Senhor Pedro Calmon,
Esta noite em que a Academia Brasileira se enguirlanda e atavia para receber a vossa mocidade gloriosa é uma verdadeira festa de coincidências. Vindes ocupar a Poltrona de Gregório de Matos, em que primeiro se sentou Araripe Júnior e que Félix Pacheco ilustrou. E sois recebido por mim.
O patrono, segundo dizem, ninguém sabe onde nasceu. Sobre a dúvida poder-se-ia escrever um livro igual ao de Leão Allatius – De Patria Homeri. Mas viveu na Bahia, sentiu a Bahia, compreendeu e amou a Bahia, onde tanto chasqueou, achincalhou, aretinizou. Qui aime bien châtie bien. Na Bahia, nascestes e formastes vosso espírito, embora já fosse outro o meio e outras as tendências. Contudo a paisagem baiana que trazeis no fundo de vossos olhos vivos é a mesma que viam os olhos do motejador sarcástico, insolente e erótico, gargalhando, como o pintais, de bandurra brejeira em punho: “o milagre de caridade e cor da terra natal.” Também o trago dentro de mim esse milagre, na emoção de filho do Norte, que vê na velha e augusta cidade a tradição mais pura do Brasil: o exército das torres cristãs enfileirado entre o arvoredo farto, na cumeada dos barrancos; o casario de oitões claros e duas águas derramando-se ladeiras abaixo; as velhas fortalezas de guaritas desertas, de cujas seteiras ainda se alongam os colos negros dos canhões, beijadas pelos arrepios das ondas, como cadáveres que tivessem dado à costa. Embaixo, desde as praias claras, balizadas de coqueiros, até o vulto de Itaparica, que azulece a distância, velas brancas desfraldadas sobre a tremulina azul e ouro do mar. Em cima, a festa azul do céu na alegria da luz. E, mais do que isso tudo, o que se não vê, porém se sente e anima e vivifica – o Espírito Imortal, a Glória Sempre Viva: a Bahia de Tomé de Souza, primeira capital; a Bahia da Torre de Garcia d’Ávila, primeiras entradas ao sertão; a Bahia de Gabriel Soares, primeiro roteiro e primeiras letras; a Bahia da resistência ao holandês com seus bispos e guerreiros, primeira afirmação cristã e nativista; a Bahia do conde dos Arcos, primeira reação contra a maçonaria; a Bahia de João de Botas, primeira luta pela independência; a Bahia dos grandes estadistas e dos grandes soldados, primeira província do Império!
O criador da Cadeira veio ao mundo na mesma terra de sol e de dor em que eu nasci. Da sua glória alguns raios foram bater-me no rosto, quando comecei a ler na Biblioteca Pública de Fortaleza os livros que me indicava o velho bibliotecário Juvenal Galeno. Repórter e redator de jornal, vim conhecê-lo nesta grande cidade, sempre atarefado e apressado, com uma carga de livros, de papéis ou de jornais debaixo do braço. Era preciso chamá-lo para que visse a gente: “Dr. Araripe!” Então, parava, consertava as lunetas: “Oh, como vai?” Ainda me lembro duma vez em que tomamos café juntos, no antigo Jeremias. Falei-lhe do Cajueiro do Fagundes, novela colonial passada na capital cearense, onde ainda a Rua do Cajueiro rememorava o episódio histórico em que a baseara. Acabava de publicá-la em folhetins. Disse-me: “O Ceará vive sempre dentro de nós, por mais que nos afastemos dele. Às vezes teima em sair e sai!” E, despedindo-se: “Menino, ponha logo para fora o Ceará que você traz aí dentro!” Eu segui o conselho do mestre e o pus no Terra do Sol.
O que por último se sentou na Sédia azul foi um homem do Norte, como nós dois, mais setentrional ainda, filho do Piauí, ao qual estive intimamente ligado no início de minha carreira, do qual divergi por algum tempo até que o mesmo tempo nos reuniu outra vez. Então, limpamos um ao outro a poeira da estrada que nos manchava as roupas e esquecemos os dias anuviados para somente nos lembrarmos dos que tinham sido cheios de sol.
Nortista, cultor da História, amante do tradicionalismo, sois aqui recebido por um nortista, vosso companheiro mais velho em uma década e pico de trabalho e convívio sem nuvens no Museu Histórico Nacional, Casa do Brasil, onde colaboramos na mesma obra silenciosa, paciente, ignorada, mal recompensada e mal compreendida, porém fecundíssima, de entesourar as relíquias de nossa pátria e ensinar às novas gerações o amor do nosso passado e o culto de nossa saudade.
Tantas são as assinaladas coincidências ou, como diria o Sr. D. Pedro I à marquesa de Santos, as “misteriosas combinações”, na noite de hoje, que me atrevo a dizer-vos que nós dois, Sr. Pedro Calmon, comemoramos com os mortos – o satírico, o crítico e o poeta – a glória das letras do Norte.
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Bendita Cadeira essa em que agora vos sentais par droit de naissance et de conquête, vós que achais avós, como hoje bem poucos acham, nas genealogias de Jaboatão, com cartas de brasão d’armas a serem desenhadas e publicadas pelo heraldista Egon Prates; vós que amais as letras e delas fazeis missão e profissão, somente incursionando na política, porque ainda a inquietação de vosso espírito moço a julga escola de aprendizagem e vossa jovem ambição a considera uma boa escada. Dia a dia, a experiência dos homens e das cousas vos mostrará que a grandeza dum nome literário, que se conquista por si próprio, jamais pode ser comparada com a de um nome político, que se conquista, em geral, por meio de manobras despistadoras ou pelo impulso que vem das forças ocultas. Há, por isso, homens de letras que desdenham as gloríolas da política e ainda está para nascer o político que não aspire à glória da literatura, ambicionando a Academia no próprio fingimento de desprezá-la.
Na nossa terra, os políticos galgam todas as posições e ocupam todos os postos. São até generais. Não se contentam. Apoiando-se na timidez de uns e no interesse de outros, conquistam mesmo aquilo que deveria somente pertencer ao profissional das letras, tão desfavorecido da sorte e tão esquecido pelos que emborcam a cornucópia das graças. Nós, escritores, publicistas, historiadores, que dedicamos nossa vida ao manuseio do documento, ao trato do livro, ao convívio da poesia e da filosofia, entendendo, amando e praticando a arte, nós podemos compreender quanto isso é particularmente doloroso para os verdadeiros homens de letras.
