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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ROQUETTE-PINTO

QUEM aqui chegasse naquele tempo, acreditaria em um sismo paradoxal: por toda parte, casas ruindo ou subindo, envoltas no pó avermelhado da moinha dos tijolos; parques em esboço, quando se não pode dizer se os estão fazendo ou desmanchando. Como se fosse crisálida gigante, abria-se, na glória de uma ecdise maravilhosa, a cidade do monte e do mar, minha terra natal. Tinham decidido renová-la os homens do governo; e o entusiasmo ganhou também os intelectuais.

Naquele tempo conheci Osório Duque-Estrada, diretor do Teatro Lírico Brasileiro, agasalhado no S. Pedro, onde se preparava uma ópera de Araújo Viana. No fim de uma aula um dos colegas seduziu-me; era preciso auxiliar a grande iniciativa de arte nacional. Fôssemos patriotas!... E eu, por patriotismo... figurei nos coros da Carmela.

Não era, então, o empresário o homem gordo em que se volvera nos últimos tempos; mas um rapaz trintão, ativo e ágil, de fala incisiva, muitas vezes irreverente. Talvez por isso mesmo, se foi linda a estréia, agitados correram os ensaios. Mal serenavam os bastidores, surgia logo outro caso armado, quase sempre, pelo ânimo irrequieto do empresário. Data dessa época a sua paixão pela arte lírica; e esta lhe deve, entre outros serviços, os libretos de Anita Garibaldi (Rio, 1911), posto em música por Francisco Braga, e Dirceu (Rio, 1914), cujo spartito foi entregue a G.M. Bosio.

Para Carmela, cujo libreto não é dele, escreveu Osório a letra da barcarola hoje popular:
Quando os teus lábios de rosa
Dão-me a ventura de um beijo,
Em doce e lânguido harpejo
Tudo começa a cantar...
A lua, ouvindo, a medrosa,
Ao vento conta e desliza...
E tudo a lépida brisa
Repete às ondas do mar...

Muitos dos versos de Osório contribuíram à formação de um canto brasiliano mais próprio para salão. Entre brocados e pelúcias a modinha tem o ar triste dos beija-flores encastoados em broches de ouro. Quero a modinha, mas lá fora, no descampado, irrompendo de uma nesga de luar, misturada ao marulho dos remos ou subindo de uma rede distendida em baixo de um laranjal, se não à beira do fogo, no rancho enfumaçado dos tropeiros.

Todos nós, ainda mesmo os mais sisudos, temos um certo período nas vibrações da arca do peito; mal escutamos a modinha, entramos em ressonância... Pode a fronte quedar-se imóvel ou enrugada pela severidade que o hábito impõe; no traçado da sua respiração os imperceptíveis acidentes, que denunciam movimentos emotivos, mostram, porém, que o homem austero vibra e canta sem querer, quando escuta a voz ingênua do seu povo. Ela precisa da amplidão do céu aberto.

Encontrou o poeta em Alberto Nepomuceno o autor magnífico de músicas delicadas, para as suas melhores estrofes. Quem dentre vós não tem ouvido entoar, ou não terá mesmo trauteado em hora de saudade, que é sempre a hora em que todos cantam baixinho, até os mais desentoados:

Quem se condói do meu fado
Vê bem como agora eu ando:
De noite – sempre acordado,
De dia – sempre sonhando.
O amor perturbou-me tanto
Que este contraste deploro:
Querendo chorar – eu canto,
Querendo cantar – eu choro!

Sujeito à lei dos pesares,
Não sei se morro ou se vivo;
Senhor dos outros olhares,
Só do teu fiquei cativo.

Por isso a verdade nua
Este tormento contém:
Minh’alma não sendo tua
Não será de mais ninguém!

No opúsculo das Trovas Populares, em que publicou estas quadras, relembra o conceito de Sílvio Romero, mostrando como tinha de ser triste o canto do homem nestas paragens. Ibero, afro, ou ameríndio, andava sempre o cantor às voltas com a saudade: saudade da aldeia abandonada, saudade da cubata destruída, saudade da mal oca incendiada! Lutas e perigos. Por isso mesmo a poesia popular pertence ao que de melhor pode encontrar o estudioso entre os documentos da vida moral e mental da nação. Das quadras criadas pelo povo, Osório muitas arquivou, deliciosas pelos conceitos, pelo lirismo, e pela graça. Sem ter sido dos nossos maiores poetas, coube-lhe um destino de garantida imortalidade: seus versos o evocam diariamente, nas canções que todo o Brasil repete:

Aos corações que vivem na amargura,
Ouvi dizer mais de uma vez: O amor
É das noites a noite mais escura,
Das dores todas a suprema dor...

E eu, a alheia miséria contemplando,
A mim mesmo, sorrindo, perguntava:
Quando a acharás também, minh’alma? Quando
Do seu poder hás de cair escrava?
E sorria e cantava. A glória acesa
Via das rimas no imortal tesouro;
E o mar e o céu e toda a natureza
Punha cantando nas estrofes de ouro...

Mas quando nem temia, certamente,
Que pudesse ser presa desse mal,
Feriu-me o peito, inesperadamente,
A mesma dor insólita e brutal.

Busquei na ausência o bálsamo do tédio,
Alívio à mágoa, lenitivo ao pranto;
E pior do que o mal foi o remédio
Que eu não supunha que amargasse tanto...

Ando eu muito enganado, ou então de tudo quanto ele deixou hão de ser a suas canções a porção sobrevivente. Serão esquecidos, desculpados ou aproveitados, os seus gestos de mosqueteiro da gramática; mas haverá sempre moços e velhos para adoecer daquele mal que tortura o sono, destempera a vida... e faz sonhar acordado.

*  *  *

Joaquim Osório Duque-Estrada nasceu em Pati do Alferes, Estado do Rio de Janeiro, a 29 de abril de 1870 e faleceu a 5 de fevereiro de 1927, à Rua Paissandu, 140, nesta capital. Era de uma família de militares. Seu pai, tenente-coronel Luís de Azevedo Coutinho Duque-Estrada, figurava entre os amigos do General Osório, de quem Joaquim recebeu o segundo nome. O Marquês do Herval foi seu padrinho. Osório fez seus estudos de humanidades no colégio Pedro II, onde em 1887, Sílvio Romero o distinguiu entre os alunos, prestando-se a prefaciar os Alvéolos, primeiro vagido do poeta, que contava então dezessete anos. Que vale penetrar fundo nesses favos e desarmar para a crítica a ingênua colméia?
Há, porém, ali, duas composições que sobrelevam: A Monarquia e Na Fazenda, soneto dedicado a José do Patrocínio, onde o aluno do Pedro II descreve a partida dos escravos para o trabalho, sob o chicote do fero capataz.

