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Entrevista: Nélida Piñon

 

Jornal do Brasil - (25.09.2005)


Nélida é uma escritora brasileirinha que tem paixão por receber as pessoas e por conversar sobre literatura e a vida (para ela uma é extensão da outra: ''Carrego a densidade de um ofício que me associa à vida''). Nós, que fazemos estas entrevistas dominicais, temos uma paixão por ir às pessoas conversar sobre vida, literatura, viagens, cinema, música, teatro, política, tudo. Este encontro - nós e Nélida - é então uma conversa apaixonante, prazerosa, estimulante. Anfitriã atenta, ela nos serviu quitutes, nos serviu vinhos, passou bandejas carregadas de pensamentos e reflexões. Degustando as palavras e os acepipes, Luís Pimentel, Ricky, Zezé Sack e Antonia Barbosa (todos do B) e Álvaro Costa e Silva (do Idéias). Nélida é uma mulher que anda pelo mundo conhecendo lugares e prêmios. Recebeu há pouco em SP o Prêmio Jabuti pelo melhor romance e pelo Livro do Ano com Vozes do deserto e agora embarca para a Espanha, onde receberá o Prêmio Príncipe de Asturias de las Letras (para a qual concorriam autores como Paul Auster, Philip Roth e Amos Oz). Leitor do JB, vindo das dunas de notícias em outras páginas, cruze agora os umbrais desta tenda e saboreie os mistérios da imaginação. (Ricky Goodwin)

Luís Pimentel - O prêmio Jabuti é grande em prestígio mas o dinheiro é pouquinho. Os escritores brasileiros precisam mais de prestígio ou de dinheiro?

Nélida Piñon - Ambas as propostas são preciosas. Não se pode viver sem dinheiro, mas o reconhecimento estimula o espírito, ajuda a entender os caminhos e consolida suas opções estéticas. Após se sentir solitário durante tanto tempo de repente o público começa a deitar seus olhos em você.

Pimentel - Uma premiação como esta significa uma melhoria na venda do livro premiado?

Nélida - Ah sim, além de ser o reconhecimento de uma biografia de devoção á literatura. Não vou dizer que se devotar à literatura seja uma ação monarcal, mas é uma opção séria, profunda, embora muito prazeirosa. Eu não abriria mão da literatura por nada no mundo. Digo em momentos difíceis: a literatura nada me deve; eu devo tudo à literatura. Me ensinou, entre outras coisas, a tocar o braço de um estranho num botequim e meu gesto não ser confundido. Abriu picadas para eu embrenhar-me pelo coração alheio.

Antonia Leite Barbosa - Te transformou como pessoa?

Nélida - Sim, a literatura e tudo junto, você metaboliza a realidade com as palavras, a carne, a paixão, o amor. As pessoas perguntam: “Então você é escritora 24 horas”? Claro, não empunho a caneta por 24 horas, eu seria um autista, mas não vejo cisões em mim.

Antonia - Você carrega seus personagens para a vida real?

Nélida - Não os personagens, carrego a densidade de um ofício que me associa à vida. Considero a literatura uma expressão da vida, que tem um argumentação estética. É uma expressão da humanidade.

Zezé Sack - Essa consciência vem de muito jovem ou foi vindo com os primeiros livros?

Nélida - Desde os nove anos eu dizia que queria ser escritora, mas de forma ingênua, precária. Felizmente, fui ingênua e precária por muitos anos mas tinha boa formação literária. Com onze anos li “Romeu e Julieta” e detestei o personagem Romeu. Não dá para dizer que tenha sido um momento de revelação religiosa, um instante teológico, absolutamente, é devagar, difícil de ser construído, vai-se tateando, cheio de neblinas, de vez em quando surgem pontos de luz onde se enxerga alguma coisa. Até hoje sinto que sou bafejada pelos pontos de luz, pelos pequenos focos de revelação.

Antonia - Mas existe uma transpiração, né, não é só inspiração.