Não foi o caso de Félix Pacheco. Não foi o meu caso. Não é o vosso caso. Os três andamos perdidos pela selva escura, à espera do guia virgiliano. Jornalistas, literatos, poetas na expressão ou no coração, fomos seduzidos pelas sereias da política. Não fomos políticos seduzidos pelas sereias da literatura. Aquele que mais demorou entre elas foi o piauiense. Aquele que menos demorou, o cearense. Aquele que ninguém sabe quanto demorará e se não as enganará, ao invés de ser enganado como os outros, o baiano...
Quando iniciei os estudos de Direito no Ceará, conheci de nome Félix Pacheco como um dos jovens poetas que vinham formar nas hostes simbolistas despertadas por Cruz e Sousa. Quando cheguei ao Rio para terminar o meu curso, muito pobre e muito só, conheci-o pessoalmente. Ele acabava de ingressar na política. Eu arranjara um emprego modestíssimo no interior de Minas e ia partir para a velha cidade de Congonhas, quando, em companhia de meu muito querido e saudoso amigo, o impoluto magistrado que foi Eurico Cruz, encontrei na antiga leiteria Liga Marítima, na Avenida, um homem moço e grisalho, de esquisito olhar por trás das lunetas espessas, metido num grosso jaquetão de xadrez. Eurico Cruz apresentou-mo como seu amigo de infância e companheiro no Colégio Militar:
– O deputado Félix Pacheco, redator-secretário do Jornal do Commercio.
Senti uma tontura. Humilde provinciano de vinte anos à cata dum emprego, pobre jornalista duma cidade longínqua que vinha procurar viver em meio maior, deslumbrava-se diante do poeta já consagrado, do redator-secretário do órgão cujas várias derrubavam ministérios, deputado federal par dessus le marché! Mas Félix Pacheco estava, felizmente, num dia de excelente humor e tinha uma profunda amizade por Eurico Cruz. Dignou-se, pois, conversar com o rapazinho, indagar causas do Norte, pô-lo à vontade. A recomendação de Eurico para que favorecesse os primeiros vôos do jovem escritor, disse, despedindo-se:
– Mande-me uns escritos lá de Minas para o Jornal da Tarde e veremos...
Foi tudo e era quase nada, mas os náufragos se agarram a uma prancha, que é tão pouco, e com ela às vezes se salvam. Para o Jornal da Tarde. Nesse tempo, o Jornal do Commercio tirava uma edição vespertina, que fora fundada, se me não engano, por Gastão Bousquet. Félix abria-me as suas colunas. As da edição da manhã, não. Ainda era cedo.
Mandei crônicas, artiguetes e contos de Minas. Alguns figuram nas Praias e Várzeas e na Casa de Maribondos. O jornal publicava-os, mas, como vim a saber depois, Félix nunca os leu. Não tinha tempo para isso. Dava-os a Corinto da Fonseca para que julgasse se prestavam ou não. Perdido nas montanhas do sertão do Paraopeba, trabalhando de sol a sol para ganhar a vida, eu tinha de vez em quando a alegria de receber um pacote de jornais em que vinham os meus artigos com a assinatura João do Norte.
Tantos saíram que ousei mais alguma cousa. Escrevi um longo estudo sobre o Descobrimento da América e mandei-o nas proximidades do dia 12 de outubro. Era demasiado grande para a edição da tarde: ou ia para a cesta ou saía na da manhã. Duas semanas depois, Eurico mandava-me a edição da manhã com o meu artigo em primeira coluna, artigo de fundo! Que surpresa! Que alegrão! Eu penetrara o Santo dos Santos!
Essa publicação fez com que, na primeira oportunidade, deixasse meu emprego longínquo e viesse, com as economias feitas no sertão mineiro, tentar a vida na grande capital. Apresentei-me na redação do Jornal do Commercio, então no último andar do prédio atual. Numa sala redonda, sob a torre do canto, onde estavam as coleções e o arquivo, trabalhavam repórteres e redatores. Outra sala, com grandes espelhos e duas longas mesas de leitura, servia de antecâmara ao salão de conferências dum lado e ao gabinete de Félix Pacheco do outro. Entro nele timidamente e por felicidade me encontro com um velho conhecido do Ceará, onde se casara, dirigira um colégio e deletreava comigo nas rodas da livraria Araújo, Valente de Andrade, subsecretário do jornal. A efusão dum encontro inesperado. Explicações. Levou-me logo à presença de Félix que se não lembrava mais de mim. Ao nome de João do Norte, porém, sorriu e foi dizendo:
– O Corinto é quem lê os seus escritos e gosta muito. Todos têm sido publicados. Mandei publicar o do Descobrimento da América na edição da manhã. Vou dar-lhe um vale para o Sr. receber suas colaborações...
– Mas eu não as mandei com esse intuito...
– Fazemos questão de retribuir os nossos colaboradores. Procure o Sr. Oscar Costa na sobreloja e dê-lhe este papel. Apareça.
Tenho tudo isso bem presente na memória. Procurei o Sr. Oscar Costa, que mediu os meus artigos, calculou as linhas e me pagou uma quantia com que nunca havia contado. Só o artigo do Descobrimento foi pago por 120 mil réis, dinheiro com que naquela época eu vivia um mês! Imagine-se como não saí dali cheio de esperanças e cheio de mim...
Da primeira vez que voltei ao jornal, à noite, resultou a minha entrada para a redação. Estava a conversar com Félix Pacheco na sacada que dá para a Avenida, quando os primeiros tiros da revolta de João Cândido se fizeram ouvir. Um corre-corre de repórteres e redatores na noite angustiosa. Pus-me de boa vontade a ajudar o pessoal da casa como franco-atirador. Passada a refrega, passei a fazer traduções e tópicos; depois, entregaram-me o serviço telegráfico da edição da tarde; afinal, quando Valente de Andrade se despediu e Fontoura Xavier, irmão do poeta e diplomata, tomou seu lugar, preenchi-lhe a vaga no corpo redatorial.