Monarquia é a composição mais significativa do livro. A Abolição e a República foram nobres paixões do nosso amigo: aproximaram-no de a1guns dos maiores espíritos do tempo. Tratando mais tarde desses dois lances da história pátria, prestou Osório grande serviço à verdade e à justiça, sem contar o concurso pessoal que deu aos acontecimentos, e de que jamais pediu recompensa aos que a vitória colocou no poder. Nos seus livros, pela primeira vez, aos estudantes se depararam os nomes de Rui Barbosa, Patrocínio, Nabuco, José Bonifácio (o Moço), Antônio Bento, João Clapp, Joaquim Serra, Gusmão Lobo, Dantas, André Rebouças, gente de que os compêndios usuais não falavam, ao citar a Princesa Isabel e João Alfredo. As crianças não compreendem facilmente o que seja a tradição; mas, sem ela desaparece a pátria, reduzida a um bando de bípedes gregários. Tradição é a essência das lembranças acumuladas nas famílias de um povo. E os nomes que se conservam prestam serviço muito maior aos que vivem e aos que hão de viver, do que propriamente aos donos, para quem a fama não tem clarins e tubas que vençam a última surdez...

Por outro lado Osório Duque-Estrada era muito apaixonado; e nunca perdoou a José Bonifácio, o grande, o elogio de D. Maria I, proferido em 1817, na Academia das Ciências de Lisboa, quando o Brasil ainda ouvia os últimos batimentos do coração de Tiradentes.
O aluno-poeta do Colégio Pedro II, em 1887, oferece-nos mais uma prova, se preciso, de que a República não foi obra de meia dúzia de soldados, e sim desfecho de um longo preparo de opinião. Considero notável o testemunho dos Alvéolos partido de um adolescente, educando de uma casa que era a menina dos olhos do Imperador; de um moço que, além de tudo, não se filiava na corrente que Benjamim Constant dirigia.

Um caçador de pronomes tresmalhados poderia trazer atochado o samburá, voltando de uma excursão através do soneto consagrado à Monarquia. Não sei, e por isso não a estimo, a arte da sanguinolenta perspicácia. Mas posso armar a juçana para prender um verso revolucionário em que soa um grito histórico:

Tombe o cetro do rei como grilhão pesado!
Não compreendo por que se há de considerar mais significativo documento o célebre discurso do padre João Manuel, a 11 de junho de 1889, na Câmara do Império. O padre era político. O rapaz estudante falava, seguramente, de coração aberto. Para saber como sentia o povo, que juízo fazia a respeito do trono... prefiro o depoimento corajoso do moço poeta.

Hoje o povo sente que a proclamação da República não foi senão um episódio de um grande processo histórico. Não foi o último. Feita a Independência, ficaram as famílias brasilianas governadas por uma família portuguesa. A República afastou-a: mas todos percebem que o processo precisava continuar. Liames intelectuais e econômicos ainda nos envolvem; hão de romper de uma vez, quando pudermos acabar praticamente com as distâncias, que dificultam a disseminação da cultura e a organização nacional da riqueza.

A poesia, porém, continuava a cativar Osório Duque-Estrada. É de 1902 a Flora de Maio, o melhor dos seus livros.

A arte levou o poeta ao convívio e à amizade de Olavo Bilac, Vicente de Carvalho, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Ele foi, sem dúvida, menor que os companheiros. Mas aproximou-se dos maiores pela naturalidade do seu canto. Poesia, disse ele uma vez, é emoção; e a emoção é sempre fácil nos seus versos:

Hei de esquecer-te... (digo presunçoso
De cumprir tal protesto) – é bem que esqueça
Quem tanto esquece; altivo e caprichoso,
É justo, um dia, que eu também pareça!...

Hei de varrer de dentro do meu peito
Toda a memória deste amor ingrato!
E à noite vou beijar, quando me deito,
Tuas cartas, teu lenço e teu retrato.

*  *  *

Osório Duque-Estrada andava sempre ou muito alegre ou muito zangado. Por quê? Com quem? Não importa. Nos seus dias amáveis, era um conversador cheio de espírito, servido por memória invejável. Alguns versos da Flora de Maio mostram, em poucas palavras, – eu só me aproveito de uma quadra – o juízo que ele fazia das mulheres:

É demais! Na mulher anda tudo trocado:
Nada há que para o seu orgulho o bem resuma
Como deixar morrer um poeta apaixonado...
É por isso que eu cá não morro por nenhuma!

Não direi que ele morreu por algumas: discursos como este, que vos estou recitando, querem-se discretos. E, depois, a mentira é a mais desculpável de todas as licenças poéticas...

*  *  *

Ao magistério, quer no Estado do Rio, quer na Escola Normal desta cidade, ou no Colégio Pedro II, levou ele sempre a consciência do professor que exige porque ensina. Era temido pelos maus alunos como era temido pelos maus poetas. Ele comparava, no seu último livro, Crítica e Polêmica, onde há páginas notáveis, o exame de um poeta ou de um escritor às provas que exigia, na Escola Normal, das alunas apavoradas. A crítica, dizia ele, por outras palavras, que não quero repetir aqui, está transformada numa jaqueira. Na linguagem de estudantes, o nome desta artocárpea cobre a tolerância desleixada dos examinadores que não reprovam nunca. Osório Duque-Estrada na crítica, na cátedra, no jornal, na Academia, na História do Brasil, foi principalmente um homem desabusado, que resolveu reagir contra tudo quanto lhe evocava o aspecto daquela árvore frondosa... Vós me direis, Senhores Acadêmicos, se, perdoadas as demasias do seu ânimo pugnaz, ele não está a fazer falta...

*  *  *

Ao lado de algumas peças de teatro alinham-se na bibliografia do sucessor de Sílvio Romero nesta Cadeira alguns volumes puramente didáticos: são a História do Brasil, para as escolas primárias; Leituras Militares, para os soldados; e a Arte de Fazer Versos... para rapazes em mal de amor. Não assim a Abolição, das melhores páginas da sua vida, que, afinal, foi existência cheia de serviços.
Seu pensamento há de palpitar por entre as gerações: a gente pequenina, hoje mais feliz do que a do meu tempo, pode cantar o hino de Francisco Manuel; as estrofes de 1822 foram, tacitamente, repudiadas pelo povo. Muitas críticas, algumas severas e até certo ponto aceitáveis, têm sido feitas à letra de Osório que o Congresso Nacional premiou em 1912. Sejamos justos. Ela não é nenhuma excepcional maravilha; mas lembra com felicidade as quadras de Gonçalves Dias que já se incorporaram às trovas do povo, ótima condição para dar vida e fulgor a um hino nacional.