Nélida - Cada livro meu recebe sete, nove versões! Mesmo “República dos Sonhos”, um livro de 700 páginas. O primeiro livro que escrevi foi “Guia Mapa de Gabriel Arcanjo” quando estava entrando na universidade. Minha tia Maita e minha mãe Carmen alugaram uma casinha em Friburgo que tinha um quintal com uma árvore imensa. Eu muito emocionada, ia começar meu primeiro livro, aliás sempre sinto essa emoção às vesperas de começar um livro. Pusemos uma mesa de cozinha ali e comecei a escrever com uma paixão extraordinária, dando vazão ao que viesse, e me lembro que Tio Jorge dizia: “Mas essa menina é muito obstinada”. Passei as férias escrevendo mas fascinada com aquele empreendimento que me conduzia a uma experiência quase... não digo mística mas sem dúvida transcendente.

Pimentel - Você escrevia à mão ou direto à máquina?

Nélida - Aos 12 anos meu pai me deu uma Hércules. Só vim a apaixonar-me pelo manuscrito com o advento da informática. Quando nem cheguei ao computador nem queria mais a máquina de escrever. Fiquei no limbo. Com isso descobri o prazer de escrever à mão, o que me liberou muito, escrevia nos hotéis, esperando avião, esperando trem, porque viajava o tempo todo.

Pimentel - Você agora se impõe alguma rotina? Tantas horas por dia?

Nélida - Já fui mais disciplinada, mais canônica, inclusive teatral ao escrever. Me vestia melhor, botava perfume, havia um ritual sacramentando o texto mas ao mesmo tempo o ritual do medo.

Ricky Goodwin - As religiões e o medo se aproximam.

Nélida - Hoje escrevo como e quando posso. Produzo muito. Desejo até regressar ao estado perfeito que tinha antigamente mas a luta é muito grande. Sou uma mulher escrevendo mas ao mesmo tempo antenada a tudo, à cozinha, à comida, às visitas, pagar isso ou aquilo, sou muito ligada à realidade e tenho pavor de perder esse conceito do real.

Antonia - Isso não te tira do transe?

Nélida - Não, não acredito nisso! Me cansa muito, isso sim, teria que me organizar melhor, mas por outro lado me sinto jovial. Sinto que pertenço à cidade, às precariedades do meu tempo, quero que meu tempo me seduza, me comprometa. Aprendi com minha mãe que chegava em casa e perguntava para o operário que estivesse lá: “Você já almoçou”? Aprendi que você responde um pouco pela vida do outro.

Ricky - Então sua torre de marfim tem só dois centímetros de altura.

Nélida - Não sei, as pessoas podem te idealizar, né, mas quem me conhece na intimidade fica bobo de como olho tudo. Não com um olhar restritivo mas com um olhar que luta por ampliar as opções humanas.

Álvaro Costa e Silva - Tem uma frase sua no discurso de posse à ABL onde diz ser uma brasileira recente.

Nélida - É verdade. Eu disse muito essa frase. Hoje não sinto isso mais. Me sentia uma cristã nova - embora nao obrigada a abjurar ou simular nada - sentia que tinha uma mirada dupla. Sou uma mulher de dupla cultura: a brasileira e a galega. Levo a mestiçagem na minha alma. Eu olhava os brasileiros antigos na tentativa de descobrir a sua contrafacção, em que momento eram mais brasileiros do que eu, em que momento eu poderia apropriar-me de uma experiência que me faltava. Eu lia muito História do Brasil por julgar que eu precisava compensar-me com aquilo que não veio metabolizado em mim, por eu ser essa brasileira nova. Isto se percebe em “A República dos Sonhos”. Todo mundo pensa que para este livro fiz uma grande pesqusia histórica, mas não, a única exceção foi o pedido ao Oswaldo Tavares para que visse o nome do barco americano que trouxe a primeira leva dos pracinhas da Itália para o Brasil. Eu tinha esse repertório extraordinário e não queria atualizá-lo por almejar que o livro trouxesse preconceitos. Por provar que eu era mais brasileira que os brasileiros, tornei-me uma brasileira intensa. Anos depois, fui percebendo que eu não era tão recente: meu avô chegou ao Brasil no final do século XIX. É famosa minha defesa da língua portuguesa em todos os foros internacionais e fui percebendo que eu tinha direito a todos os títulos, sem contestação. Sou uma brasileira antiga. Tenho a capacidade total de fazer a exegese do Brasil.