Honro-me em ter começado a minha carreira jornalística no velho órgão. Aproveito o ensejo para deixar cair algumas flores sobre os nomes dos companheiros que dormem o sono eterno e dos quais me recordo sempre com abundância de coração: Valente, Fontoura, Ernesto Senna, Custódio, os velhos Carqueja, Joaquim Lacerda, Barbosa Rodrigues...
Sente-se no vosso discurso, Sr. Pedro Calmon, quando vos referis ao Jornal do Commercio, que o amais como se ama uma grande tradição da pátria brasileira. Mau grado divirja dele em várias cousas e dele esteja afastado há 23 anos, também assim o estimo e admiro. No meio do tumulto espalhafatoso da imprensa de hoje, confusa e rasteira na maioria, sem vida moral e espiritual, em que o tamanho dos títulos escandalosos cresce à proporção que mingua o padrão da compostura, o Jornal do Commercio é ainda um marco da boa doutrina e uma coluna de sustentamento da Ordem. Na verdade, seu prestígio não é mais aquele de tempos idos, em que uma vária derrubava um gabinete; mas ocorre esta pergunta: quem teria baixado mais de prestígio no mundo, jornais ou gabinetes?
Vivemos pragmaticamente a época da técnica. Tudo decidem os técnicos. Tenha a palavra um técnico, o grande jornalista francês Urbano Gohier, para vos dizer em meu lugar o que é o jornal moderno: “Tomo, ao acaso, – escreve – um dos maiores jornais da França, milhão e meio de exemplares, lido pela classe média. O número é impresso em dez páginas e setenta colunas. Quarenta e sete contêm anúncios pagos pela tarifa comum. Cinco contêm anúncios pagos muito mais caro e o silêncio, cujo preço o leitor jamais conhecerá. Na primeira página, dez fotografias: ministros, assassinos e seus advogados, estrelas de cinema, cães premiados em uma exposição, cavalos vencedores de corridas; de mistura, dois pequenos artigos completos e sete começos de artigos, cuja continuação é indicada: 2.a página, 1.a coluna; 4.a página, 3.a coluna; 5.a página, 1.a coluna; 4.a página, 2.a coluna; 5.a página, 7.a coluna; 5.a página, 3.a coluna; 6.a página, 7.a coluna, etc... É mais do que evidente que o leitor, na rua ou no ônibus, no restaurante ou no bonde, não poderá abrir quatorze vezes a imensa folha de papel para estar procurando o fim do primeiro artigo, voltando ao segundo, indo ao fim deste, tornando ao terceiro e assim por diante. Não; ele lê os trechos do início, lerá mais tarde os fragmentos das continuações e fará no seu pobre cérebro uma horrenda salada de dissertações econômicas, infanticídios, folhetins e contos alegres, notícias mundanas, informações políticas, anúncios de produtos farmacêuticos, crônicas urbanas, resumos financeiros, roubos e furtos, novas e prognósticos esportivos. Quando tiver absorvido tudo isso, poderá meter as mãos na cabeça e verá que não sabe exatamente nada...
“O conflito entre Mussolini e o Negus, a briga duma cabotina com seu empresário teatral, os socos dum turista americano numa dançarina bêbada dum cabaré de Montparnasse, introduzidos no seu espírito no mesmo plano, em gravuras do mesmo formato, em pedaços separados e misturados como um cocktail, tomarão valores idênticos e o deixarão aparvalhado. Ainda por cima, todas as cousas lhe são apontadas por meio de abreviações misteriosas: a ação dos C. D. H., a polêmica da F. P. I. com o departamento da I. S. R., a filiação da A. D. G. B. à Internacional de Amsterdã, o domínio dos políticos belgas sobre o I. O. S. e o P. O. B., as negociações do C. C. N. da C. G. T. U. com o E. G. T. da C. G. T. P., as iniciativas da D. R. A. C., da O. R. I. M., da F. S. J. R. L., a cisão entre a S. S. S. S. e a F. F. P. H. Como poderá ele lembrar-se, sem desfalecer, que a F. I. D. A. C. é a Federação Interaliada dos Antigos Combatentes; que a S. T. C. R. P. é a Sociedade de Transportes Comuns da Região de Paris; e que a L. F. A. C. F. é a Liga Feminina da Ação Católica Francesa? Desiste disso e não quer mais saber de nada, mandando tudo ao diabo... Não se interessa mais senão pelo Circuito de França, pelos imundos feitos de Violette Nozières e Oscar Dufrenne, pelos matches de boxe com suas tramóias e pelos espetáculos, cuja lista fielmente tirei dum único número do referido jornal: – Mulheres loucas – Doze dançarinas nuas – Toda nua! – Mulheres nuas – O clube das mulheres nuas – Toda nua, minha senhora! – Carnes nuas – Nus em folha – Com os nudistas – A barca das moças nuas – O cruzeiro dos nus – A garçonnière do sátiro – Uma noite do marquês de Sade – Isto numa só noite, em dez teatros e teatrinhos de Paris!”
Eis como um grande jornalista francês vê a imprensa de seu tempo e de seu país. A nossa segue o exemplo. Parece caricatura o que aí está, mas é, infelizmente, um painel verdadeiro. Bem haja, pois, o velho Jornal do Commercio que conserva, no meio desse delírio do sensacionalismo e da confusão, as linhas puras duma folha à antiga e decente! Vemos nele como que uma fachada clássica, com seu peristilo dórico, sua harmonia e seu ritmo, perdida no seio dos elances malucos dos arranha-céus lisos e polidos, que não são mais edifícios, porém, consoante a definição dos modernos arquitetos, máquinas de morar...
Completei minha educação de jornalista dentro dos lineamentos do velho órgão e lhe atribuo a couraça com que pude resistir a todas as seduções da imprensa escandalosa, preferindo antes o retraimento do que certa publicidade. Como vós, Sr. Pedro Calmon, freqüento os jornais na qualidade de colaborador. Somos pessoas de cerimônia recebidas na sala de visitas. No dia em que fizermos parte da família, teremos de ir até a cozinha. É preferível, portanto, que vamos ficando onde estamos...