*  *  *

Se fosse indispensável classificar a poesia de Osório Duque-Estrada, acredito que não seria possível colocá-la fora das páginas, simplesmente líricas.
“Os espectros”, “Poema de Iza”, “Versos de um louco”, “O Sonho de Colombo”, “Ao General Osório”, provam que só os sentimentos pessoais foram capazes de despertar no poeta emoção estética de certo nível A natureza nunca pôde levá-lo à emoção criadora. Amor e beijos... tanto nos Alvéolos como na Flora de Maio, foram semeados em profusão. Seu lirismo poucas imagens encontrou no meio cósmico:

Estala, coração! Ela também, querida
Entre todas, partiu, deixou-te a solidão...
Já não te resta mais nem um sopro de vida,
Nem um hausto de luz... estala, coração!

Não pecaste, sequer, e a injustiça te oprime!
Nem uma jura só, de tantas, se partiu,
E é forçoso expiar essa culpa de um crime
Que não quer o perdão, porque nunca existiu!

A ingratidão, por fim, veio bater-te à porta!
Mas um triste despojo encontrou nos umbrais:
A alma gelada e extinta, a alma vazia e morta
Que palpitou no amor e que não canta mais!

Dela desfeito, enfim, às lancinantes garras,
Já nem podes viver, já nem podes amar;
Extingue-te; no amor foste como as cigarras
Que em meio do verão estalam de cantar.

O poeta vivia, nos áureos tempos do seu canto, rodeado de bons camaradas que levaram o soneto aos píncaros da arte. No entanto, foi esquivo àquela forma, tão de gosto dos seus companheiros de tertúlia. Aos sonetos, cabem apenas uns vinte e oito por cento da obra literária de Osório Duque-Estrada. Seu metro preferido na Flora de Maio foi o decassílabo, em que estão construídos cerca de cinqüenta por cento das suas composições. Seguem-se, na ordem de freqüência, os versos de doze pés e depois os de sete.

Se a redondilha é o metro espontâneo dos que falam a nossa língua, vê-se que o poeta apaixonado das trovas populares era antes, no íntimo um vate erudito.
Certo que submeter a poesia à análise metódica dos modernos processos de crítica é fazer à arte o que os botânicos fazem às flores e os entomólogos às borboletas. Corta o coração ver uma Loelia dissecada num herbário, ou uma Semiramis espetada na lâmina de agave. No entanto – haurido o que nos pode ministrar de belo – para bem conhecer a alma do poeta, nua e sincera, para descobrir-lhe os processos de pensamento, é preciso algo mais do que a simples leitura emocional e meditada. Nem há por que surpreender-se a gente se o progresso, disciplinando a indagação, vai trazendo novos e melhores meios de conhecimento.

No que diz respeito à vida mental, a exigência cada vez maior de fatos precisos, sempre que há um julgamento a proferir, é característica dos tempos modernos.
Quem lê alfarrábios de ciência encontra longos discursos e complicadas teorias, para explicar fenômenos que até então estavam envoltos no mistério das causas próximas ou remotas. A palavra copiosa sempre foi recurso do homem que ignora; tem servido muito menos ao homem que sabe. La Fontaine lembrava: Qui parle trop veut tromper...

Os críticos literários, na maioria, em todas as nações, parecem alquimistas metidos em um laboratório bem aparelhado com os recursos da química de hoje. Têm diante dos olhos o que há de mais seguro para esmiuçar o material sobre que hão de falar. Mas preferem raciocinar ou discutir, em vez de verificar. A crítica não tem mais o direito e ser a alquimia da literatura. A análise da abra de arte e a síntese da personalidade do artista, ou das suas criações, ou mesmo do ambiente social em que ele apareceu, tem de ser feita, sem prejuízo dos processos que são boa herança, pelos recursos da psicologia e da biométrica. Estas, sim, darão baldrames firmes à filosofia que se quiser tentar sobre as idéias do autor.
Sabe-se que a psicologia consegue, como a pescador de coral, mergulhar profundamente na alma dos homens, tirando lá do fundo um pensamento negro, ou róseo, que atraiçoa, num sonho, o segredo de que se vive, o segredo por que se mata, ou de que se morre.

A biométrica aplicada à crítica literária não é, de fato, coisa nova.
Niceforo propõe ousadamente que se aplique o método da pesquisa quantitativa, para verificar, principalmente, a freqüência com que aparece, na obra de arte, o caráter que se estuda. Consegue-se, desse modo, pôr em realce certas minúcias que, sem isso, ficariam desconhecidas e muitas são notavelmente significativas.

Para servir-me de um exemplo do grande mestre italiano, lembro a análise biométrica do estilo de Balzac. A média geral do número de vocábulos do escritor, através de todas as suas obras, é de vinte e seis por período. Mas se procurarmos traçar a curva de freqüência do número de vocábulos, encontramos dois pontos salientes que dizem respeito aos períodos de oito e de vinte e três palavras. Pois bem, o primeiro corresponde ao estilo da mocidade e o segundo ao da maturidade do escritor.
Pode, então, o crítico afirmar, com documentos à vista, que o estilo do autor do Père Goriot triplicou de amplitude. A análise dos diferentes períodos mostra ainda que, nas suas primeiras obras, domina o período curto, mas há numerosos que são muito longos; nas composições de plena sazão literária, dominam os períodos mais amplos, porém, entre eles, não existem nem os de extrema brevidade nem os de comprimento excessivo. Conclusão: tornou-se mais homogêneo o escritor.

Abro a Flora de Maio. Em cerca de oitenta vezes que se utiliza de cores, Osório Duque-Estrada emprega quarenta vezes o azul, o branco e o amarelo-ouro; uma dúzia de vezes o vermelho rubro.
Nas imagens, colhidas ao acaso, nesse livro, são mais freqüentes: as flores, a luz, e principalmente a música.

Há idéias tristes na maioria das composições, como é de regra nos livros do começo do século, segundo o merencóreo impulso romântico do século passado.