Álvaro - Nasceu inclusive em Vila Isabel.

Nélida - Quando percebi que eu nasci em Vila Isabel, e que amava Vila Isabel, o que mais me faltava? Todos os brasileiros aspiram a ter um passaporte europeu. Pergunta se eu tenho. O Presidente Felipe Gonzalez me ofereceu um espanhol, mas deixa eu ficar com o meu verdinho brasileiro.

Pimentel - Essa mestiçagem é reconhecida pelo outro lado: os galegos tem uma enorme distinção com você. Os livros galegos sempre te citam.

Nélida - Eu propago muito a cultura galega. Meus pais nasceram no Brasil mas meus quatro avós são galegos. É uma experiência que enriqueceu muito a minha vida. “A República dos Sonhos” está na terceira edição lá. Não sei como, acho que não perceberam as críticas aos galegos que coloquei no livro. Tem uma cena onde dizem que os castelhanos tem fama de serem grandes assadores. A comida de forno de Castilla é uma maravilha! E escrevo: “Claro que são bons, eles assaram os índios da América”!

Ricky Goodwin - Como surgiu “A República dos Sonhos” ?

Nélida - Dentro dessa preocupação com minha brasilidade eu pensava em fazer um romance contando a História do Brasil dos últimos 200 anos sob o meu ponto de vista. Esta história só poderia ser contada impregnada pelas utopias européias, a melhor maneira de olhar a América, no sentido aurífero, a América legendária, que despertou a imaginação européia.

Ricky - O Novo Mundo.

Nélida - Mas aí pensei: “Não quero o ponto de vista dos visitantes”. Eles screveram textos preciosos mas para beneficiar a cultura européia, ou seja, eram o que a Europa esperava, compatíveis com o que a Europa inventava dessa América.

Ricky - Escritos para inglês ler.

Nélida - O ser mais adequado para este ponto de vista era o imigrante, que pensa que vem para cá pegar o ouro mas não sabe que vem para morrer. Traz a cultura de sua origem mas é um fazedor de filhos, seu sêmem se perde na América. Esvazia a Europa de sua presença, deixa espaço para que haja mais trabalho, e quando chega aqui é um ser dividido pelas memórias. Tem a memória brasileira que vai forjando através dos filhos e de sua abnegação mas mantém uma ponte pênsil com a memória européia. Manda dinheiro para a família que ficara lá. Não foi só a prata do colonizador que enriqueceu a Europa, o dinheiro do imigrante também ajudou a Europa a respirar. Cubro então o período brasileiro mas como escolho o imigrante galego vou às vezes às peregrinações medievais. Há um personagem, o Xan, um velho galego, aldeão inculto, que representa a oralidade. Você pode ver em certos livros meus a paixão que tenho pelos anônimos, aqueles que se dispersam nas ruas, que jamais terâo prêmios literários ou estátuas, que não serão aplaudidos. O velho Xan conta a história do seu povo e através dele, pode-se levantar uma poética da narrativa. Se ele visse tres ou quatro ouvintes distraídos, injetava ingredientes novos no que estava contando para despertá-los. Quando alguém manifestava pressa para que acabasse logo a história, dizia: “Quem tem pressa não merece a narrativa”. É esse homem que diz pro seu neto, Madruga, - que depois vem para a América ser o triunfador, em oposição ao Venâncio que escolhe a sífilis da América – que ele será seu sucessor nas histórias que vai contar. Ele achava que a Galícia não podia ficar desprovida de contadores de histórias. “Madruga, traga-nos de volta as lendas que os castelhanos nos roubaram.” As histórias podem ser extorquidas. Até que ponto a lenda de Amadis de Gaula é dos franceses mas pode ser dos galegos?

