima, mais sensível e, por isso mesmo, mais santa, do nosso ser moral.