Consenti eu vos recorde que, para estudar, como convém à nossa época, a tristeza que tão fortemente encharca de lágrimas a nossa poesia, é necessário não esquecer o que dela cabe realmente aos sentimentos normais de saudade ou nostalgia e o que possa ser parte de outras influências.
Luciano chamou à tiróide – glândula da inteligência – e hoje sabemos bem que amor, alegria, coragem, medo, tudo o que outrora era atributo puramente subjetivo do indivíduo, passou a ter expressões orgânicas, sem que, por isso, o estudo da alma perdesse qualquer dos seus encantos. A tristeza, na Flora de Maio, não é orgânica. Osório era um tipo eufórico. Era antes atitude literária.

Das características didáticas do verso, metro, cesura e rima, o povo mais se impressiona pela última. É freqüente vê-lo imaginar que há verso na linguagem falada, quando existem apenas duas palavras consonantes, que o acaso da elocução ajuntou. Ora, poesia não precisa nem de metro, nem de cesura, nem de rima: verso precisa principalmente de ritmo – que é função do metro. Mas o metro pode ser qualquer. A natureza, nas suas formas esquisitas, abre caminho aos renovadores...

Osório Duque-Estrada não admitia verso sem rima. Detestava os versos brancos. Em Alvéolos há uma só poesia desse tipo – “A Cascata”; nenhuma em Flora de Maio. A rima, dizia ele, dá sonoridade ao verso, auxilia a memória, encanta o ouvido, desperta a atenção, sugere idéias. Devem ser condenados, continuava, os versos soltos, que são, em geral, “de grande e insuportável monotonia!”

O autor dos versos brancos de “A Cascata” tinha mais do que o direito, tinha o dever de abominar os versos sem rima... Eu, porém, que pouco encontro na poesia brasiliana que seja tão lindo, forte e apaixonado como as “Palavras ao Mar” de Vicente de Carvalho, entendo que as rimas só poderiam distrair o ouvido, com prejuízo da emoção estética, se fossem postas, como guisas indiscretos, naquela sinfonia beethoveniana de idéias e frases majestosas:

Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma...
Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo
Pelos fundos abismos do teu peito.

Ficará certamente alguma coisa da grande agitação que nas letras os libertários vêm promovendo, no sentido de obter uma expressão ampla e livre, em que a idéia procura viver nua como as índias da Rondônia. A desarticulação do metro e a fratura da rima talvez sejam os mais valiosos remanescentes. A rima tem grandes inimigos; mostram-no as palavras de Fabre d’Olivet, que Alberto de Oliveira incluiu no seu prefácio à Arte de Fazer Versos de Osório Duque-Estrada: “Jamais le peuple qui rimera ses vers n’atteindra à la hauteur de la perfection poètique, jamais la vraie épopée ne fleurira dans son sein.”
Também assim é demais. A rima é um dos instrumentos da orquestra poética; deve entrar naturalmente na composição, marcando tonalidades de beleza no desdobrar da sinfonia.

*  *  *

Não lhes parece surpreendente que um homem de gestos truculentos, de espírito altamente militar, que viveu comprando brigas e parecia andar constantemente repetindo baixinho, como Cirano: “Desagrado por gosto”, – não lhes parece interessante que ele tenha sido, nos seus versos, um amoroso do azul e da música?

Acompanhando-lhe as lutas o leitor espera encontrar na sua lírica tons rubros de fogueiras crepitantes, vozes metálicas de clarins a dilacerar a atmosfera, trovões, ribombos, que sei eu? Era o pelejador, como se vê, à luz do critério moderno, um emotivo, sentimental, a quem faltou o treinamento que seria preciso, para que, na existência, não se lhe deparassem os amargores encontrados, tantos e tão grandes que muita vez lhe golfaram da alma bondosa, mas enferma.

Não adianta insistir. Sempre que o poeta achou uma imagem de luta, combate, violência e não se contrafez, como aconteceu na poesia “Ao General Osório”, francamente secundária, saiu-lhe da pena o que de melhor produziu, mas... foram lutas de amor:

Causa deste pesar sem lenitivo
És tu, a Diana caçadora e brava,
Que quer que eu sinta e que suporte vivo
Todas as setas que inda tens na aljava!

Ímpia e cruel, no ardor do gesto altivo
Vibras o dardo que o desdém me crava,
Porque eu, que sou do teu poder cativo,
Vi-te também do meu amor escrava!

Mata-me; vence, enfim! Quando a agonia
Turvar-me à face os últimos palores,
E a alma me achares regelada e fria,

Lembra-te, ao menos, que eu morri de amores,
Para que possas dessa aljava, um dia,
Todas as setas converter em flores.

Em os Espectros há um dos raros quadros de maldade existentes na Flora de Maio. Não desmente o asserto.

Osório Duque-Estrada – não sou eu quem o diz, repito o que a análise demonstrou – foi um bom e honesto coração, servido por lúcido entendimento. Seus assomos, sua combativa agitação resultaram principalmente de fatores educativos. Encontrou ele de um lado, desde a adolescência, o espetáculo borbulhante da libertação dos cativos, da propaganda republicana, e, depois, das revoltas militares. De outro lado, homem feito, foi acolhido na boêmia desabalada e irreverente, muito própria para educá-lo nos destemperos agressivos da crítica. Presidindo à sua formação psíquica, encontro o terceiro elemento decisivo: a influência incontestável de Sílvio Romero, a quem Tobias Barreto chamou “martelo das mediocridades”, – martelo que muitas vezes ultrapassou esses limites...

Podendo escolher na grande vida de Sílvio Romero o que ela oferece de majestoso, na obra geral da nossa cultura, Osório Duque-Estrada, infelizmente, preferiu, amiúde, o que ela tem de menor. Na escala dos nossos valores intelectuais considero Sílvio Romero um dos mais altos, pela visão larguíssima dos nossos destinos, pelos quadros amplos e seguros da nossa evolução nacional, que ele soube definir à luz de uma cultura formidável. Esse é o Sílvio Romero – meu mestre. O mestre de Osório Duque-Estrada foi, além desse, o outro: o que lançou as fundações da milícia policial das letras, na qual o meu antecessor figurou com tão grande notoriedade.

*  *  *

Creio poder afirmar que não lhe dariam entrada nesta Casa os numerosos trabalhos críticos publicados durante muitos anos nos jornais do Rio. As constantes que definem a crítica de alta linhagem – que sabe sorrir discretamente à visão das coisas ridículas, ou indignar-se com as grandes faltas encontradas, reagindo e castigando com rigor, mas suscitando, na consciência do paciente, antes pesar do que revolta, – não se encontram na obra do nosso amigo. Não cultivou ele música de câmara, preposta a despertar elevadas emoções estéticas; antes, foi, na crítica, o amigo da música de ópera, que o fácil gosto popular contenta.