Em verdade, no Rio de Janeiro, o único jornal diário de que efetivamente fiz parte, foi o que Félix Pacheco secretariava no meu tempo e passou a dirigir e possuir depois de minha saída. Falastes aqui do poeta, do publicista, do erudito baudelaireano e do político. Evocastes todas essas facetas da mesma complexa personalidade. Eu quero lembrar somente, no jornalista, o companheiro de redação, chefe e amigo, entre 1910 e 1913, quando ainda se andava de tílburi neste Rio de Janeiro, a Suzana Castera, condecorada pelo governo francês com o Mérito Agrícola, passeava num carro puxado por mulas brancas, sob o amplo guarda-sol de malinas e valencianas; quando se apregoava na Rua do Ouvidor – “Vai começar a inana!” e o Morro da Graça decidia dos destinos do Brasil no gozo da lua de mel liberal-democrática, sem os miados e uivos perturbadores dos extremistas da Esquerda ou da Direita...
O que, então, eu mais admirava naquela figura encanecida e acurvada antes de tempo era a formidável capacidade de trabalho, que, em dezembro, com os pareceres orçamentários da comissão de finanças de que fazia parte, na Câmara, atingia o ápice. Quantas vezes, após um plantão exaustivo, descemos a pé, de madrugada a calçada de mosaico da Avenida, tomamos uma média no Café Suíço, onde se reuniam redatores de O País até o amanhecer, apanhando eu um bonde para Laranjeiras ou Catete, onde residia, ele um tílburi para Botafogo. No dia seguinte, fatigado, mal dormido, vinha às nove horas começar o serviço telegráfico da edição vespertina e sempre o encontrava em atividade. Não me recordo dum dia em que houvesse chegado depois de mim.
Humor variável. Ora, de cabeça para cima, ora de cabeça para baixo. Umas vezes, de veludo e seda; outras, de espinhos e seixos pontudos. Era difícil adivinhar. Engolia uma baleia e engasgava-se com uma piaba. Generoso, passando a mão pela cabeça de todos, de manhã. Ranzinza insuportável, de tarde. Às vezes, dum carinho de irmão mais velho. Outras, duma secura e rispidez de inimigo. Tudo dependia das condições de momento naquela vida que se esgotava, mantendo as tradições do jornal e centralizando um trabalho superior às próprias forças, sem dar o braço a torcer, ah! isso nunca! No entanto, que cuidado maternal com amigos velhos e novos, que não transparecia e como que se escondia mesmo sob as asperezas! Um amigo velho e um novo, Miguel Melo e eu, andávamos sempre juntos. Corda e caçamba. Eu, redator; ele, colaborador Ao aproximar-se o fim do mês, Félix Pacheco procurava saber por intermédio de Miguel Melo quanto eu já havia feito de extraordinários, porque meu ordenado não era muito grande e os bicos o arredondavam, a fim de me dar traduções e outros serviços que completassem a soma de que carecia para viver e estudar. De mim, indagava, discretamente, quanto a colaboração do Miguel já havia rendido, com idêntico fim. E, como a cada um recomendasse segredo, pensava que não conhecíamos um e outro o subterfúgio.
Não, Sr. Pedro Calmon, por mais que o vosso talento esmalte de belas cores o brasão do artista e do homem público, ficai certo de que esse Félix Pacheco foi um Félix Pacheco que uns podiam admirar e outros criticar, enquanto que aquele que conheci na intimidade e ora aqui revelo, esse somente merecia um profundo querer bem. É com o coração nas mãos abertas que vos digo isto e à Academia e a todos quantos hoje se reúnem nesta sala para vos aplaudir: lá no outro lado da vida, se me escuta e me vê, o amigo dos dias de mocidade e de esperança, está lendo a sinceridade do meu preito ao Félix Pacheco do meu tempo de jornal.
Sois muito moço ainda, Sr. Pedro Calmon. Tendes um pouco mais da idade que eu tinha, quando representei com o primeiro Alberto Faria esta mesma peça dialogada que ora estamos representando. Ainda não conheceis todas as agruras da jornada. Dia virá – e não vos rogo nenhuma praga – em que sob a poeira da caminhada vereis brotar as primeiras gotas rubras do sangue tirado pelos espinhos. É a lei da vida. É o tributo que temos de pagar. Desejo e espero, contudo, que vejais menos gotas e mais tardias do que as vi. Divergimos no feitio e bastante, embora nos compreendamos bastante. Sois doce e eu, áspero. Sois um florentino na governação de vossa vida. Eu me atiro nas lutas, sem medir conseqüências, pelo próprio prazer de lutar. É para esses pingos de sangue que estou olhando agora, depois de ter tido o prazer de recordar...
Doce e florentino. Todavia, há na vossa existência um traço que me apraz assinalar agora e que é o penhor de que também sabeis quanto é belo, nobre e revigoradora a luta. Parente próximo pelo sangue e mais próximo ainda pelo espírito e pelo coração dum nobre homem público, então no poder, parente de outros, então prestigiados e fortes, bem moço chegastes ao Rio de Janeiro e não vos metestes entre os biombos dourados dum gabinete de ministério, nem procurastes uma sinecura, nem intrigastes por um cartório rendoso.
Mas preferistes, modestamente, fazer um simples concurso para Terceiro-Secretário oficial do Museu Histórico, entrando para uma repartição de ordenados parcos, de verbas humildes, de promoção dificílima pelo seu quadro restrito, mas acorde com o vosso sentimento, as vossas inclinações e os vossos estudos. É bem raro nos dias que correm os que, assim como vós, preferem os ditames do Espírito às solicitações poderosas da Matéria.
No dia em que Félix Pacheco foi eleito para esta Casa, saímos do jornal à tarde e fomos a uma sessão do antigo cinema Odeon, esquina de Avenida e Sete de Setembro, ver uma fita da Francesca Bertini. Num dos intervalos, Félix disse-me de repente:
“– João (era como sempre me chamou), vai lá dentro e pergunta pelo telefone o resultado da eleição na Academia.”
Eu não sabia que se tratava da eleição dele. As edições do jornal não tinham publicado uma palavra. Ele nada dissera aos companheiros. Foi com surpresa que recebi a notícia de que fora eleito. Dei-a, alvissareiro. Guardou silêncio. Quando saímos, anoitecera. Chamou um táxi e convidou-me:
– Venha jantar comigo em casa, à Rua Evóneas.”
Jantamos e voltamos para o jornal. Quando eu fui eleito para a Academia, os caminhos de nossas vidas não corriam mais paralelos. Félix Pacheco, ministro do Exterior, despachava no palácio do Catete com o Presidente Artur Bernardes. Não íamos mais juntos ao cinema nem jantávamos mais na mesma intimidade...
