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Entrevista com o Acadêmico Evanildo Bechara

 

O "imortal" Evanildo Bechara, 81 anos, é o homem que atualizou a nova edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. Coube ao professor resolver alguns problemas deixados sem solução no acordo de 1990, firmado entre o Brasil, Portugal e os demais países lusófonos. Tanta responsabilidade o deixou aflito, a ponto de lhe tirar o sono. Bechara conversou com o JT há uma semana, por telefone, e revelou que o maior problema do acordo foi a utilização, ou não, do hífen.

Professor, que baita responsabilidade deixaram na sua mão...

Pois é. É o que podemos chamar de presente de grego. Mas uma reforma ortográfica sempre está a cargo da Academia. Nossa reforma é o resultado do encontro de duas comissões acadêmicas (do Brasil e Portugal). A tarefa foi cair em minhas mãos porque sou especialista em língua portuguesa e o acadêmico Antônio Houaiss, que presidiu a comissão do lado brasileiro, morreu em 1999.

É possível apresentar esta reforma de forma popular?

Este trabalho está sendo feito pela imprensa. Os jornais brasileiros publicaram resumos quase sempre corretos. Alguns resumos possuíam erros técnicos, até porque não foram feitos por especialistas. Acredito que o apoio da imprensa escrita, falada e televisionada vai ajudar a efetivar as novas regras, ainda mais porque o acordo só toca em dois pontos: a acentuação das palavras (que em 90% dos casos é a mesma) e no emprego do hífen. O hífen é o maior problema, porque a ele cabia uma série de funções e o acordo simplificou o seu emprego. As regras são mínimas.

O fato de as regras serem mínimas torna a reforma popular?

A torna mais fácil. A língua não pertence apenas aos especialistas ou escritores. Ela é do homem e da mulher em geral. Então, a reforma, depois de assimilada, vai produzir efeitos muito favoráveis, como aconteceu com a reforma de 1971. Naquela época, nós desobrigamos o uso do acento diferencial em palavras muito usadas, como foi o caso do pronome “tôda”. O acento era usado por causa de um pássaro que o brasileiro nem conhece, que se chama “tóda”. Nós usávamos ainda acento em “nêle”, que era a combinação da preposição com o pronome ele. Colocávamos o acento por causa da palavra “néle”, que significa arroz de casca da Índia e também era o nome de uma antiga moeda francesa. Quando o acordo é omisso, nós seguimos a tradição ortográfica do Brasil e de Portugal.

Se o acordo veio para resolver problemas, porque ele é omisso em alguns pontos?

Ele ficou omisso porque todo acordo é enxuto. Imagine se a lei que estabeleceu que os motoristas devem se submeter ao teste do bafômetro fosse catalogar todos os casos para ser aplicada? A lei é geral. O acordo também é. Dentro dessa filosofia, você também vai aplicar as palavras.

Eliminaram o trema porque as pessoas já falavam as palavras sem precisar do sinal?

A eliminação do trema está na linha da eliminação de todos os acentos que não são usados para marcar a sílaba tônica. Os acentos que foram tirados de voo, enjoo, creem e leem são acentos que, a rigor, não precisavam, porque sem eles você não erraria na pronúncia. O trema é um sinal muito recente. Ele não tem a mesma tradição na ortografia que o sinal agudo, circunflexo ou til têm.

E como fica a questão dos acentos diferenciais nas palavras “forma” e “fôrma” e “pára” e “para”?

Na palavra “para”, do verbo parar, o acento desapareceu. O “fôrma” é facultativo. Só ficaram dois acentos diferenciais obrigatórios. O pretérito perfeito “pôde” e o infinitivo “pôr”. Se eu digo a um amigo que estou frequentando a academia para ficar em forma, ninguém vai pensar que estou em fôrma. O problema da ambiguidade é resolvido pelo contexto.

O senhor achou a mudança justa, essencial?

Foi uma mudança importante. As pessoas estão falando muito das consequências econômicas. Primeiro que as consequências não são exclusividade desta reforma. A ortografia portuguesa já passou por muitas reformas e todas provocaram perdas econômicas. Ninguém está pensando nos seguintes pontos: com esta reforma, o Brasil entra (e já entra tarde) no clube das línguas que atingiram a maturidade linguística e política de terem uma só ortografia oficial. Nossa língua é a única língua de cultura do mundo que tem duas ortografias oficiais. Em segundo lugar, uma reforma ortográfica nunca é para a geração que a faz. É sempre para os jovens que estão começando a ler e escrever. Escuto muito escritor dizendo que consegue ler sem dificuldades o português de Portugal e o do Brasil. Só que eles se esquecem que o adulto não é uma criança. A criança não consegue suprir a ortografia de duas culturas diferentes. É um argumento absurdo de gente que não pensa alto.

A nova ortografia não vai gerar um preconceito das gerações mais novas, dizendo que as mais velhas escreviam de tal forma?

Não. Imagine isso aplicado a música, ao futebol, a novela, a literatura. Não é um argumento de peso. Muito mais importante do que isso é você vir que hoje você entra em um shopping e todas as lojas só apresentam vestuário para jovens e não para os mais velhos.

O senhor se sentiu poderoso com essa responsabilidade?

Não. Pelo contrário. Eu me senti aflito. Perdi horas de sono tentando resolver alguns problemas. O acordo tem 18 páginas. O vocabulário ortográfico tem 1300. Dentro do acordo, eu tenho que colocar 3700 palavras. Não me senti poderoso não, mas aflito para me sair bem na tarefa.

Qual questão tirou o seu sono?

Foi o hífen. Quando você usa o acento agudo, ele tem uma função específica. Você só o usa para indicar na sílaba tônica a vogal aberta, como em “café”. Se a vogal é fechada, você usa circunflexo, como na palavra “você”. Quando chega a vez do hífen, ele tem várias funções. Serve para distinguir os significados, serve também para indicar a fonética da palavra, ou a sua classe gramatical.

Não temos muitas palavras com as letras K, W e Y. Vão surgir novas palavras com essas letras?

No dicionário temos palavras como o adjetivo “shakespeariano” ou “kantiano”. A inclusão das letras foi para corroborar algo que já existe. A única vantagem da inclusão é na hora de fazer uma enunciação de fatos. Tínhamos os itens a, b, c... j e pulava o K. Agora você pode enunciar o K, W e Y.

Como filólogo, o senhor acha que as palavras usadas pelos jovens na internet serão algum dia adicionadas ao dicionário?

Não, porque as palavras tem o seu círculo de uso. O palavrão na minha geração não era usado diante dos pais. Hoje, os jovens utilizam até diante das mulheres. É um problema de circulação. Essa linguagem dos jovens da internet é uma linguagem válida naquele circuito. No carnaval você pode sair vestido de mulher sem nenhum desdouro. Se fizer isso na Semana Santa, vão falar mal de você.

E como o senhor trata as críticas naturais a respeito da reforma?

Nunca respondo a críticas entre os especialistas, porque entre eles não existem críticas. As críticas que se fazem, que eu ouço e que leio nos jornais, são críticas de pessoas que não pertencem ao ramo, com ela você não pode discutir assunto técnico. É como se eu, como filólogo, quisesse discutir com o meu cardiologista. Ele vai me mandar, com razão, plantar batatas. E eu vou ficar calado.

Jornal da Tarde (SP) 26/01/2009

25/01/2009 - Atualizada em 25/01/2009