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Lenta e suave cerimônia de adeus

 

O GLOBO (07.08.2001)

 

O Jorge Amado falante, que poderia discorrer horas sobre o universo popular da Bahia, a principal matéria-prima de sua ficção, deu lugar nos últimos anos a um homem quase sempre calado, não raramente melancólico e deprimido em suas aparições públicas. Foi um período marcado por perdas: com a visão debilitada e problemas cardíacos cada vez mais graves, ele foi se afastando gradualmente da escrita e não conseguiu retomar o trabalho literário; e, cada vez mais, viu-se privado do convívio de amigos que morreram neste mesmo período.

O primeiro de uma série de baques de saúde foi em 1996. O ano havia começado bem, com Jorge e Zélia recebendo o escritor português José Saramago em Salvador em 2 de fevereiro, dia de Iemanjá. O casal ciceroneou Saramago e a mulher Pilar pelas ruas da Bahia e promoveu um almoço para o autor de “Memorial do convento”.

Em 1996, o choque com a morte de Pierre Verger

No mesmo mês, morria o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger. Autodidata, Verger correu mundo como um aventureiro e foi parar na Bahia atraído pelas descrições dos livros do escritor. Em Salvador, tornou-se o obá Fatumbi no candomblé e um dos melhores amigos de Amado, que para se poupar decidiu não ir ao enterro.

Em maio, depois de receber o título de doutor Honoris Causa na Universidade de Pádua, na Itália, Amado passou mal ao chegar em Paris, onde sofreu um edema pulmonar. Depois de dez dias de internação, voltou ao Brasil dizendo-se “inteiro”. Em julho, abriu a casa do Rio Vermelho para uma festa que marcou os 80 anos de Zélia Gattai.

Dois dias após completar 84 anos, em agosto, Amado foi internado depois do almoço de aniversário. Segundo Zélia, ele ficara emocionado com os cumprimentos e com a euforia em torno da estréia de “Tieta”, filme de Cacá Diegues baseado em seu romance. Ao se recuperar, declarou que gostaria de viver muito tempo - “Amo, adoro a vida” - e admitiu ter abusado dos quitutes baianos - “Às vezes penso que tenho idade para essas coisas, mas sou um velhinho”, brincou.

Em outubro, uma crise cardíaca levou-o de volta ao Hospital Aliança, na capital baiana, onde se submeteu a uma angioplastia. Ao acordar, depois da intervenção no coração, disse a Zélia: “Agora vou te dar todos os carinhos”. Dois meses antes, já havia feito declarações de amor públicas: “A vida me deu mais do que pedi e mereci. Não me falta nada. Tenho Zélia e isso me basta”.

Em 1997, Jorge Amado virou sinônimo do carnaval baiano: todos os blocos que fazem uma das folias mais animadas do Brasil elegeram como tema “Tieta do Agreste”. Num camarote, Amado não deixou de prestigiar a festa, mas emocionou-se e teve que ser atendido num posto de saúde.

Em abril, Amado voltou a ser hospitalizado para a implantação de um marcapasso. A cirurgia, coordenada pelo cardiologista Jadelson Andrade, seu médico particular, foi bem sucedida. Ao deixar o hospital, o escritor disse que a partir de então passaria a ditar suas obras, pois não tinha mais condições de ficar muito tempo sentado à máquina ou ao computador e os problemas de visão haviam se agravado substancialmente.

Em maio, a casa onde passava as férias de infância com os pais, em Ilhéus, foi transformada num centro cultural. Ao completar 85 anos, inaugurou em Salvador um teatro com seu nome. Mas se mostrava desencantado com seu estado ao dar entrevistas por conta do aniversário: “A velhice é uma porcaria”.

Em outubro, morria o pintor Carybé, vítima de infarto, aos 86 anos. Em suas formas simples, Carybé traduzia com perfeição o universo de Jorge Amado, tendo inclusive ilustrado vários livros do escritor. Chocados, Zélia e Amado passaram rapidamente no velório de um de seus amigos mais antigos e próximos. Em maio de 1999, a dor voltou: o dramaturgo Dias Gomes morreu tragicamente, aos 76 anos, num acidente de trânsito.