Pimentel - Provavelmente portugueses, holandeses e franceses cultivem hoje inúmeras lendas dos nossos índios.

Nélida - Por isso é que temos que ficar atentos à nossa história. Digo muito aos jovens: “Todo mundo acha que está começando o mundo, mas vocês não são inaugurais”. Nossa genealogia se perde nas noites do tempo. Somos todos herdeiros de Homero.

Álvaro - Vargas Llosa dedica seu livro sobre Canudos, “A Guerra do Fim do Mundo” da segunte forma: “A Euclides da Cunha no outro mundo e neste mundo a Nélida Piñon”.

Nélida - Nossa amizade começou na Universidade de Columbia em Nova Iorque. Tive muita sorte de estar em encontros de personalidades extraordinárias. Escrevo sobre isso em “Pão de cada dia”, um livro de fragmentos, da memória das idéias. Conto, por exemplo, do Borges desafiando um guerrilheiro nova-iorquino, todo vestido com aquela roupa mimética de floresta. Ele chamou Borges de fascista, uma coisa horrorosa, e o Borges então... (se levantando da cadeira, tateando em volta). Desabotoou o terno e falou: “Senhor, aqui não é o local apropriado, temos damas presentes, vamos lá fora”! O Borges ceguinho!

Álvaro - Outro amigo seu foi Gláuber Rocha.

Nélida - Me queria muito! Tivemos conversas lindas no gramado do Parque da Cidade. Uma vez conversamos até escurecer e ia fechar o parque. Estava tão agradável a conversa que continuamos no carro. Quando passei no canal de repente me deu vontade de ver as árvores e entrei numa ruinha. Ao pararmos o carro vimos um homem de costas, fazendo anotações num caderno. “Gláuber, não é o Rosa?” Tínhamos falado de Guimarães Rosa a tarde inteira! E era ele! Ficamos parados lá longamente, sem o interrompermos e sem dizer uma palavra.

Zezé - Durante muito tempo você passava seis meses em Nova Iorque e seis meses aqui. Imagino que nos últimos anos você não tenha mais conseguido fazer isso.

Nélida - Fiz um concurso internacional e ganhei entre 80 candidatos a cátedra Harry Stafford que era ocupada por Isaac Bashevis Singer. No dia em que comunicaram que eu estava entre os seis finalistas eu tinha sido assaltada na minha casa. Os ladrões saíram levando tudo e atendi ao telefone e era eles falando disso. Em determinado instante me perguntaram: “Que horas são”? “Vou ter que avisar ao senhor que fui assaltada e não tenho um relógio em casa.”

Pimentel - Você ganhou a cátedra porque comoveu eles!

Nélida - O processo seletivo durou nove meses. Tive que fazer uma apresentação pública em ingles, portugues e espanhol, fui sabatinada por todos os diretores e então ganhei o primeiro lugar. Foi muito importante na minha vida, mas em 2003 não quis mais e renunciei. Sou mulher de deixar as coisas para tras. Há um momento em que sinto que vivi em plenitude aquela experiência e tenho que romper com ela.

Antonia - O ritmo de sua produção acompanha o momento de escritora consagrada? A urgência diminui?

Nélida - Ah sim, mas é aquilo que lhes disse: aprendi a escrever em todos os lugares. Não sei até que ponto estou produzindo menos. Tenho dois livros prontos, um de ensaio e outro de fragmentos, e estou avançada no meu romance. Há pouco passei dois meses encerrada em Paris escrevendo. Ainda mantenho as mesmas exigências estéticas. Recebo propostas excelentes para ganhar dinheiro ou para colocar meu nome à frente de projetos mas não aceito nada.

Antonia - Suas paredes são forradas de premiações. Tem alguma especialmente marcante?

