Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > Memórias com leveza e limpidez

Memórias com leveza e limpidez

 

Lygia Fagundes Telles, 84, combina ficção e fatos verídicos na enxuta obra ‘Conspiração de nuvens’, que vasculha o ser humano ‘indefinível, inacessível e incontrolável’

Marcos Uzel

Lygia Fagundes Telles abre o coração e confessa. Aprendeu com a literatura a importância das palavras liberdade e justiça, mas foi no campo dos esportes, curiosamente, que conheceu o guia fundamental do seu ofício: a disciplina.

“Segredo do modesto equilíbrio desta escritora neste indisciplinado país”, revela a ex-praticante das aulas de esgrima, o treino juvenil e energético que a centrada autora de As meninas, Ciranda de pedra e As horas nuas tanto amava e temia. Com direito a uniforme todo branco, túnica fechada e o coração de feltro vermelho pregado no lado esquerdo do peito.

“Foram elas que me ensinaram a dura lição do desafio de exigir rapidez de raciocínio a alguém de reações lentas”, assume Lygia ao leitor no seu mais recente livro, Conspiração de nuvens (Rocco), um misto de ficção e memória impregnado de lembranças delicadas e nostálgicas.

São pequenos relatos imaginativos e recordações muitas vezes reveladoras de uma mulher de respeito, que, aos 84 anos, voltou a vasculhar o ser humano “indefinível, inacessível e incontrolável”. E também a si mesma, refletindo sobre o passado, a vida, a literatura e a morte.

A obra encerra uma trilogia iniciada em 2000 com o livro Invenção e memória, seguida pelo lançamento de Durante aquele estranho chá, de 2002. O tom memorialista e ficcional caracteriza os três volumes assinados por uma colecionadora de prêmios, incluindo o Camões (2005), o mais importante da língua portuguesa.

Em Conspiração de nuvens, Lygia exercita a leveza com a limpidez de sempre. Volta ao tempo e dilui o peso mesmo em temas duros, como a perda de um amigo (o escritor Érico Veríssimo, homenageado no texto Solo de clarineta) ou os anos de ditadura militar (no relato que dá título à publicação).

Um título, aliás, com ironia poética e sentido político, que remete ao ano de 1976, quando mais de 400 obras de autores brasileiros e estrangeiros haviam sido censuradas no país. Na época, Lygia atendeu a um convite do escritor Rubem Fonseca e se engajou numa comitiva que viajou até Brasília para entregar ao então ministro da Justiça Armando Falcão o Manifesto dos mil contra a censura, contendo mil assinaturas de intelectuais. Os primeiros nomes da lista eram ninguém menos que Antonio Candido e Sérgio Buarque de Hollanda.

Aviso das nuvens - A viagem era segredo, mas a informação vazou e ganhou as páginas dos jornais em negrito. Lygia ficou perplexa ao ler a notícia no avião, sentada ao lado do historiador Hélio Silva e de um anônimo passageiro. Foi quando percebeu, olhando pela janela, o aviso furioso das nuvens: uma tempestade estava por vir.

Integrante do time dos que não gostam de viajar de avião, a escritora sussurrou para Hélio Silva: estava diante de uma conspiração de nuvens. “Elas também conspiram, se não cairmos agora seremos presos na chegada”, brincou, nervosa.
Não foi presa, mas o ministro não recebeu a comitiva.

Os momentos mais saborosos do livro são os depoimentos verídicos. Em 19 histórias enxutas e inéditas, Lygia lembra da cachorrada “pobre e sentimental” que ganhou um lar em sua casa na infância; da Tia Elzira, a morta virgem que não resistiu à perda de um amor; da juventude paulistana; do tempo em que se aventurou como atriz em um grupo de teatro amador e de episódios sobre amigos intelectuais. Personalidades como o escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, com quem a imortal da Academia Brasileira de Letras foi casada.

Escrever Conspiração de nuvens não deixou de ser um reencontro da autora com sua própria vida, que estava em frangalhos devido à morte do filho único, Goffredo Telles Neto. Apesar de destruída pela dor, ela escreveu um livro que não transforma nostalgia em fardo existencial, mesmo em textos melancólicos como o ficcional Era uma noite fria, em que sente o peso da solidão ao dialogar no meio de uma calçada com um cão sem dono de grandes olhos úmidos, que encontrou ao voltar de uma sessão noturna de cinema. Com sua recente obra, Lygia Fagundes Telles parece ter abraçado como verdade uma frase clássica: a arte é a negação da morte.

Trechos

“O apego a Deus e aos poucos aquela paciente cristalização da dor, pequenas pedras que vou guardando, de vez em quando como uma, sinto-lhe a forma, a cor, e afetuosamente a devolvo ao seu lugar. Mas há certas mortes que me remetem à infância, ao medo das noites escuras que não vão amanhecer” (Solo de clarineta, página 75).

“Deitei-me na areia e fiquei olhando o mar. O mar que não é nem verde nem azul, nem masculino como figura na nossa língua nem feminino como está na língua francesa, nem macho nem fêmea, mas algo assim andrógino. Escapando ao rigor das classificações ele é a vida mas também pode ser a morte” (Pedra que chora, página 81).

“(...)há cidades masculinas e cidades femininas. A cidade de São Paulo, por exemplo, é macho sim senhor. O Rio é do sexo feminino, e nessa trilha Túnis também é feminina na disposição do casario arredondado, sem arestas, com aquelas ambigüidades e mistérios do segundo sexo” (Tunísia, página 87).

“A solidão pesa tanto, às vezes, que mesmo o solitário conformado precisa assim de repente – tão de repente! – de alguém que fique ao seu lado sem gesto e sem palavra, em silêncio. Mas presente. Foi o que me disse o cachorro sem dono que encontrei na noite, eu voltava de um cinema” (Era uma noite fria, página 91).

FICHA
Livro: Conspiração de nuvens
Autor: Lygia Fagundes Telles
Editora: Rocco
Preço: R$22 (em média)

Correio da Bahia (BA) 19/4/2008

24/04/2008 - Atualizada em 23/04/2008