São manifestações accessíveis e, por isso, o jornal em que Osório Duque-Estrada escrevia o seu “Registro Literário” esgotava-se logo depois de chegado a algumas cidades do interior. Escolhidos, numerosos artigos do seu “Registro” poderiam formar alguns volumes capazes de dar úteis informações a respeito do nosso movimento literário nos últimos dez anos.

Não seria difícil destacar da sua personalidade o aspecto que mais vivamente impressionou a opinião pública, e fazer à sua obra crítica uma análise semelhante a que sujeitamos a sua poesia. Não encontro vantagem nisso. Os poetas são mais felizes do que os críticos; podem receber logo depois de mortos, quando a não recebem durante a vida, a consagração dos louvores públicos. Os críticos, ainda quando muito grandes, mormente os da escola que ele seguiu, são como as árvores do pau-Brasil, vistas de perto têm muitos espinhos. Nós ainda estamos muito próximos do tempo em que Osório exerceu a sua atividade.

*  *  *

Osório Duque-Estrada, no começo de sua vida pública, serviu como Encarregado de Negócios do Brasil no Paraguai, missão fácil para quem se tenha identificado com a índole cavalheiresca e boa daquele povo; algo penoso para os que não lhe conseguem varar as trincheiras da leal confiança e da generosa estima. A guerra é sempre hedionda; deixa lembranças inextinguíveis.

Para Osório Duque-Estrada o patriotismo era principalmente orgulho nacionalista. Punha no Paraguai olhos de eixo muito alongado...
A história do conflito de 1864 não nos tem sido ensinada com a verdade que a consciência requer; durante o Império, havia o respeito às opiniões do Imperador; nos primeiros anos da República, os generais que o substituíram... eram gloriosos sobreviventes da guerra.

Dizia o meu antecessor que, em muitos pontos, a História do Brasil se acha “falsificada”. Eu não quero perder o ensejo de afirmar que, em relação às origens daquele triste episódio, os moços aprendem uma história injusta. Não se diminui a glória dos nossos antepassados ainda quando se demonstra que o seu luminoso sacrifício poderia ter sido evitado.

Na hora em que faço a apreciação da obra de Osório não deixarei de recordar que o antigo Encarregado de Negócios do Brasil no Paraguai, – falando de cadeira – como dizia, chamou “puro sentimentalismo doentio e retórico de ideólogos desavisados e ignorantes dos fatos”, ao lindo movimento que no Brasil se está fazendo para o cancelamento da dívida que as gerações republicanas não desejam escriturar!

Não. Justiça não é retórica; nem eqüidade é sentimentalismo.
O ardor das paixões foi, e ainda é, de tal ordem, tanto aqui quanto lá, que o meio de poder alguém formar juízo imparcial a respeito de pontos essenciais, consiste em alinhar os documentos emanados de ambos os lados, antes e depois do conflito.

Separada a Cisplatina em 27 de agosto de 1828, garantida a sua independência pela derrocada de Rosas, em 1852, continuaram a viver no Uruguai, tomando parte ativa em sua existência de nação livre, e entrando forte nas suas lutas políticas, numerosos patrícios nossos. Tal como hoje, aos nossos olhos, fazem os italianos em São Paulo e os alemães no sul do Brasil.

É claro que os acasos da gangorra política levaram muitos deles a sofrer os percalços do partidarismo. Tinha o Império o direito de intervir no Estado Oriental para proteger os seus filhos ali estabelecidos?... Têm a Itália ou a Espanha o direito de se intrometer hoje aqui para proteger italianos ou espanhóis que lhes mandem queixas do Brasil? Não é bom falar nos compatriotas nossos que entravam naquele país alistados nas tropas arregimentadas para depôr o governo oriental...

Que fizeram os nossos dirigentes? Prestaram ouvidos solícitos aos milheiros de patrícios que estavam sofrendo no Uruguai, conforme as palavras de Saraiva. E decidiram pôr em prática os princípios que tanto nos repugnaram quando apareceram em plena Conferência Interparlamentar de 1927, no Rio de Janeiro.

No caminho, por estas alturas, surge o Paraguai. Mas, vem inesperadamente, como intruso cavaleiro andante da defesa alheia? Não. Aparece na mais estrita e regular situação de direito, obedecendo rigorosamente aos tratados que o próprio Império com ele assinara. E surge armado até os dentes... por obra e graça dos conselhos, das insinuações, dos auxílios que lhes foram dados, muito deliberadamente, pouco antes... pelo Brasil. Parece que afirmo um despropósito! No entanto é a lição de Rio Branco, com quem aprendi que as fortalezas de Humaitá foram iniciadas por oficiais do Brasil; é a lição dos nossos melhores mestres que, desde a missão de Pimenta Bueno, depois Marquês de São Vicente, o Império tinha conseguido fazer do Paraguai uma potência militar, dando-lhe assistência e prestígio, obtendo ao mesmo tempo a adesão desse país ao tratado de 25 de dezembro de 1850, pelo qual os dois contratantes se obrigavam a defender as fronteiras do Estado Oriental.

Os diplomatas do Império tinham-se esquecido de incluir no tratado de 1850 uma pequena cláusula, reservando a S. M. o direito de entrar, livremente, na antiga Cisplatina, para proteger os seus súditos... Mais tarde Conservadores e Liberais entram na pendência de apurar a quem caberia o erro da intervenção. De onde vinha a inqualificável cegueira dos que negaram ao Paraguai aquele direito de que ele usou, primeiro, em tom pacífico de mediador, e, só depois, em tom de ultimatum, que vale uma declaração de guerra? Pelo progresso da minha terra tenho arriscado contente, mais de uma vez, a vida que ela me deu. Mas só compreendo o patriotismo que não precisa de mentiras para manter a existência.

Entramos na grande verdade histórica.
Declarada a guerra, patriotas iríamos todos tomar parte nela, estivesse ou não a justiça do nosso lado. Até Riachuelo (11 de junho de 1865) foi, se quiserem, aceitável a posição do Império. A fatalidade tinha arremessado à luta os dois povos. Que fazer? Mas no ano seguinte, o chefe inimigo compreendeu que estava vencido e, na entrevista de Jataiti-Corá (12 de setembro de 1866) – episódio de que em geral não se fala – pediu as condições de paz aos vencedores. Queria apenas lhe reconhecessem o posto supremo em que o seu povo o conceituava. Mas o chefe com quem a nação estava absolutamente identificada, para o Império, nada mais era do que um desclassificado. No conselho de Estado, em 30 de setembro de 1867, Nabuco protestava contra o inominável tratamento.