Há um outro Félix Pacheco que devo evocar esta noite para que memória fique dele nos anais desta Casa. É o Félix dos primeiros vôos no Colégio Militar, o Félix do jornalzinho Aspiração. Nada mais curioso para os que se preocupam com as cousas do espírito do que conhecer os primeiros escritos de prosadores e poetas que atingiram certa notoriedade. Palpa-se, assim, o ponto de partida de sua evolução mental. Infelizmente, não se tem publicado de todos os homens de letras notáveis as primeiras páginas, a exemplo do que se fez com Gustave Flaubert. Daí a curiosidade que nos anima quando sob nossas vistas caem as primeiras produções dos grandes escritores.
Aspiração era uma pequenina “folha literária e científica”, como ela própria se intitulava, publicada por um luzido grupo de meninos do Colégio Militar. Fez época aí pelo ano da Graça de 1894. Dizia-se mais órgão representativo duma sociedade literária colegial, cujo presidente era o Sr. Alincour Fonseca e cujo Primeiro-Secretário era o Sr. José Félix Alves Pacheco. O vice-presidente chamava-se Eurico Tôrres Cruz.
As suas sessões comemorativas ou solenes eram, às vezes, presididas pelo engenheiro Graça Couto, que pronunciava os discursos oficiais, enquanto Félix Pacheco recitava Guerra Junqueiro e o educador Franco Vaz dizia monólogos. Hoje, estão em moda heptálogos e octólogos... É interessante percorrer a coleção da folha infantil. Artigos sobre o Homem Primitivo, de Bias Pimentel, sobre numeração, de Egídio de Castro e Silva, sobre vários assuntos, de Colatino Barroso, de Saddock de Sá, de outros, atualmente cobertos de galões ou em altos postos civis.
Passemos rapidamente a vista por alguns números. No de n.o 14; Félix Pacheco estampa um trabalho “As moças de hoje”, em que desanca as melindrosas da época. Imagine-se o que não escreveria sobre as de agora... No de n.o 15, já em 1895, o nosso caro presidente, Sr. Laudelino Freire, professor do Colégio Militar, comparece com um artigo sobre a Tomada da Bastilha. A efeméride merece uma crônica de Urbano Duarte e um editorial do professor Hemetério dos Santos, afirmando que o 14 de julho foi o 13 de maio dos brancos... Na secção pilhérica “Girando”, o meu saudoso amigo Miguel Melo, também aluno do Colégio nesse tempo, é nomeado entregador do Aspiração pelo ordenado mensal de 540 réis... Mário Barreto fazia as “Notas Filológicas” e Milton Cruz elogiava Floriano Peixoto. Félix, porém, era o mais fecundo colaborador do jornalzinho, em estudos, em artigos, em cartas à redação, em polêmicas, em versos, em desabafos contra os críticos que denomina “bananeiras improdutivas”, em explosões de entusiasmo por Napoleão Bonaparte, “O Raio da Guerra”:
Então, com voz retumbante,
imperiosa e possante,
fez marchar a expedição.
As pirâmides famosas
ouviram silenciosas
repercutir em Gizeh
O ronco atroz do canhão!
Deixemos, porém, o passado, que já nos deu seus melhores frutos: a experiência e a saudade. Deixemo-lo e olhemos para o presente. É preciso não olhar demasiado para trás, para não nos imobilizarmos em estátuas de sal. O presente sois vós e o futuro sois vós, por serdes moço, não direi propriamente belo, mas posso afirmar que mais bonito do que feio e, sobretudo, extremamente simpático, Vossa simpatia não é somente a da exterioridade física, porém, ainda mais a da exteriorização intelectual e moral. Uma obra cheia de vida e de brasilidade, vazada na preocupação das cousas sérias e nobres. Uma vida moralizada e digna, norteada pelos princípios da moral cristã.
Ao lado dum espírito prático, muito de sonhador, olhando para o passado com uma grande vontade que ele ressuscite. Como não podeis dizer-lhe: – “Levanta-te e caminha!” presenciando o milagre conseqüente, o ressuscitais na vossa arte, cujas raízes se prolongam muito adentro na terra, na vida, na gente, na alma do Brasil. Sente-se isso em todos os vossos livros, tanto no ensaio biográfico ou histórico quanto no conto ou na novela. Essa brasilidade faz com que eu me honre em receber-vos, como me honrei em receber Olegário Mariano, o grande poeta de “Meu Brasil”.
Sem deixar de ser humano e cristão, sem esquecer os laços que nos prendem à civilização mediterrânea, sem repelir as nossas bases clássicas, sois antes de tudo, como eu, mais uma coincidência, um namorado do Brasil, em uma época triste e perigosa em que muitos são namorados de Moscou e a maioria namorados unicamente de si mesmos. Qualquer de vossos livros, até os menos conhecidos e valiosos, mostram claramente esse namoro. Basta analisá-los. Façamos a experiência com a novela O Tesouro de Belchior que a Academia houve por bem premiar em renhido e ruidoso pleito literário. Estudemo-la no seu significado brasileiro e humano.
As lendas das Cucanhas, dos países maravilhosos e afortunados, de leite e mel, de pedraria rutilante, de ouro e prata, vêm de longe nas tradições da humanidade. Algumas parecem a saudade de melhores tempos vividos pelo homem: a Idade de Ouro. Outras como que evocam eras anteriores à Terra, para a qual viemos como degredados em expiação: os Campos Elíseos. E outras muito simplesmente traduzem o desejo muito humano de encontrar qualquer cousa melhor do que a mesmice de todos os dias na existência comum.
Vêm de longe, até estas últimas, filhas, sem dúvida, das outras. Já Pompônio Mela, no seu Livro III, ao tratar do Oceano Oriental e da Índia, fala do modo seguinte duma região indiana:
Ali as formigas são do tamanho de cães e guardam, segundo dizem, como os grifos, o ouro que arrancam às entranhas da terra, fazendo pagar caro a audácia dos que o tentam roubar. Há serpes também tão prodigiosas que matam até os elefantes ou dilacerando-os com os dentes ou enlaçando-lhes os corpos. Em alguns lugares, o solo é tão fértil e fecundo que o mel escorre das folhas, as árvores produzem lã e um gomo de caniço que dá para construir uma canoa em que cabem dois e mesmo três homens.
