
Pressão tecnológica
– Já estava achando que você não vinha mais, fiquei preocupado – disse eu, olhando para o relógio. – Se eu tivesse celular, teria telefonado para sua casa.
– Já estava achando que você não vinha mais, fiquei preocupado – disse eu, olhando para o relógio. – Se eu tivesse celular, teria telefonado para sua casa.
Enganam-se os apressados ou levianos, se pensarem que em Itaparica nós não acompanhamos de perto os acontecimentos nacionais. Foi-se o tempo em que as notícias chegavam com um certo atraso, como ocorreu, para citar somente um caso, logo depois da Independência. D. Pedro deu o brado retumbante em 1822, mas se esqueceram de avisar à portuguesada do Recôncavo e, em 1823, tivemos de sair no braço para garantir os raios fúlgidos, nunca nos deram moleza. Agora é diferente, agora a gente vai de internet e não é possível mais contar nos dedos o número de estabelecimentos especializados de que já dispomos. Ouço até dizer que o multimilionário Gugu Galo Ruço está à frente de um empreendimento revolucionário, a AxeWeb, mas ele não revela detalhes, apenas ri – o que não quer dizer nada, pois desde tempos imemoriais que se sabe que rico ri à-toa.
– Que foi que houve cara, ganhou na mega-sena? Tu tá com uma cara de felicidade como há muito tempo eu não vejo, desde a data histórica em que o Fluminense ganhou um jogo. Tu não sabia que era o último, senão tinha festejado mais, né não?
Sei que pensarão que é mentira minha, mas não é. Aconteceu aqui perto de casa mesmo, numa farmácia onde perguntei ao balconista a que feriadão um outro freguês tinha se referido.
De vez em quando eu olho aqui, olho acolá, leio o jornal do dia, vejo alguns noticiários de televisão e concluo que se, por exemplo, o governo decretasse que, de agora em diante, os cidadãos e cidadãs iam ter de ficar de quatro, enquanto estivessem em agências bancárias e repartições públicas, poderíamos esperar ver todo mundo engatinhando no dia seguinte, sem reclamar.
É madrugada, ainda está escuro, mas, entre os muitos erros de fábrica com que nasci, está o do despertador interno, que, mesmo que eu tenha ido para a cama duas horas antes, começa a disparar por volta das cinco e enche a paciência até que eu me levante. Desde pequeno, sempre achei bonito o sujeito se levantar lá pelas onze ou meio-dia, coisa de artista de cinema, que acorda lindo, barbeado, penteado, de roupão monogramado e tomando um drinque longo de vodca com suco de laranja, no jardim de inverno envidraçado, esperando a chegada esvoaçante da artista. Mas suponho que para isso devo aguardar mais algumas encarnações, porque, se insisto em ficar na cama, o despertador recorre a meu departamento de culpa, que é o mais fornido que conheço e já foi objeto de estudos psicanalíticos e psiquiátricos. No mínimo, ouço a voz tonitroante do padre Brito, flamívomo (dicionário – hoje é domingo, dia de exercício e, além do mais, estamos celebrando cem anos da morte de Euclides da Cunha, façam sua parte) pregador de minha infância, explicando como seriam atiçados às barricas de óleo fervente do inferno os pervertidos que acordam depois das oito da manhã. Portanto, saio da cama.
Hesitei antes de falar sobre as proibições de fumar que se avolumam a cada dia, mobilizando, como no caso de São Paulo, esquadrões de funcionários públicos, em operações cinematográficas de repressão aos infratores. O sujeito que faz algum reparo às leis antifumo é imediatamente qualificado de vendido à facinorosa indústria do tabaco. Como, pelo menos no meu caso, nunca recebi um tostão de nenhum fabricante de cigarros ou plantador de tabaco, devo ser ainda pior, ou seja, inocente útil, análogo aos do tempo do comunismo, que nem ao menos botavam a mão no celebrado ouro de Moscou.
Não, chega de baixo astral. Hoje não vou reclamar de nada, nem criticar o que quer que seja. Cansa um pouco, esse negócio de falar sempre em ladroagem, safadagem, malandragem e pilantragem, para não mencionar outros membros da numerosa e expressiva família Agem. Correndo o risco de desagradar algumas das minhas coroas da Ataulfo de Paiva – as meninas que sempre me exortam a descer o malho “neles” e me brandem sombrinhas quando eu não o faço – vou mudar de foco, nem que seja uma vezinha só. Antigamente até que dava e por que não dará agora? É só pegar os jornais, ligar a televisão ou o rádio e aguardar. Com boa vontade, aparece alguma coisa que não se enquadre nessas categorias.
– Pô, cara, foi um sufoco sair de casa hoje! Pelo gosto da Detinha, eu não punha os pés aqui hoje.
A verdade às vezes dói, mas tem de ser reconhecida. E a verdade é que minha missão em Itaparica resultou em fracasso quase absoluto. A última gota foi o cachorro de uma casa vizinha, que deve ser de uma raça especializada em latir cuja convivência, com certeza, Satanás já incluiu entre os padecimentos avernais. Meu amigo Xepa sustenta que ele é parente de Tainha, o cachorro torcedor do Bahia que mencionei aqui na semana passada. Por eu ser Vitória, a família estaria me sabotando. Hesitei em acreditar na explicação e perguntei a Xepa se por acaso o cachorro tinha lhe falado alguma coisa.
Não sei por onde começar o primeiro relatório das novidades aqui da ilha, tão ansiosamente aguardado por vocês.
Publicada em 21/07/2009
Prosseguindo com a "Mostra ABL 2009 - Cinema e Literatura Brasileira", amanhã, dia 22 de julho, será exibido o filme "Os Condenados", de Oswald de Andrade, às 18h30min.
Publicada em 21/07/2009
Publicada em 21/07/2009