A resposta que deram, a quem pedia paz, foi quase injuriosa. Vencido? Pois então fizesse melhor do que Rosas, de Buenos Aires. Tomasse um barco atulhado de ouro, levando tudo quanto quisesse e fosse gozar o resto da existência na Inglaterra, protegido, durante a viagem, pela generosidade da Tríplice Aliança.

Se o chefe paraguaio nutria o desejo de conquistar pelas armas um porto de mar no Atlântico, dilatando as fronteiras da pátria à custa do nosso território – é coisa que ninguém dá provas. Documentos do arquivo de Lopes mostraram, diz Rio Branco, que o ditador não mantinha a tradição militarista para guerrear o Brasil. Visava outros pontos.

Osório Duque-Estrada era ligado a gloriosos guerreiros. Nascera no último ano da luta. Não seria preciso mais para desculpar tudo quanto disse a respeito do conflito, que nós não devemos esquecer, e sim lembrar como quem recorda, com veneração, mas também cheio de justiça, um erro dos seus maiores. Tanto mais que é bem fácil abrir caminho aos bons pensamentos. São povos, disse eu uma vez, que a sorte irmanou para sempre, obrigando-os a cair juntos de joelhos na adoração de túmulos que ninguém pode distinguir. Cada metro daquele solo bebeu sangue de um avô nosso, ou guarda-lhe os restos decompostos. Ninguém poderá jamais dizer se o guerreiro que ali dorme é nosso ou deles. Envolveu-os a fatalidade na mesma mortalha de heroísmo.

Sendo certo que o desrespeito da fronteira uruguaia fora considerado casus belli pelo Paraguai; sendo certo que isso não era quixotesca valentia de um intruso, e sim cumprimento de tratados formais; sendo certo que o Paraguai ofereceu sua mediação no conflito – sumariamente recusada pelo Império, como podemos nós, republicanos da minha geração, em consciência atirar toda a culpa da guerra às costas do vencido?

Amor da Pátria, que não tine como o ouro da verdade, é moeda falsa do patriotismo. Não há, pois, nem retórica nem sentimentalismo, na voz dos que pedem aos chefes da nossa democracia considerem o erro do passado, no mais puro desejo de ver engrandecido o Brasil pela liberdade e pela justiça.

*  *  *

Quiseram os fundadores da Academia Brasileira, inscrevendo Hipólito da Costa entre os seus epônimos, significar, ainda uma vez, que, nas letras, não há lugar apenas para o romance, a poesia, e a eloqüência.
Ainda nesta minúcia seguiram o modelo escolhido.
Esta é a Cadeira dos professores; foi professor Hipólito da Costa, e disso viveu a maior parte do tempo; também o foi, e dos maiores, Sílvio Romero; Osório Duque-Estrada não fugiu a tal destino. O vosso novo companheiro não tem podido, nem querido, ser outra coisa.

O professor é o homem que renuncia ao mando, para se exercitar no conselho. É o que não pode, o que não governa, o que não guarda, nem acumula. Tal qual os mineiros que descem, penosamente, ao fundo da terra, e, à custa da saúde e do conforto, vão arrancar o ouro e a gema, que outros aproveitam, ele mergulha, pela noite alta, no que a Humanidade ajuntou e arranca de lá a opulência que há de repartir com os moços, bisonhos conhecedores dos meandros em que a verdade se disfarça.

Que importa ao trabalhador humilde a dureza da sua condição, se é sincero na atividade e tem a paixão das maravilhas que descobre?
Que recompensa vale o recordar, nas horas de tristeza, as almas em flor que fez palpitar, à visão dos encantos que com elas repartiu?
É o irremediável prisioneiro, que antes de morrer pode repetir com Sully Prud’homme:

J’ai voulu tout aimer et je suis malheureux
Car j’ai de mes tourments rnultiplié les causes.
D’innombrables liens, frêles et douloureux
Dans l’Univers entier, vont de mon âme aux choses.

Tout m’attire à la fois et d’un attrait pareil:
Le vrai par ses lueurs, l’inconnu par ses voiles,
Un trait d’or frémissant joint mon âme au Soleil,
Et de longs fils soyeux l’unissent aux étoiles.

La cadence m’enchaine à l’air mélodieux,
La douceur du velours aux roses que je touche.
D’un sourire j’ai fait la chaîne de mes yeux
Et j’ai fait d’un baiser la chaîne de ma bouche.

Ma vie est suspendue à ces fragiles noeuds,
Et je suis le captif des milles êtres que j’aime...
Au moindre ébranlement qu’un souffle cause en eux,
Je sens un peu de moi s’arracher de moi-même.
É a inquietação suprema que faz a glória humilde dos que vivem interrogando a natureza; é a doce tortura daqueles a cuja voz indagadora e apaixonada ela responde, para entregar, pouco a pouco, o segredo das suas verdades.

Pois estudar as coisas do Brasil é encontrar uma das bênçãos da existência, na hora em que a política, a ciência e a arte precisam travar-se solidamente, abrindo ao povo caminho mais curto para os seus destinos. A Nação espera dos políticos mais do que o bovarismo do voto das mulheres; precisa que eles se encarreguem de vencer a distância e de aumentar a eficiência do homem que trabalha.

A obra dos cientistas consiste em preparar o conhecimento da terra e da gente; está em plena floração, embora amargurada pela nossa pobreza individual, numa época, em que a ciência custa mais caro do que as jóias.

À arte e, principalmente, às letras, cabe uma posição magnífica no sistema: ligar pelo sentimento todos os valores humanos, enchendo o ambiente nacional de tudo quanto perfuma a existência e faz esquecer as penas do trabalho, tornando-o destarte mais fecundo.

À Academia Brasileira, pela situação prestigiosa que tem, deu o destino função primacial. Continuemos aqui relendo Fernão Mendes Pinto ou o Visconde de Castilho, a montar guarda à virgindade da língua portuguesa; o povo irá sempre recitando a deixa inconsciente, deturpando o mais possível o idioma, adaptando-o ou enriquecendo-o.

