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Guilherme de Almeida

SONETO IX

Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, eu sei que esse canto te consola.

E, lá na rua, o povo tumultuário,
ouvindo o canto que daqui se evola,
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.

Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.

E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.

SONETO XXI

Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.

E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
"Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: "Que é feito dela?"

Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;

irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!

SONETO XXXII

Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada,
eu saía a brincar, pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.

Fazia, de papel, toda uma armada;
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel, são como aqueles,

perfeitamente, exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!

(Nós, 1917.)

CUIDADO!

Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!

Desperta os ninhos vosso passo... E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando...

Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem ver!

Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!

(Messidor, 1919.)

A DANÇA DAS HORAS

Frêmito de asas, vibração ligeira
de pés alvos e nus,
que dançam, tontos, como dança a poeira
numa réstia de luz...

São as horas, que descem por um fio
de cabelo do sol,
e vivem num contínuo corrupio,
mais obedientes do que o girassol.

Dançando, as doze bailarinas tecem
a vida; e, embora irmãs,
não se vêm, não se dão, não se parecem
as doze tecelãs!

E, de mãos dadas, confundidas quase,
no invisível sabá,
elas são silenciosas como a gaze,
ou farfalhante como o tafetá.

Frágeis: têm a estrutura inconsistente
de teia imaterial,
que uma aranha teceu pacientemente
nos teares de um rosal.

E, entre tules volantes, noite e dia,
o alado torvelim
vertiginosamente rodopia,
numa elasticidade de Arlequim!

Vêm coroadas de rosas, num remoinho
cambiante de ouro em pó:
cada rosa, que esconde o seu espinho,
dura um minuto só.

Sessenta rosas, vivas como brasas,
traz cada uma; e, ao bater
da talagarça diáfana das asas,
põem-se as coroas a resplandecer...

À proporção que gira à minha frente
o bailado fugaz,
cada grinalda, vagarosamente,
aos poucos, se desfaz.

E quando as doze dançarinas, feitas
de plumas, vão recuar,
levam as frontes, claras e perfeitas,
circundadas de espinhos, a sangrar...

Assim, depois que a estranha sarabanda
na sombra se dilui,
penso, vendo o outro bando que ciranda
em torno do que fui,

que há uma alma em cada gesto e em cada passo
das horas que se vão:
pois fica a sombra de seu véu no espaço,
fica o silêncio de seus pés no chão!...

(A dança das horas, 1919.)

METEMPSICOSE

Morrer... Pelos caminhos
ir branco, ir muito frio, ir de roupinha nova,
as mãos em cruz, o olhar de vidro os pés juntinhos:
ir assim para a cova!

Ir e não ver... Bizarro!
E tudo tão luxuoso, e tudo rico, tudo!
Os amigos de preto, as coroas, o carro,
o caixão de veludo...

Bizarro! Que vida, esta!
Ser festejado assim, com tanto rebuliço,
com tanta pompa assim: e o anfitrião da festa
nada a ver de tudo isso!

Depois, a sepultura:
sair de um leito pobre e de colchões macios,
para um de pedra, rico... Ah! mas que cama dura
e que lençóis tão frios!

E desfazer-se aos poucos...
Não ter o que comer e dar comida a tantos
inimigos! Meu Deus, que terra esta de loucos!
De loucos ou de santos?

Ficar assim, agora,
escutando o silêncio e olhando a treva... E, inteira,
completamente só, voltar ao que era outrora:
ser poeira de outra poeira!

Mas, na terra selvagem,
achar uma semente: adubá-la, um minuto,
e ser raiz, e ser arbusto, e ser folhagem,
e ser flor, e ser fruto!

Flor que um Sol Poente banha
e que vai perfumar, enfeitar com ternura
- ó flor de morte, flor paradoxal e estranha! -
a própria sepultura!

Fruto que vai dar vida
aos pássaros do céu! Galho que vai dar sombra
aos homens do caminho! Ou erva apetecida
de apetecida alfombra!

Ah! morrer na certeza
de, assim multiplicado, invisível e mudo,
viver eternamente em toda natureza
e na vida de tudo!

O CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Ego dilecto meo, et dilectus
meus mihi, qui pascitur inter
lilia.
(Cânticos, VI, 2).

Este é o meu Cântico dos Cânticos,
a exaltação da minha vida,
toda a expressão do meu amor.
Meus pobres olhos são românticos
porque me viram refletida
nos olhos bons do meu Senhor.

O Bem Amado é longo e pálido,
pálido e longo como um lírio,
e suave, e bom como um perdão.
Ao seu contato amante e cálido,
meu corpo todo é como um círio
piedoso aceso em sua mão.

A sua mão é meu oráculo:
tomo-lhe os dedos e desfolho-os
como se fosse um malmequer.
O seu olhar é um tabernáculo
onde eu adoro estes meus olhos,
estes meus olhos de mulher.

Em cada nervo, em cada músculo
ele tem sombras de sol posto
que se prolongam sobre mim:
por isso há sempre este crepúsculo
agonizando no meu rosto
feito de cinza e de marfim.

É como o sol a sua túnica.
Com longos fios de cabelo
da minha trança, que cortei,
fiz-lhe esse manto esplêndido, única
e simplesmente para vê-lo
vestido de ouro, como um rei.

Sempre que estendo a mão fanática,
ou que debruço o olhar tristonho
sobre o meu lago espiritual,
é como uma alva flor aquática,
na superfície do meu sonho,
sua silhueta de cristal.

Como volutas de um turíbulo,
voaram meus braços para o Eleito,
desde a primeira vez que o vi.
Quando transpus o seu vestíbulo,
meu coração fugiu do peito:
foi nos meus joelhos que o senti!

(Livro de horas de Soror Dolorosa, 1920.)