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Nélida busca Homero através da ponte do tempo

 

Pedro do Coutto

Em Aprendiz de Homero, seu mais recente livro, Editora Record, Nélida Piñon parte em busca do grande poeta épico que viveu na Grécia pelo menos seis séculos antes de Jesus Cristo nascer e se tornou tanto um grande artista representado nos palcos da antiguidade, quanto uma lenda eterna da história. Muitos o cultuam como o pai da poesia.

Mas há névoas em torno de sua figura humana, alguns dizem que era cego, outros não. O fato, entretanto, é que suas obras e seus heróis vivem para sempre no teatro, na literatura, no cinema. São a Odisséia de Ulisses, em sua luta, depois da guerra de Tróia, para reencontrar sua mulher, Penélope, na ilha de Ítaca. E a Ilíada, também inspirada em Tróia, registrando o impulso de vingança de Aquiles.

Talvez - suponho - todos os grandes artistas da palavra tenham de algum modo tentado alcançar Homero. Aprendizes dele, como agora se define a romancista. James Joyce baseou-se em Homero para escrever o romance hermético, cheio de chaves e sombras, Ulisses no título, difícil tradução de Antonio Houaiss. Há poucos anos um júri internacional considerou a obra a maior da literatura no século passado.

Em segundo, chegou Proust com a Busca do Tempo Perdido. Tempo? Marcel Proust teria algo a ver com Homero? Afinal, os clássicos épicos resistem aos séculos. Aos milênios também. Nélida Piñon creio que de alguma forma encontrou o poeta nas páginas que produziu e nelas o seu sentido, como Joyce e Proust, é o de busca, de viagem pela arte, de descoberta. De luta e de aventura.

Parte de Machado de Assis, fundador e patrono da Casa a que pertence, a ABL, atravessa séculos e séculos, passa por Jesus Cristo na Judéia ocupada por Roma, por Cervantes, Dom Quixote, o homem da utopia contra os moinhos de vento, toca Sancho Pança em algum lugar de La Mancha. Para ela, a matéria de Deus está na Bíblia. Portanto as de Moisés e Cristo, Velho e Novo Testamento, separados por uma ponte de mil anos na história e no tempo. Creio não ser por acaso, segundo Aprendiz de Homero, que uma das obras da autora tenha como título Vozes no Deserto.

São tantas as vozes dos séculos eternizadas nas palavras escritas. Assim, acredito que encontrou o poeta e a poesia na poltrona verde de que fala em seu livro. Poltrona verde, como ela diz? Verde como Garcia Lorca, como o fardão acadêmico. Afinal de contas, o que é capaz de preencher os espaços da arte e da narrativa histórica? Só o pensamento. A sala de estar em que se encontra o móvel é uma usina.

Aliás, todos os dias, de uma forma ou de outra, nos deparamos com usinas do pensamento humano. Incansáveis, inesgotáveis, criativas, produtivas, construtivas, resultado da ansiedade por saber e transmitir. Impulso muito comum também aos jornalistas. Escrever é produzir, é transmitir, é traduzir situações e interpretar afirmações. Clarificando-as para milhões, até bilhões de leitores no planeta, que necessitam e esperam pela produção e pelo consumo. Esperam por nós. Por isso acho que os que se sentam para escrever, seja qual for o conteúdo, estarão sempre praticando um ato solidário.

Os escritores e os jornalistas, com as penas de ontem, como Machado de Assis e Oto Maria Carpeaux, com as teclas leves e sensíveis de hoje, são movidos pelo compromisso de chegar a um ponto, encontrando-se consigo mesmos, através dos outros, como na bela e insuperável definição de Simone de Beauvoir, quando se refere à procura da mulher pelo homem. Que é busca de si mesmo por intermédio da imagem feminina. Procuramos, todos nós, na vida, na arte, no jornalismo, aquilo que ela também interpretou como o impulso à busca da exatidão de uma idéia.

Num dos capítulos de Aprendiz de Homero, belo livro, a autora diz: A experiência humana, onde quer que se manifeste, começa no coração. Qualquer terra serve para crescermos, para alcançarmos a plenitude do nosso humanismo, para erigir a morada da memória. Somos quem designa o lugar da aventura, o lugar para alargar o horizonte da imaginação, o lugar do pensamento. Este, quando desafiado, produz respostas para alguns de nossos questionamentos.

Fazemos parte essencial da pedagogia do saber que nos orienta a escolher (e focalizar) a produção humana. Uma colheita, portanto, nosso legado. Nada se extravia dela que, plantada na alvorada da história, constitui a linha de montagem do pensamento. Os livros que escrevi - acrescenta - são andarilhos como eu. Bonito isso. E verdadeiro. Assim como a frase de um amigo meu, Roberto Gurshing, falecido prematuramente, usou para sintetizar a tradução da palavra cultura para um programa social destinado a grupos sociais de menor renda.

Não sei exatamente se ele é o autor da imagem ou se a reproduziu de alguém. Pouco importa. Cultura - disse - é a passagem do ser humano pelo mundo. Seu eco, seu rastro, sua sombra. Nessa passagem, tentamos sempre a comunicação, pois nós só existimos com os outros. Assim como principalmente Felini, Antonioni, Bergman e Visconti colocaram nos filmes que criaram. A arte e a vida precisam dos outros. Precisam de Homero.

Tribuna da Imprensa (RJ) 18/4/2008

18/04/2008 - Atualizada em 17/04/2008