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Rigor com os miseráveis e tolerância com as elites desde o Brasil Colônia

 

A igualdade perante a lei entre nós nunca passou de retórica, diz historiador

Chico Otavio
O Globo

No mais sangrento episódio de repressão contra escravos rebeldes no Brasil, o general francês Robert Labatut mandou executar, sem processo, em novembro de 1822, 52 negros aquilombados na Bahia. O episódio é revelador de uma marca que o Brasil carrega desde os tempos da Colônia e do Império: o extremo rigor na punição das frações mais pobres da população e a quase ausência total de representantes das elites no banco dos reús. O general jamais foi punido pelo massacre.

Teria, assim, o sistemático desrespeito às leis no Brasil raízes históricas? Para o historiador José Murilo de Carvalho, a impunidade não foi "inventada ontem". Ele sustenta que a igualdade perante a lei, no país, nunca passou de retórica desde a colonização.

- Em conseqüência, a impunidade, embora generalizada, aplica-se de modo diferenciado. É máxima para o cidadão de primeira classe. Ele tem recursos para não ser preso; se preso, para não ser processado; se processado, para não ser condenado; se condenado, para não ir para a cadeia; se for para a cadeia, para sair logo depois graças a algum recurso jurídico. É média para a massa de cidadãos de segunda classe, que sofre os rigores e benefícios da lei em razão proporcional aos recursos de cada um. É menor para o cidadão de terceira classe, o "elemento" do jargão policial, sujeito ao arbítrio da polícia e freguês de carteirinha do Código Penal - explicou.

A gênese do Brasil, paradoxalmente, está ligada à punibilidade. Os primeiros colonos foram degredados, uma pena dura, pois significava uma espécie de "morte social" por causa da distância de Portugal e das condições precárias da colônia. José Murilo não acredita, contudo, que o trauma da punição tenha entrado no DNA dos brasileiros.

- Não foram tantos os degredados e o trauma da punição não é causa de impunidade. Ela vem das instituições do Estado, sobretudo da polícia e do Judiciário, das hierarquias sociais, e do conluio entre as primeiras e as segundas.

Os livros de história estão fartos de registros de desrespeito às leis. Embora a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravos, tenha sido decretada pelo governo imperial em 1850, houve notícias de desembarque de escravos até pelo menos 1855, em Pernambuco. Somente 11 anos depois o então ministro da Justiça, José Tomás Nabuco de Araújo, teve condições de declarar extinto o tráfico de escravos no país.

São raros, porém, os registros de punição de pessoas pertencentes às classes mais abastadas. O advogado Luis Francisco Carvalho Filho, ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, em artigo escrito para a revista "Estudos Avançados", da USP, disse que "quem vasculhar os relatos de punição criminal no Brasil não encontrará mais do que um punhado de casos envolvendo a elite de então".

Inconfidentes: Pagou menos quem tinha mais conexões

A Inconfidência Mineira foi o mais famoso episódio de desigualdade social da aplicação das leis: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, foi o único condenado à morte e executado em 1792. José Murilo de Carvalho disse que os membros da elite tinham conexões na colônia e na metrópole desde então.

- Mais conexão, menos punição. Veja-se o julgamento dos inconfidentes mineiros. Tudo não passou de uma farsa cruel. A sentença já tinha sido decidida pela rainha antes do fim do processo. Pagou menos quem tinha mais conexões, caso de Gonzaga, pagou mais quem tinha menos, caso de Tiradentes - disse.

Dois episódios lembrados por Luís Francisco de Carvalho reforçam estas diferenças. Em 1549, ano da fundação de Salvador, um índio acusado de matar um colono foi, por ordem do governador-geral Tomé de Souza, amarrado à boca de um canhão e atirado "pelos ares, desfeito em pedaços". Porém, para dois franceses presos no sul do país, na mesma época, por contrabando de pau-brasil, o futuro seria diferente. Tomé de Souza se justificaria depois: "Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro".

O Globo (RJ) 17/6/2007

25/06/2007 - Atualizada em 24/06/2007