Nélida - Uma emoçao especial que tive foi quando tomei posse na ABL. Minha família toda estava presente, inclusive os Piñon da Bahia. Não tenho pudor em falar de minha família, manifesto a minha gratidão por eles terem me ajudado a ser quem sou, tenho que reverenciar meus grandes mortos e meus vivos amados. Outra emoção foi quando ganhei o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela, a primeira mulher em 504 anos de sua história. Foi a última homenagem que prestei à minha mãe.

Antonia - Eu gostaria que a senhora falasse do Prêmio Asturias. A senhora é a primeira mulher a receber o Astúrias, né?

Nélida - Primeiro escritor de língua portuguesa. Quando recebi a notícia fiquei muito serena e agradeci a todos que me ajudaram nessa trajetória. No dia 3 de outubro vou para a Europa com uma agenda pesada: em dois meses só tenho quatro dias livres. Palestras, jantares, promoção do livro “Vozes do deserto”. Fui convidada pelo Presidente Zapatero para a inauguração da cúpula dos chefes de estado e os reis me convidaram para um banquete. O próprio Astúrias te convida para fazer uma conferência. De 22 a 30 de outubro vou percorrer a Espanha, falando cada dia num lugar diferente. Vou fazer uma conferencia na Biblioteca Nacional de Espanha. Em 3 de novembro estarei em Portugal no Fórum Íbero-América, à frente da qual está Carlos Fuentes. É um grupo de 30 pessoas que há seis anos se reune todo ano para debater idéias e questões íbero-americanas. Um forum secreto, nada do que se discute ali sai na imprensa.

Zezé - A sociedade dos poetas vivos.

Nélida - Dali vou a Tampico, no México, participar de um festival, retorno à Espanha onde serei homenageada num congresso sobre Cervantes, tenho umas outras palestras, irei a Barcelona onde convidaram dez escritores, entre eles Salman Rushdie, para falar sobre sua obra. Chego no dia 25 de novembro à noite e no dia 26 vou a Teresópolis receber um prêmio.

Ricky - É impressionante como você gosta de viajar. Qual sua técnica para fazer uma mala?

Nélida - Viajo com muita naturalidade. Nunca esqueço uma peça de roupa ou um papel. Tenho um prazer interessante em fazer uma mala. Minhas roupas de viagem são todas bege e negras.

Antonia - Mas seu apartamento é tão aconchegante. Não sente falta de casa?

Nélida - Uma saudade imensa! As pessoas dizem: “Por que você não mora na Europa ou nos EUA”? Mas nem morta! Não posso viver sem o Brasil e sem a minha casinha.

Pimentel - Você é muito reconhecida também pela elegância.

Nélida - (rindo bastante) Eu adoro isso! Isso foi uma influência de minha mãe, com seu sentimento da boa sedução e seu desejo de agradar ao outro. Não é por vaidade, é apresentar o que você tem de melhor. Outra influência de minha mãe: adoro receber! A coisa que mais gosto é poder dar presentes aos amigos.

Ricky - Nós sentimos por este simples encontro o seu prazer em receber as pessoas. A sua preocupação em saber se a pessoa está bem. Ao escrever um livro, é como se recebesse os leitores? Existe essa preocupação se a pessoa será bem atendida?

Nélida - Sou responsável moralmente pela pessoa que cruza o umbral da minha porta. Não permitiria que alguém ofendesse um hóspede meu. Os árabes tem essa noção de proteção da tenda. Com os leitores que cruzam os umbrais dos meus livros também sinto isso. Mesmo aqueles que me procuram mas dizem não ter dinheiro para comprar meus livros. Gosto muito do outro.

Ricky - Isto depois de lançado. E enquanto escreve?

Nélida - Não, ninguém existe, só o meu dever de criar. Quem pensar no leitor sem querer o privilegia. Escolhe um leitor hábil e cultíssimo que te adora. Eu não, escrevo para o desconhecido, um brasileirinho como eu, a menininha ribeirinha do Amazonas que um dia vai me descobrir, Me dá um vigor dizer que sou uma escritora brasileirinha.

