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Mais que célebre dicionarista

 

Contos de Aurélio Buarque de Hollanda revelam um mestre de atmosferas

Duílio Gomes
Escritor e jornalista

Um escritor com nome de dicionário (ou um dicionário com nome de escritor), Aurélio Buarque de Holanda teve outras vertentes de sua obra eclipsadas pela sua fama de lexicólogo. Ele era mais do que um célebre dicionarista. Era, também, tradutor, ensaísta, cronista e contista.

Como prosador, deixou um único volume. Dois mundos, de 1942, ganhou o Prêmio Afonso Arinos, da ABL, e revelou um contista criativo e atento às manifestações folclóricas de Alagoas. O mundo ingênuo e analógico da primeira metade do século 20 no Brasil pode ser detectado pelos leitores na antologia Os melhores contos de Aurélio Buarque de Holanda. Além das peças de ficção, estão presentes seis narrativas de puro memorialismo. Todos os textos, ficcionais ou não, vão de 1939 a 1941 e podem ser classificados como fotográficos, dada a profusão de detalhes criados pelo autor.

O meio rural do Nordeste e a vida na metrópole (no caso, a então capital federal, Rio de Janeiro) formam o núcleo dessas histórias escritas com rigor de mestre mas salpicadas com a graça típica do povo.

Em "O chapéu do meu pai", o autor relata – com fria emoção – o velório de seu pai, acontecido em sua própria casa. Ao observar, no cabide da sala, o chapéu paterno de feltro marrom quebrado para a frente e com abas debruadas, o filho narrador levanta boa parte de sua vida. No trabalho, na rua, tirando-o para cumprimentar os conhecidos, e em casa: "O chapéu acompanha meu pai nos seus movimentos, sombreando-lhe um tanto a face. Está no seu verdadeiro lugar, a cabeça de meu pai. Sim, está".

Mestre de atmosferas, Aurélio volta a um personagem de família no texto "Retrato de minha avó". Cândida Rosa de Moura Ferreira, avó paterna do autor, era analfabeta, filha de proprietário rural senhor de escravos e, por isso mesmo, racista entranhada. Ególatra, irascível e dona de uma sintaxe toda peculiar, serviu de modelo às pesquisas do neto nesse campo. Dona Cândida era uma juíza inexorável de empregadas e pessoas de nível social abaixo do seu, sem distinção de idade, cor ou sexo.

O mundo infantil está também presente em vários relatos. Em "A primeira confissão", o menino, de todo inocente, terá de inventar um pecado para relatar ao padre. Vasculha os atalhos de sua pureza e descobre dois, de vulto – roubara uma banana no quintal do vizinho e perguntara, à professora – ao lado da caixa de esmolas para as almas – para que uma alma ia querer dinheiro. Ao sair do confessionário, dá com os colegas de escola rindo às suas custas. É que, emocionado com a primeira confissão, dissera bem alto os seus graves pecados.

Se a infância inspira o autor a fazer contos bem-humorados, a maturidade irá provocar, nele, o analista de almas, o intérprete de personalidades. Como na história "João das Neves e o condutor". Nela, após dois expedientes de trabalho, um cidadão pega o bonde para voltar a casa. Exausto, sempre dorme no banco de trás. Ao chegar no ponto final, onde costuma descer, o condutor o acorda, solícito, bem impressionado com o seu terno e seu chapéu de feltro: "Doutor, chegamos". Em uma noite, o passageiro revela ao condutor que ele não é doutor, apenas um humilde funcionário público. A partir daí o condutor muda radicalmente a sua maneira de tratá-lo. Neste conto está todo o Rio dos anos 30 com seus poucos veículos importados e uma profusão de bondes. Impera a vida calma, serena, sem violência.

Jornal do Brasil (RJ) 19/4/2008

24/04/2008 - Atualizada em 23/04/2008