Recheiam-se os vocabulários de vozes brasílicas. Daqui a pouco acontecerá com os nomes da língua o que se passa com a gente senhora dela: haverá mais brasilianos do que portugueses. 
O cotejo da língua falada no Brasil, no século do descobrimento, com a que se fala hoje, mostra em certos pontos transformações muito menos acentuadas do que as que se encontram comparando o português de Gil Vicente com o de Camilo ou de Herculano. Conservaram-se muitas formas arcaicas; e por entre elas cresceu uma vegetação exuberante de espécies novas, quase todas ameríndias ou africanas. É certo que o italiano e o alemão, senão também o japonês, hão de acabar concorrendo para o admirável desconcerto, tanto mais o quanto da Alemanha e da Itália recebemos por via popular, não a língua literária, mas numerosas formas dialetais. São elas que se impregnam de brasileirismos e fazem alguns livros, impressos no sul do Brasil, difíceis para quem só conheça o alemão literário. Vê-se, por aí, como está sendo muito mais complexa do que parece a elaboração da língua que o Brasil falará nos séculos futuros. Os eruditos de origem peninsular não querem ouvir falar em dialeto brasiliano... Pois são menos orgulhosos, nesse particular, os de origem alemã, que admitem, – muito depressa, digo eu, – que no Brasil já existe um dialeto germano-brasileiro, como quer B.F. Schapelle (The German Element in Brazil-Colonies and Dialect, Filadélfia, 1917).

Não é possível, por amor ao português dos avoengos, ignorar todos esses movimentos idiomáticos, principalmente léxicos, quando se trata de coordenar os elementos da fala atual para o nosso grande dicionário.
No vocabulário da língua que falamos, em dez palavras, há, talvez, seis nomes de animais e dois de plantas. Se a Academia Brasileira considera aquela obra como fundamental justificativa da sua atividade, claro está que, sem cuidar da Natureza, pouco poderá fazer. Mas, quem batiza os acidentes do meio – é o povo. Ele tem voz nesse capítulo...

Entendo, porém, que aos eruditos cabe manter as tradições do idioma nacionalizador por excelência, encaminhando a evolução e orientando o movimento que tem de vir sempre da grande massa dos que falam. A Academia não figura como instituição estática, ancorada na corrente dos destinos da nacionalidade; seduz, por isso, ainda mais os otimistas do meu credo.

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Encontro nesta Cadeira particular atração. Recordo-me bem da vida de Hipólito da Costa, que nasceu e morreu fora da terra do Brasil, mas sempre viveu por ela. “Patriarca dos Jornalistas”, chamam-lhe alguns. Para mim foi antes o “Patriarca dos Educadores” desta nação. Muito mais do que com a informação ou com a crítica, traços essenciais do jornalismo, encheu ele a existência lutando para guiar os patrícios tanto na ordem moral quanto na ordem prática.

Tinha grande confiança nos moços do Brasil, o ministro do Reino, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, seguindo o exemplo de Martinho de Melo e Castro, o que mandou Alexandre Rodrigues Ferreira executar a Viagem Filosófica na Amazônia. Pela mesma época, despachou D. Rodrigo a Hipólito para os Estados Unidos e para o México, com o fim de aprender e relatar o que encontrasse de melhor quanto às culturas e às indústrias. A 24 de janeiro de 1801, Hipólito da Costa entregava a D. Rodrigo a sua memória – publicada na Revista do Instituto Histórico. Penso ter alguma autoridade para afirmar: tal monografia só poderia ser redigida por um verdadeiro naturalista.

Em Lisboa continuou a merecer a atenção de D. Rodrigo. Mas à Inquisição chegara notícia de que Hipólito, na América, entrara para a Maçonaria. Em 1802 foi preso à ordem de Pina Manique. Encarcerado numa solitária que media oito pés por doze, cujos muros deitavam água, aí permaneceu mais de dois anos. E ao juiz que o interrogava, recusou-se o supliciado a responder, para não parecer que aceitava a posição de réu. Finalmente resolveu fugir. Um traço luminoso deixou ele, afirmando que só se evadira porque lançara mão da própria chave do presídio. Não cometera nenhuma falta; saíra pela porta principal da prisão... Ganhou depois a Inglaterra. Começou, então, em junho de 1808, a publicar o Correio Braziliense ou Armazém Literário, revista mensal que viveu até dezembro de 1822. Ciências, letras, artes, política, indústrias, informações de uso geral, tudo ele disseminou pelo Brasil, que recebia de Londres o Correio. Este não é o lugar de recordar todos os trabalhos de Hipólito da Costa, cuja cativante biografia tem sido bem estudada.

Seja lembrado, apenas, o elevado espírito de educador público desse patriota que morreu naturalizado cidadão inglês, para fugir ao ódio de Portugal. Clamava com linguagem forte, mas nunca injuriosa, às vezes, com fino espírito, contra os desacertos do governo. A Independência, a transferência da capital do Brasil para o interior do país, a abolição da escravidão, a introdução dos imigrantes europeus, a criação de institutos científicos, a liberdade religiosa, a instituição do tribunal do júri, a liberdade da imprensa, a organização financeira – eis o principal dos temas de Hipólito da Costa. Grande pregoeiro de verdades que lhe subiam facilmente do coração, aconselhava à sua gente: não se discuta a forma do governo; melhorem-se os costumes.

Tal é a onda de otimismo que moveu a sua atividade. Depois de ouvir a biografia de Hipólito da Costa, perguntou-me um jovem discípulo muito amado por que razão aquele homem, nascido no Rio da Prata, formado e torturado em Portugal, naturalizado inglês, queria tanto ao Brasil? Milagre do seio materno... E quem sabe? Segredo destas montanhas, que prendem no amor sem limites os que um dia tiveram a sorte de vê-las, mesmo de longe.

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Não tenho a ventura de conhecer suficientemente o espírito dominante nesta Casa, quanto a possibilidades construtoras de nossa gente, tão certo é que os homens juntos pensam de modo muito diferente do que pensam separados. Não sei, por isso, se vive aqui também o grande e malvado derrotismo que vai tentando desmontar a nação, como informe e pegajosa saculina. Tão pouco sei se aqui viceja o preguiçoso otimismo dos que se escondem para conjurar os perigos. Desejo, porém, afirmar na hora em que me entregais a tradição de Hipólito da Costa: trago no coração uma confiança definitiva nas realizações da raça, porque a ciência me tem ensinado que a terra é áspera, mas o homem é teimoso e forte. Não há talvez no mundo moderno povo tão pouco homogêneo e ao mesmo tempo tão uniforme quanto às suas características morais e quanto à sua identificação com o meio natural, duas constantes capazes de definir as melhores esperanças.