Eis aí a famosa Cucanha medieval – sonho de aventureiros durante séculos, que, ao alvorecer do Humanismo, veio fazer rir de boca escancarada o inimitável Rabelais. O Dit de Cocagne, versalhada francesa do século XIII a que alude Gastão Paris, pinta esse país de sonho com todos os pormenores. Nessa terra fantástica, produto do anseio humano de melhorar de sorte, da eterna esperança humana num paraíso terreal ou celeste, cuja origem está na mais remota antiguidade e que os antigos tupis buscavam sob o nome de Ivi-Meranhim, – as peças de vianda giravam por si próprias no espeto, os gordos bácoros assados e louros passeavam pelas ruas com uma faca enterrada no lombo para quem quisesse tirar sua fatia, o vinho corria em regatos, o mel abrolhava na rugosa casca dos freixos e das olaias, os telhados das casas eram de pão fresco, reinava uma eterna primavera, pagava-se maior salário a quem mais dormia e a água jorrante da fonte de Juventa não deixava envelhecer! A fome do pobre e a glutoneria do rico não podiam sonhar sonho melhor do que esse, na Idade Média.
Veio o derrame de aventureiros pelos Oceanos Tenebrosos e pelos Continentes Desconhecidos. A lenda da Cucanha misturou-se às das terras desaparecidas, das ilhas misteriosas e felizes dos primitivos navegadores. Andaram uns de déu em déu, buscando as Makariai gregas, as Afortunadas dos latinos, a da Mão de Satanás dos feiticeiros, a de São Brandão dos cristãos irlandeses, a das Sete Cidades dos atlantes, a do Brasil dos Celtas. E Ponce de Leon, grande fidalgo e grande sonhador, procurando a fonte da Eterna Mocidade, descobriu a Flórida nas brumas azuis do Mar das Antilhas.
Mal tocam os descobridores a virgem terra americana e iniciam seu desbravamento, a lenda imortal se reveste de novas formas. Na espessura das selvas, no coração de ínvios sertões faísca a riqueza sem par da áurea cidade de Manoa. Aos prescrutadores da imensidade da Ásia tártara acenava a miragem do Preste João, soberano cristão perdido com seu povo na ignota vastidão do continente. Aos da imensidade americana seduzia a do rei coberto de ouro da cabeça aos pés, El-Dorado, governando um país em que tudo era de ouro e se mirava nas águas misteriosas do Lago Parima. Quantas dezenas de bandeirantes se perderam na intrincada floresta virgem, nos labirintos dos igapós, nos chapadões solitários, nos araxás desertos e nas serranias intransponíveis à procura da nova e intangível Cucanha? Mas, por causa dela, Orellana explorou o curso do Amazonas.
Parece que a natureza influi sobre a mentalidade humana para a criação de tais lendas, pois elas são mais do que necessárias à ação civilizadora do homem. São elas que conduzem as aventuras e bandeiras fecundantes aos desertos inviolados e às florestas impenetráveis. Dão aos indivíduos a força sobre-humana com que realizam entradas e incursões, bandeiras e conquistas. Os próprios chefes de bando com certeza deviam explorá-las, a fim de manter no espírito de seus companheiros a chama sagrada do desejo e da ambição, segredo dos prodígios que praticaram. Ao exegeta, o papel de tais lendas é como o do tesouro que, na fábula célebre, o pai legou aos filhos, dizendo-o enterrado em seu campo. Tanto o esfuracaram, revolveram e araram que o fecundaram para o viço dos trigais cor de ouro, transformando-o de verdade em uma riqueza de searas opimas.
Cortados ou perlongados os rios, prescrutadas ou percorridas as selvas, desvendadas ou dominadas as cordilheiras, nunca se encontraram Manôa, Parima e Eldorado. A lenda protéica se arrebicou com nova pintura. Foi a Serra das Esmeraldas, a azul Vupabussu, atraindo do fundo dos horizontes Fernão Dias Paes Leme. Foi Sabarabussu, a Serra de Prata, alvejando na largura imensa do sertão. Foi o branco, faülhante morro de prata do Moribeca, erguido no meio das ásperas caatingas do interior baiano, desafiando a cobiça dos bandeirantes. Seu poder foi como o instinto genésico que obriga à propagação da espécie na quase alucinação do desejo. Forçou a violação das regiões ignoradas.
É num derradeiro avatar dessa lenda tão antiga que bordais a colorida teia da novela O Tesouro de Belchior, cujo assunto explicais desta sorte em erudita nota:
Belchior Dias Moréa (ou Caramuru), audacioso mameluco que se afazendara, por ocasião da conquista de Sergipe, nas várzeas do Rio Real, era, por Genebra Álvares, neto de Diogo Álvares Correia e de sua mulher, a tupinambá Catarina. Jaboatão, à míngua de documentos, desconheceu-lhe a descendência e mesmo a antonomásia. Deixou Belchior, entretanto, ilustre sucessão, que se enobreceu em constantes alianças, avultando em haveres e prosápia. Guerreiro às ordens de Cristóvão de Barros no rush de Sergipe, bandeirante em substituição do insigne Gabriel Soares, cuja espada levantou tombada nas cabeceiras do Paraguassu, criador de gado no Jebiberibe e descobridor das minas de prata, disse dele um outro famoso sertanista, Pedro Leolino Mariz, que ninguém o superava em poderio e influência. Informa o ofício do Intendente Geral das Minas Novas, de 1752: “O Moribeca (assim chamavam a Belchior Dias Moréa) foi o mais apotentado homem deste Estado...” Mariz, Leal, outros notáveis bandeirantes baianos, creram sempre nas jazidas até hoje engastadas no coração da terra. Morto o Moribeca, seu filho Robério (a quem a lenda indevidamente dera os títulos do pai), seu bisneto, o Coronel Belchior da Fonseca, os fidalgos da Torre, D. Rodrigo de Castelo-Branco, o Coronel Pedro Barbosa Leal, por último o “mestre de campo de conquista” João da Silva Guimarães e Lourenço Antônio Bragança baldadamente perseguiram a miragem. Sabugosa, com desânimo e aflição, comentara a 23 de agosto de 1730 “que as minas foram a total perdição do Brasil e a falta delas hoje será sua última ruína...