Antonia - E feminina. As mulheres ainda sofrem preconceito na literatura?

Nélida - Sim. Os homens postergam a leitura de um livro escrito por mulher. Não querem reconhecer as aquisições estéticas da mulher.

Pimentel - Isso dito por uma mulher publicada e premiada no mundo inteiro soa estranho. O mundo lhe aprecia, lhe traduz e lhe premia, e você é mulher.

Antonia - Qual o recado que você daria a um homem para que percebesse como um texto de mulher pode somar a ele?

Nélida - Primeiro, todo texto é erótico. O texto é uma genitália. Ao verbalizar você erotiza o universo. Não digo nem que o homem deva conhecer a erótica feminina, mas deve conhecer sua própria erótica que se reflete no corpo do outro. Nosso erotismo se complementa quando esbarra no objeto do desejo. O escritor é um ser protéico, tem que assumir todas as formas. Sou tudo quando escrevo, não tenho uma geografia de mulher, minha cabeça se apropria de todos os corpos, sem o que meu texto fica pela metade. A permuta de máscaras enriquece sua percepção de mundo. Tenho todos os sexos, sou panteísta, mas também sou especificamente uma mulher que aporto aquilo que me engendrou. Sou politicamente uma mulher. A política do meu gênero aparece no meu texto.

Pimentel - Você é muito ligada à sua mãe, né?

Nélida - Sou filha única. Há seis anos, a todo 30 de setembro, data de sua morte, faço uma missa e dou uma festa em casa com Tia Celina e amigos que a conheceram. Alguem faz um pequeno discurso, mas eu ainda não tive coragem. Minha mãe foi a pessoa que mais confiou em mim. Quando estava iniciando a carreira fui convidada para fazer uma palestra. Fiquei atemorizada! No meu tempo ninguém tinha experiencia em palestras, não se ganhava um tostão com isso, eram pouquíssimas pessoas assistindo. Fiquei o tempo todo assim: (tensa, com as mão crispadas, e os cotovelos pesados sobre a mesa). Minha mãe estava presente e disse: “Nunca mais vou ver você sofrer assim”. Nunca mais esteve presente a uma cerimônia pública minha, com exceção de minha posse na ABL.

Pimentel - Você ter entrado para a Academia significou a ampliação da atuação das mulheres. Só havia Raquel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles.

Nélida - E Dinah, que havia falecido. Foi a primeira entrada de uma mulher tida como internacionalizada e uma mulher que não tinha família. Uma mulher que anda pelo mundo e sem marido e filhos.

Ricky - Mulher na ABL é um passo. Mulher na presidência da ABL é um passo maior ainda.

Antonia - E coincidindo com o centenário da ABL.

Nélida - Foi uma ruptura extraordinária. Não pleitiei a presidência, exigiram de forma generosa que eu me definisse a respeito. Eu era secretária-geral do Antonio Houaiss e parece que fui para o cargo como elemento conciliador de várias correntes. De repente Houaiss se acidentou gravemente e disseram que eu teria que assumir a presidência. Assumi na interinidade, mas quando Houaiss melhorou e quis renunciar a meu favor não aceitei. “Não desejo que passe pela cabeça de quem seja que estou dando um golpe branco no momento de sua fragilidade.” Fiz questão de que ele continuasse sendo o presidente e eu uma interina. Somente ao final de seu mandato, defini que eu seria candidata e ganhei a eleição. Quando assumi de verdade, dizem que demonstrei talento em todas as instâncias.

Zezé - Quais foram as mudanças a partir de sua gestão?