Existe um sinal que os sábios consideram a mais importante das provas de decadência: é a diminuição natural dos nascimentos. Quando as crianças não encontram o carinho de que precisam para sorrir, deixam de abrolhar na estirpe da raça, como se, para castigar os povos que não são dignos de vida, porque não na sabem transmitir, a natureza quisesse privar de encantos a gente impura que tem a desgraça de existir. É o índice máximo da involução nacional. (Kültz, Archiv für Russen und Gesellschafts-Biologie, 1905.)

Considerai-o, então, no Brasil; dizei-me se a humildade da minha ciência não justifica estas otimistas esperanças. E no dia em que a pujança da raça puder encontrar, na educação, os meios de salvar os pequeninos que morrem antes de reconhecer o olhar materno, dizei-me, Senhores, que será das profecias desanimadoras, que urge escorraçar da nossa alma porque são mentirosas e más.
Tenho experimentado, perto e longe daqui, algumas misérias da minha terra e muitas das suas grandezas. A beleza maior do Brasil não é, porém, na hora que passa, para ser procurada nos rendilhados sedutores do ambiente, nem na cachoeira de Paulo Afonso, nem no Pão de Açúcar... O que o Brasil tem de mais interessante neste momento histórico é o esforço da sua gente para constituir-se de vez, plasmando-se no sangue e no meio, na derradeira arrancada para alcançar, ao mesmo tempo, a sua própria formação e a conquista final do seu território.

Esse espetáculo, de um povo que vai cheio de bravura ou de resignação, carregando os dois pesos formidáveis que são o problema da raça e o problema da terra, levando-os ao desenlace glorioso, há de ser no futuro, quando for bem divulgado, a surpresa e a maravilha do Mundo. Nos mapas há muitos claros; indagai com atenção e achareis que em cada uma dessas regiões desconhecidas existem, ao menos, um rancho, um berço e uma viola. A carta não fala porque o violeiro descobre e leva para o túmulo o segredo do seu encontro, não por egoísmo, mas por fatalidade que a distância e o isolamento condicionam. Há cinqüenta anos, quando cada indivíduo não podia distender a ação sobre a superfície do globo, pela insuficiência dos meios necessários, governar era povoar; hoje um homem sozinho, com as máquinas de que dispõe, rasga a terra, vara o céu, espalha o pensamento, expande as forças dentro de uma área infinitamente maior.

Então, dominando a distância, hoje – governar é aproximar –. Felizmente as distâncias que precisam ser vencidas não são as que separam sentimentos e costumes. São as grosseiras distâncias de território. A vitória do espírito de nação, expresso na linguagem, é hoje indiscutível e enche de surpresa os que vêm de outras pátrias percorrer a nossa. Foi sem contestação um laço que o pressentimento dos nossos avós armou para garantir o futuro, entregando-o ao carinho daquelas que, em todo o Brasil, sempre falaram aos filhos nas mesmas vozes e das mesmas crenças, preparando-os todos para aprender nos mesmos livros.

Encontraram-se também nos Estados Unidos da América do Norte índios, brancos e negros. Corram-se os mais interessantes volumes publicados acerca da literatura dos negros e dos mestiços, nos Estados Unidos. O de G.B. Brawlet (The Negro in Literature and Art, 1910); o opúsculo Negro Literature, no Décimo Quarto Relatório da Atlanta Conference, ou, melhor ainda, o interessante trabalho de Edward Byron Reuter The Mulato in the United States (Boston, 1918). Sempre a mesma verificação de insuficiência literária. E.B. Reuter afirma que até agora o sangue negro nada ou pouco produziu.
Em uma tese de doutoramento, apresentada à Cornell University, em setembro de 1923, e publicada em 1926, com o título The Negro Character in American Literature, pelo Prof. John Herbert Nelson, da Universidade de Kansas, encontro notas semelhantes. É possível, diz ele, que à raça não se tenha ainda deparado ocasião propícia; talvez o período de desenvolvimento e educação tenha sido curto. Seja como for, a verdade é que a literatura dos negros e mestiços norte-americanos até hoje não teve relevo. Por quê?

Por que razão não deram eles um Machado de Assis, um Gonçalves Dias, um Tobias Barreto? É que o influxo da alma feminina, mormente pela religião, conseguiu formar aqui ambiente capaz de aumentar o coeficiente de velocidade com que iam caminhando os atrasados. Diríamos que o calor da afeição aumentou a intensidade das reações morais, – tal qual se passa no conflito das reações químicas, em que a energia térmica desperta afinidades insuspeitáveis e consegue inauditas combinações, entre corpos que longe dela permanecem indiferentes uns aos outros, através de todos os séculos da criação. Procure quem quiser outras razões. Foi esse mesmo fator que abriu no lar dos brancos o lugar dos outros dois companheiros daquela saudade de que vos falei no começo. É, ainda hoje, ele mesmo o abençoado responsável pela definitiva incorporação dos últimos chegados.

Todos vós conheceis esses que andaram correndo mundo, no desejo ansiado de vencer a terra, devassando as nações, sentindo o embalo de todos os mares e a vertigem de todas as montanhas, vindo, ao cabo de muitos anos, ainda robustos e fortes, – não porque se lhes tivesse amainado o primitivo impulso, mas vencidos por uma nova força de encanto inexplicável – fixar a vida nestas paragens, por amor dos filhos. Na história deles vejo o símbolo que me faltava: esta é a terra que prende, a pátria que tem o segredo de elevar o nível moral de todas as raças.

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Bati mais de uma vez à vossa porta, mas fui sempre tão tímido, pela consciência da minha fraqueza, que mal se ouviu neste palácio a voz do recém-vindo. Algum de vós, é bem possível, tenha dito, como o poeta, ao escutar os primeiros sinais do postulante: “É o vento e nada mais.”

Finalmente, veio a rajada da vossa generosidade, honrando-me de modo tão singular.
Quero dizer-vos agora, em voz alta, Senhores meus colegas, as palavras que o meu coração a todo momento me segreda. Ele tomou a seu cargo fazer que nunca mais esqueça o que vos devo. É um tirano que me leva sempre para onde quer, com a segurança de quem governa, senhor de todos os segredos do governado. Ah! Bem o conheço, esse teimoso! Acreditai-me. Há de passar o resto da vida repetindo, cada dia, tudo quanto for preciso para que seja perfeita a minha gratidão.