Na novela, em desespero de amor, um moço bastardo e pobre procura o tesouro do velho Belchior, o monte de prata que lhe dará honra, fortuna e glória. Livro profundamente brasileiro. Um tanto romântico, sem dúvida. Traços de Alencar e de Rodrigues Larreta. Laivos de ironia a Montalvo. Linguagem preocupada com a pureza da liga entre o termo antiquado e a necessidade da expressão moderna. Um senso novo no rápido trato das paisagens. De quando a quando uma água-forte. Exata reconstituição do ambiente, do móvel à cela do convento, do bacamarte afunilado às arquiteturas barrocas, do pano de vestir à manifestação das almas. E páginas triunfais, como a entrada da bandeira que regressa pelas corcoveantes ruas da Bahia! A evocação da antiga vida brasileira.
No entrecho, bordada uma mentira de grande quilate, miragem maior do que ilhas Abençoadas, Preste João, Cucanhas, Manôas, Eldorados, Serras de Esmeralda ou Montes de Prata: os personagens de sua fantasia encontram todos a felicidade, cada qual a seu modo e contento, depois de árduos trabalhos. A lição cruel da vida às vezes é outra. Nem sempre com esforços se obtém os tesouros de Belchior, lendários ou verdadeiros. Em geral, o mérito tem até o grave condão de afastá-los. A existência raramente segue o exemplo dos romances.
Mais uma vez, não é o vosso caso, pois que chegastes a este Eldorado das letras nacionais, a esta áurea Manôa sobre a qual corvejam todas as ambições, tanto maiores quanto mais ignoradas e menos justificáveis, pelo vosso esforço numa longa bandeira de penetração através da nossa história, da qual regressais, fazendo inveja em bandeirantes mais antigos e menos felizes, com as mãos cheias de pepitas de ouro, de diamantes e de esmeraldas que sabeis lapidar e expor na magnífica vitrine de vossa obra notável.
A evocação da antiga vida brasileira, disse há pouco. Repito: a evocação da vida brasileira é toda a vossa obra de escritor e historiador. O panorama das tradições familiares e solarengas inspirou-vos um volume de contos: Pedra d’Armas. O panorama das lendas de penetração, como vimos, inspirou O Tesouro de Belchior. Na lição de Glotz, é um fato de natureza universal a lenda preceder a História. Do panorama hediondo da escravidão, do tráfico fenício-judaico de carne humana, que enriqueceu a liberal Inglaterra, quando montava na Virgínia haras de reprodutores negros, penetrastes no ponto mais misterioso, a insurreição muçulmana das senzalas, para escrever as páginas do Malês. Em A Conquista, traçastes o panorama das gloriosas bandeiras baianas, ao tempo em que a gente da Torre e a gente do Sobrado varavam a largura do sertão bravio, repelindo o kriri e buscando o ouro cobiçado nos desvãos de todas as grotas. O Espírito da Sociedade Colonial, que se tornou livro obrigatório na estante de qualquer brasileiro, é o panorama, não só da vida, mas das almas, dos nossos avós, a quem o velho João Brígido apelidou com um ressaibo de ironia maldoso: Bons, burros e bravos. Os anseios de liberdade, a gestação da nacionalidade política constituindo-se na placenta do espírito de brasilidade que vinha da guerra holandesa, a aurora do Império desabrochando ao sol do Ipiranga, é o panorama que nos pintais em vosso estilo quente e faülhante, lantejoulado de entusiasmo, na História da Independência do Brasil. Aludistes de início ao “milagre de claridade e cor da terra natal”; é ele que nos apresentais em novo panorama: História da Bahia. E, afinal, com uma palheta de mestre consumado, sem pequenos artifícios, em largas e magníficas pinceladas, sombreando os grandes fatos e os grandes homens que ressaltam dos fundos coloridos das massas anônimas agitadas pela História, ofereceis aos nossos olhos curiosos como os das crianças o vasto panorama da História da Civilização Brasileira, desde o descobrimento com as cruzes de Cristo sangrando nos traquetes das caravelas até as bandeiras auriverdes do Império transmudadas nas bandeiras auriverdes da República, desde o ciclo do açúcar com seus primitivos engenhos, até os ciclos dos empréstimos escravizadores, dos parlamentos e das hegemonias presidencialistas.
Homens e cousas. Afastareis um tanto as cousas, os grandes cenários, as multidões, as esquadras, os exércitos, e nos dareis os grandes homens isolados, arrancando-os um a um dos panoramas sociais em que se esbatiam. Tirais do panorama das lendas de penetração e das bandeiras, majestosa de simplicidade, a figura de Anchieta – o Santo do Brasil. Do panorama da história de vossa Bahia, O Crime de Antonio Vieira. Do panorama do espírito da sociedade colonial, com seu corolário e resumo, o vulto de D. João VI nesse tão simpático e sentido livro que é O Rei do Brasil. Do panorama da Independência, perfilado no seu corcel de guerra, recamado de douraduras, o recurvo sabre egípcio ao lado, o alto bicórnio de través, destabanado e destemeroso, O Rei Cavaleiro, o nosso primeiro imperador, cujo sacrifício no 7 de abril e na reconquista do trono português, purificou dos erros da agitada mocidade e dos amores com a marquesa. E, no vasto panorama de nossa civilização, fostes buscar em pontos extremos duas nobres individualidades para retratá-las em livros: nos dois Reinados, O Marquês de Abrantes; na República, o heróico defensor da Lapa, Gomes Carneiro, o General da República.