Nélida - (reluta em falar de suas realizações e Zezé insiste) Sem dúvida, abriu as portas da Academia. Fundei o Centro de Memória. O projeto Visita Guiada é líndíssimo. A ABL é de todos. É a instituição mais importante do Brasil, guarda fidelidade aos seus primórdios e por ela passaram nomes excepcionais. Um conceito dos políticos que me irrita profundamente é quando dizem: “Vamos fazer um novo Brasil”. O Brasil já existe! Tem que apertar alguns parafusos, as reformas são necessárias, mas o Brasil é uma entidade sagrada. Acaso vamos jogar Machado de Assis pela janela? Joaquim Nabuco? Os brasileiros humildes que já existiram? Nossa língua que está consagrada? O Brasil tem uma língua precária em termos culturais do povo que não tem acesso à educação mas a língua portuguesa é um patrimônio nosso que consolidamos, até mesmo com o uso do gerúndio, um tempo verbal extraordinário que o europeu não entendeu até agora. O gerúndio é um tempo de progresso, de andamento, de aflicão, que te impulsiona a dar um passo até perto do abismo sem medo.

Pimentel - O gerúndio é otimista.

Álvaro - Portugal perdeu isto, porque Padre Bernardes e Padre Vieira usavam muito o gerúndio.

Nélida - Vieira pegou o ritmo no Brasil. O espanhol e o portugues estão atados a um espartilho do infinitivo. Não se movem. O verbo é irremovível. Como se fixasse valores que vão ficando anacrônicos. Eles recusam a metamorfose dos valores.

Pimentel - Você falou dos grandes nomes da ABL, que se aproximam dos 300. Inegavelmente, a ABL tem nomes significativos para as letras nacionais, mas também um grande número de indicações políticas. Não necessariamente todo mundo que entrou para a Academia tem uma contribuição literária. Algumas cadeiras foram compostas por oportunismo, e se isso não diminui o brilho dos verdadeiros homens de letras que lá estão, torna a convivência complicada.

Nélida - Não vou dizer aqui que as instituição não são infalíveis porque é um clichê. Vou dizer que as instituições espelham as oscilações humanas. Não se lida com anjos. A ABL é um contingente humano. Como você falou em casos políticos, eu gostaria de recordar que nossos fundadores previram que teríamos cultores das letras e também seres notáveis nos seus campos. Portanto, não é uma concessão que a casa faz. Me parece que são circunstâncias que não empalidecem a Academia. Cada qual aporta a sua contribuição e a sua história e todos enriquecem a nossa memória.

Antonia - Ivo Pitanguy seria um caso?

Nélida - É um esteta e tem livros publicados. A ABL não exige biografias impecáveis, apenas pede que se tenha mais de 35 anos e um livro publicado. Todo brasileiro é presumivelmente um candidato válido.

Antonia - Por este critério de idade, Rimbaud não entraria.

Nélida - Pois é, mas também não concorreria. Aos 22 anos encerrou suas obras e foi para a África. Quem estiver interessado, pode esperar até os 35.

Pimentel - Como você vivia antes de viver de direitos autorais?

Nélida - Com dificuldades, sobretudo num país onde os planos econômicos são uma loucura. Fazia pequenos free-lancers, dava aulas, minha mãe tinha uma renda e me ajudava. O primeiro curso de Criação Literária no Rio foi dada por mim na UFRJ. Só tive emprego durante certa época na revista Cadernos Brasileiros, do Afrânio Coutinho.

Pimentel - Os livros agora dão para viver?

Nélida - Não são só os livros, são as atividades intelectuais envolvidas na literatura. Trabalho muitíssimo mas tenho uma grande confiança na vida.

Zezé - A Academia também dá uma certa estabilidade, né.

Nélida - É uma maravilha.

Antonia - Com a premiação seus livros estão em destaque nas vitrines das livrarias, mas essa exposição é cruel, são glorificados por uma semana e depois devolvidos para as prateleiras.

Pimentel - Sai da roda e vai para o limbo.

Nélida - Aprendi a conviver com isso.

Antonia - A senhora tem o hábito de ir conversar com os livreiros?

Nélida - Sei de minhas grandes lutas, isso é difícil, mas nunca liguei para um crítico. Tomei isto como norma não por arrogância ou vaidade mas para preservar minha alma. “Não vou lanhar minha alma com gestos que além de mal-sucedidos deixarão um resquício amargo.” Não posso acrescentar aos meus sacrifícios a humilhação. Seja o que Deus quiser. A exposição pública é difícil mas uso o elmo de Hermes e desapareço. E a imprensa sempre foi generosa comigo.