Em 1997, a editora Record lançava “O milagre dos pássaros”, um pequeno conto até então inédito no Brasil. No começo deste ano, a mesma editora relançava o livro infantil “A bola e o goleiro”, de 1984, a inusitada história de amor de uma bola (Fura-Redes) e um goleiro (Cerca-Frangos).

Paris era, para Jorge Amado, uma espécie de refúgio. Décadas depois de ter chegado à cidade exilado, ele comprou um pequeno apartamento no Quai des Celestins, no Marais, onde constantemente passava temporadas na capital francesa ao lado de Zelia Gattai. Mas em maio de 1998, a viagem tantas vezes refeita - ele em geral aproveitava a distância do Brasil para trabalhar - não foi para o escritor a tranqüilidade de sempre .

No centro das homenagens mais solenes do 18 Salão do Livro de Paris, que teve o Brasil como país-tema, um Jorge Amado debilitado pela doença e pela idade teve que fazer um grande esforço para suportar a intensa programação. Sempre acompanhado por Zélia e pela filha Paloma, Jorge Amado andava devagar e, nos compromissos oficiais, permanecia sentado o tempo todo.

Foi assim no dia 19 de março, quando foi ao Ministério da Cultura assistir à cerimônia em que Zélia Gattai foi condecorada Commandeur des Arts et des Lettres pela ministra Catherine Trautmann. Todos os convidados iam até a cadeira de onde Amado assistiu à festa para cumprimentá-lo, quase reverenciá-lo. Mesmo em meio aos cumprimentos e abraços, cercada por amigos e admiradores, Zélia vigiava-o constantemente, cuidando para que não perdesse a hora dos remédios.

Escritor enfrentou maratona no salão do livro

Cansado, Jorge Amado seguiu no mesmo dia para a inauguração oficial do Salão, no pavilhão Paris Expo, na Porte de Versailles. No meio do tumulto formados com a chegada do presidente francês Jacques Chirac, Amado ficou o tempo todo no estande do Brasil, sendo cumprimentado por Paulo Coelho e pelo próprio Chirac.

No fim de semana, voltou ao Paris Expo, mas desta vez na platéia. Ele estava lá, orgulhoso, na primeira fila do Café Literário da Fnac, aplaudindo Zélia. Ao lado de Nélida Piñon e de Patrícia Melo, ela participava do debate “Três gerações de mulheres na literatura brasileira”. De sua mesa, Amado pôde ouvir reiteradas declarações de amor enquanto Zélia contava como passou de datilógrafa e fã a escritora - que em menos de 20 anos publicou nove livros.

Durante o salão, Jorge Amado só deixou de cumprir um compromisso: ele deveria ser entrevistado, ao lado de Paulo Coelho, no Fórum dos Autores, um dos pontos de debates na feira. Era domingo e ele sabia que deveria poupar-se: no dia seguinte, receberia a mais emocionante - e também a mais desgastante - das homenagens, o título de Doutor Honoris Causa na Sorbonne. A festa de pompa e circunstância da Sorbonne terminou mal: uma agência de notícias internacional divulgou que Jorge Amado teria sido internado num hospital.

Bom humor no encontro com o público

O boato causou apreensão, e foi desmentido pelo próprio escritor que, bem-humorado, chegou a falar com a imprensa por telefone. Um dia antes do fim do salão, o casal Jorge e Zélia realizou uma concorrida leitura de trechos de seus livros. Até então calado nos encontros com o público, Amado estava bem mais disposto, sorria e chegou a comentar uma intervenção da platéia. Depois da leitura, deu autógrafos e saiu do auditório sob uma salva de palmas. Mesmo extremamente cansativa, a maratona de compromissos pareceu ter feito bem a Jorge Amado.

No dia 20 de junho deste ano, foi internado com um crise de hiperglicemia. Passou 26 dias no hospital. Depois da alta, estava “se recuperando bem, respondendo satisfatoriamente ao tratamento”, como avaliou seu médico particular, Jadelson Andrade. No início da noite de ontem, reclamou de dores no peito. Transferido para o Hospital Aliança, morreu meia hora após dar entrada no centro de tratamento intensivo. Será cremado, hoje, às 16h, no Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador.

 

14/06/2006 - Atualizada em 13/06/2006