Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > O legado de um Brasil mais justo

O legado de um Brasil mais justo

 

Marcelo Kischinhevsky e Samantha Lima

Jornal do Brasil (21.11.2004)


O Brasil perdeu ontem o maior pensador e agente de seu desenvolvimento econômico e social no século 20. Celso Furtado, 84 anos, morreu pela manhã, vítima de um infarto, em casa, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, deixando como legado uma vasta obra acadêmica e uma trajetória de lutas em favor da população menos assistida. Autor de Formação econômica do Brasil (1959), divisor de águas no debate sobre a construção nacional, criou a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), foi ministro do Planejamento no governo João Goulart e da Cultura no governo José Sarney e, no ano passado, teve seu nome indicado ao Prêmio Nobel de Economia.

Furtado foi um cidadão do mundo, mas sempre com o coração e as idéias voltados para o Brasil. Combateu como pracinha na Itália, na Segunda Guerra Mundial, e participou como voluntário no processo de reconstrução da Bósnia no fim dos anos 40, paralelamente aos estudos sobre Direito e Economia. Doutorou-se na Universidade de Paris, mas com uma tese sobre os meandros do Brasil-Colônia. Trabalhou na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e lecionou em universidades como Yale (EUA), Sorbonne (França), Cambridge (Reino Unido) e Columbia (EUA), voltando ao Brasil de tempos em tempos.

Passado o período do exílio, após a cassação pela ditadura militar, militou no MDB e participou ativamente da campanha pela redemocratização do país nos anos 80, consolidando-se como referência maior do pensamento econômico da esquerda brasileira. Também se envolveu com a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002, mas nos últimos tempos mostrava-se decepcionado com os rumos do governo petista. Já com a saúde debilitada, não compareceu a um seminário em sua homenagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em maio passado, mas enviou carta, lida por seu filho André, em que criticava a política de arrocho fiscal ''imposta por beneficiários de altas taxas de juros''.

Num gesto simbólico, figurou esta semana entre os signatários do abaixo-assinado pela permanência do neonacionalista Carlos Lessa na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Lessa lamentou a morte do amigo, a quem chamou de mestre.

- Celso Furtado foi um grande brasileiro, um brasileiro com B maiúsculo. Tinha um projeto muito singelo: fazer do Brasil uma nação desenvolvida com justiça social. Era uma figura ilustre, com imensa fibra, típica de um homem do Nordeste.

Lessa disse que a amizade se iniciou quando Furtado o chamou para trabalhar na Sudene, há 42 anos.

- Mas passei a ser um discípulo dele quando li, no terceiro ano da faculdade, Formação Econômica do Brasil. Tenho todos os seus livros, muitos deles encadernados e com dedicatória.

Lessa comentou, ainda, que esteve com Furtado pela última vez durante a campanha para sua indicação ao Nobel, no ano passado. E que recebeu dele um e-mail em solidariedade por sua saída da presidência do BNDES, após críticas à condução da política econômica.

O pensamento de Furtado angariou o respeito não só de economistas de esquerda, mas também de outras correntes.

O economista Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda durante o regime militar, afirmou que a morte de Furtado ''empobrece o pensamento brasileiro''.

- Celso Furtado era um grande pensador do desenvolvimento do país. Ele tinha uma preocupação de combate das desigualdades. Sem ele, o Brasil perde um pouco de sua vontade de crescer. Assim como eu, ele era contra essa teoria que está em vigor há 15 anos, pela qual basta produzir estabilidade monetária para que haja crescimento, como se fosse simples assim.

Delfim disse que as divergências entre ambos ''se limitavam ao papel do Estado no desenvolvimento''. E lembra que utilizou o pensamento teórico de Furtado na elaboração de sua tese para aprovação como professor catedrático na USP, em 1963.

- Desenvolvi o comportamento da exportação necessário para que seu modelo de desenvolvimento funcionasse, sem criar déficit na conta corrente do país.

Paulo Rabello de Castro, sócio da RC Consultores, vai na mesma direção.

- Celso Furtado distinguia com clareza as razões de Estado das razões de mercado. A geração da estagnação consentida é incapaz de perceber essa diferença - afirma o economista, para quem sua morte foi ''o último protesto contra a geração mais medíocre de todos os tempos''. - Ele tinha uma inquietação serena, mas deve ter nos deixado num estado de profunda frustração. De seus livros, emerge um Brasil sonhado, com uma saga a ser cumprida. Mas hoje a aventura e a luta por um mundo melhor são renegadas.

Economista da UFRJ, Reinaldo Gonçalves comentou que a obra de Furtado é um marco para o pensamento econômico mundial, inserindo o papel do Estado no processo de desenvolvimento, num arcabouço científico.

- Seus livros são referência seja na Alemanha, na França ou na Suíça. Ele foi o que mais ensinou aos países em desenvolvimento.

Furtado será sepultado hoje às 11h, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio.

 

07/06/2006 - Atualizada em 06/06/2006