Ricky - As obras depois de prontas a senhora não as discute com os críticos, mas e consigo mesma?

Nélida - Alea jacta est. Só releio quando um tradutor exige. Escrever não tem rede embaixo. Aí, meu bem, me habituei a grandes riscos. Sou uma mulher aventureira. Por ser uma mulher bem educada, compostinha, escondo essa aventureira, mas sabe qual era meu projeto de vida quando menina? Jamais dormir sobre o mesmo teto uma segunda noite. No entanto, gosto da casa, sou uma mulher com âncoras, gosto de um certo conforto. Sou taurina e venusiana.

Antonia - Essa dualidade se manifesta também quando você concilia a herança literária com o pioneirismo da vanguarda?

Nélida - Gilson Amado uma vez me levou na TVE e anunciou: “Eis uma vanguardeira”! Fui vanguardeira no sentido de rupturas mas tinha noção de que a vanguarda é sustentada pelas grandes tradições literárias, as quais não podem ser rompidas sem que lhes conheça os fundamentos, sem concretude estética.

Ricky - O que a levou a escrever “Vozes do Deserto”, sua obra que está nas vitrines, premiado com o Jabuti?

Nélida - Há muito tempo me interrogava sobre a possibilidade de fazer um livro que em si mesmo mostrasse o que é o ato de fabular, que afinal é a razão de ser do nosso ofício. A imaginação que ficou um pouco como fantasia, portanto como uma propriedade feminina, e daí desvalorizada. A imaginação que assusta os poderosos inteligentes por ser uma alavanca que altera o sentido da história. Não queria que esse romance se passasse no Brasil nem na Europa. Poderia colocá-la nos gregos mas estes tem um lado filosófico...

Ricky - Os gregos são o império da razão.

Nélida - Exatamente, e eu queria as fissuras da imaginação. Só tinha um lugar no meu mapa mental, dos mais fascinantes, um refúgio, um lugar onde se dá um dos fenômenos mais extraordinários da imaginação: o Oriente Médio, com suas tres religiões. É ali que se quebra o paradigma do deus visível e se engendra um deus por abstração. Um povo cheio de pudor, com aquelas batas largas onde ninguem vê o sexo, essa gente modesta, sem o equipamento dos gregos, inventa e aceita um deus invisível. O Oriente Médio é o enclave da imaginação. O lugar do deserto como grande metáfora, um mundo cambiante, uma geografia instável, onde o ser humano não é uma árvore. Eles tem que contar histórias e intrigas o tempo todo porque não tem identidade.

Ricky - As raízes tem que ser orais.

Nélida - As rotas da seda passavam ali e os objetos civilizatórios vinham de longe. O mundo hebraico eu não queria por se confundir com o mundo cristão. Preferi o mundo islâmico. Para mim é interessante por ser uma religião que poetiza a língua. Me fixei a partir do século VII, quando surge uma nova geopolítica, Maomé já tendo estabelecido as grandes revelações. Eu ia escolher Damasco mas para mim se confunde com Paulo. Adoro Paulo!

Ricky - Mas Paulo menosprezava as mulheres.

Nélida - Dizer que Paulo era misógino é uma falta de visão histórica, porque era a visão do mundo de então em relação às mulheres. Então me decidi por Bagdá, uma cidade linda, no auge dos abassidas, e pela figura do Haroum Al-Rashid. Bagdá era um centro comercial excepcional, ali ficava a escola dos tradutores que trouxe os papéis gregos de volta para a Europa milenarista pobre. Um lugar perfeito para uma exuberante reflexão sobre a arte de fabular. Neste livro não se escuta as histórias que Sherezade conta, se convive com os mistérios, o grande enigma dos corpos femininos. A imaginação enfrentando a tirania do califa. Bom... leiam o livro!

13/06/2006 - Atualizada em 12/06/2006