Tem-se a impressão de que pintastes todos esses panoramas com o intuito preconcebido de servirem de moldura aos retratos e miniaturas, cujas tintas foram combinadas com esmero. Todavia, entre eles se sente que amais a uns mais do que a outros e a um sobretudo. É D. Pedro I, quem goza da vossa preferência. Somente citarei uma página vossa, nesta noite, além da pequenina e erudita nota que já referi, para que ela tenha o relevo que merece. É aquela em que descreveis com lágrimas no estilo os derradeiros momentos do nosso Imperador:
D. Pedro I expirava como uma luz que, se apaga docemente: a este clarão trágico a epopéia de sua vida se recortava bruscamente. Os poetas suspiravam que ele se finava oportunamente, sobre os troféus do seu triunfo, antes que os corrompesse o tempo e no relógio da história outras horas soassem; porém, o povo, pasmado daquela insidiosa febre, e costumado de ver morrer assim reis inválidos e bambos, jamais rapazes sadios como galegos, rompia pelas igrejas a suplicar de Deus a saúde do Libertador. Deus não o ouviu e os poetas tiveram razão. Caindo sobre os louros frescos da glória, não resvalou D. Pedro para as miseráveis esferas da vida medíocre e do fim obscuro: na sua cabeça imperiosa não alvejaram as cãs, e foi com ela alta, a irradiar força e sonho, que entrou festivamente nos círculos dos nomes imortais.
D. Amélia não lhe abandonava a cabeceira. Raros fidalgos entravam na alcova de sua dor. A vida deixava-o vagarosamente, travando-lhe os movimentos, enquanto a inteligência, lúcida e acesa, ardia teimosamente o seu facho, até o fim.
A 19, o Duque da Terceira foi beijar a mão ao moribundo. D. Pedro pediu que lhe trouxessem um soldado do 5.o. Era o batalhão de guarnição da Ilha Terceira, que estivera em armas por cinco anos, arrastando o seu fio de sangue pela história da Restauração. A ele dera D. Maria a bandeira bordada pelas suas mãos. O batalhão-mártir. O soldado apresentou-se, perfilado, a sua medalha da Torre e Espada no peito arqueado de praieiro, as pernas trêmulas, uma onda de emoção a sufocá-lo. Atraiu-o brandamente, abraçou-o e disse-lhe: – “‘Transmite aos teus companheiros este abraço de saudade...’ O soldado saiu soluçando, e fora do palácio, desesperado, bradava: ‘Ó Deus, por que uma bala não me matou no Porto, antes de ver neste estado o meu coronel!’
Esta página dispensa-me da leitura de qualquer outra, como da referência a outros trabalhos de vossa lavra, sobretudo os jurídicos, que gritariam por se verem nesta companhia...
Panoramas. Homens. Cousas. Almas. Será somente isso a História. Não. Há alguma cousa mais e alguma cousa muito séria. Tenha a palavra Emanuel Malynski através de Léon de Poncius:
Existem sempre centenas de milhares de homens bastante ingênuos para acreditar que as cousas acontecem por si mesmas e que saem do nada sem que ninguém as mova. Por menos que se reflita, isso é um absurdo filosófico e um desafio ao bom senso. Sobretudo numa época que pretende ser científica e em que se deve saber que os próprios processos outrora tidos como automáticos e regulados pelas leis abstratas da natureza, como a decomposição dos cadáveres, a velhice, a morte considerada natural, são determinados por agentes concretos e vivos chamados bacilos e toxinas, que trabalham para esses fins. Sem eles, não haveria decomposição, nem febre, nem decrepitude, nem morte, e, se tais agentes são invisíveis, isso não quer dizer que realmente não existam.
Do mesmo modo, na sociedade, que é a humanidade no espaço, e na história, que é a humanidade no tempo, bacilos e toxinas de forma humana, que o olhar das gerações não divisa, que o olhar dos historiadores ignora ou, na maior partes das vezes, finge ignorar, mas cuja existência não é mistério para o bacteriologista da sociedade e da história, provocam febres, decrepitudes e decomposição, paralisias ou convulsões, velhice, invalidez e morte...
Um de vossos grandes méritos como historiador é justamente serdes dos raros que se atrevem a denunciar alguns desses bacilos. Mostrais em vossos livros alguns desses micróbios secretos, econômicos e políticos, produzindo nas sombras o que vai aparecer à luz. Por várias vezes, no ciclo dos açúcares ou nos rodamoinhos das guerras e políticas, mostrais o judeu internacional e o pedreiro livre, seu aliado oculto, agindo no sentido da mesma obra demoníaca de destruição dos fundamentos da civilização cristã. Levantastes algumas pontas do espesso véu que cobre a História Secreta do Brasil. Os demais fazem sempre história como diria o Balzac das Ilusões Perdidas: Ad usum Delphini.
Nunca os micróbios, bacilos e toxinas, que vós bem conheceis como bacteriologista da história que sois, sr. Pedro Calmon, trabalharam tanto no fundo dos metabolismos sociais como hoje. No grande zodíaco dos mundos, a era dos Peixes se encerra no derradeiro milênio para que se inaugure a era do Aquário. Já os Arcanjos do Eterno, como rezam os livros enoquianos, se curvam sobre os Pólos, a fim de mudar a posição do eixo da Terra. A voz de Gabriel Hanotaux, recebendo Paul Valéry na Academia Francesa, anuncia o milagre: A l’heure où nous sommes, l’humanité est comme en suspens. On ne sait quoi de grand ou d’extraordinaire se prépare ou va naître, le monde est aux écoutes et se tait dans une attente anxieuse.
Nada, Sr. Pedro Calmon, nasce sem dor. A nova era nascerá da dor. Da dor e do sangue. Os profetas afirmam que a cor do sangue será a cor da nova idade. E um deles, Paul Le Cour, companheiro de Jorge Duhamel no grupo de estudiosos de Atlantis, escreve:
Os que andam cantando a Internacional e brandindo a bandeira vermelha ficariam assombrados se lhes disséssemos que proclamam a futura soberania mundial do Cristo-Rei, cujo emblema é a cor vermelha, a Púrpura Real. Mas, como já dizia José de Maistre, a lima não sabe que está fabricando uma chave...
Na verdade, o destino do Mal é trabalhar pelo Bem. Rezam, porém, ainda as profecias que, antes do Cristo, virá o anticristo, em tudo semelhante ao Cristo, de modo que muitos serão enganados e o seguirão. Como conheceis bem os micróbios que preparam seu advento, estou, Sr. Pedro Calmon, que não vos contarei no número dos iludidos. A Academia, que hoje vos recebe com flores da Natureza e flores de retórica, é uma Casa tradicionalista e ordeira, por princípio e instinto de conservação. Ela somente pode viver, à sombra da ordem e da estabilidade. Expressão de pensamento e cultura do Brasil cristão e livre, sabe que vós sereis um de seus grandes soldados na defensão do seu patrimônio espiritual.