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Arte e militância, sempre

 

Rachel Bertol e Daniela Birman 

O Globo (26.04.2003)


A temporada da Bienal do Livro, que acontecerá entre 15 e 25 de maio, já começou. Nas próximas quatro semanas, quase tudo no mercado editorial gira em torno do megaevento, no Riocentro. Além de ser uma festa cultural, a Bienal reforça, a cada edição, sua vocação para divulgar a literatura entre as crianças, que visitam em massa os estandes, levadas pelos colégios. E, entre as crianças, Ana Maria Machado, que na quinta-feira foi eleita para a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, é uma estrela. Vencedora do Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infantil, e autora de uma centena de livros, ela está lançando dois títulos e terá muitos outros reeditados.

Você está lançando muita coisa nesta Bienal, não?

ANA MARIA MACHADO: São três. Mas há reedições com novas ilustrações, novo visual. A Salamandra está relançando uma coleção com um novo visual. Não sei quais vão estar saindo na Bienal. Eu já aprovei seis. Mas são infantis, com novas ilustrações, nova capa, uma nova identidade visual. Tem "Bento que bento é o frade", "Raul da ferrugem azul", "Era uma vez um tirano", "De olho nas penas" e tem mais um, de que agora não me lembro. Mas todos são livros da década de 80. Novos mesmos, tem: a editora Mercuryo Jovem, uma editora nova de São Paulo, está lançando o livro do Portinari, que se chama "Portinholas". Ficou lindo, eles fizeram supercaprichado. E trabalhar em cima dos quadros do Portinari é uma maravilha.

Foi uma espécie de biografia, ou uma história?

ANA MARIA: Não, foi uma história. Eu escolhi alguns quadros e fiz uma história que fizesse a criança passear o olhar pelos quadros. Tentar descobrir qual é relação daquilo, enfim, olhar. E o outro, que eu estou louca para ver pronto, todo dia procuro ter notícias, é o da Ática, chamado "Abrindo caminho". Eu estou doida por este livro. Porque eu levei muito tempo depurando ele. Acho que é o meu livro que tem menos palavras, ou talvez um dos que têm menos.

Demorou um ano e pouco fazendo, né?

ANA MARIA: Primeiro, o texto eu levei bastante tempo. Aí um ano e tanto, a gente acompanhando a ilustração. Porque aí vinha, e eu dizia, não está bem como eu queria...

Você queria ser ilustradora também?

ANA MARIA: Não. Eu visualizo quando eu escrevo, mas eu não tenho vontade de realizar dessa forma, com essa linguagem. Eu tenho vontade de transmitir com palavra. Eu não sou muito controladora. Eu acho que é muito interessante você ver a leitura do outro. Quando fazem adaptação para teatro, quando fazem ilustração... Eu acho interessante, eles me mostram coisas que eu não tinha visto. Agora, neste, especificamente, como ele tem uma economia verbal muito grande, era fundamental que algumas coisas fossem ditas também pela ilustração. Por exemplo, os personagens, um se chama, na primeira parte, Dante, outro Tom e outro Carlos. Tem que a ilustração dizer que é Dante Alighieri, Carlos Drummond de Andrade e Tom Jobim. Eu não disse, mas a ilustração tem de dizer. Na segunda parte, um se chama Cris, outro Beto e outro Marco. Tem que ficar claro que é Cristóvão Colombo, Alberto Santos Dumont e Marco Polo. Então, isso eu tinha de dizer para o ilustrador e explicar o que eu queria, partindo de uma coisa, num primeiro momento, que é abrindo caminhos na arte, para um outro momento, que é abrindo caminhos físicos e geográficos, de avidez, de contato entre as pessoas.

E a história de quê?

ANA MARIA: É a história de uma pedra no caminho (e ela ri). É a história de "é pau, é pedra, é o fim do caminho". É homenagem, colagens de obstáculos e sobre como vencer obstáculos. É uma história sobre desafios.

Você acha que as crianças gostam mais da linguagem depurada? A comunicação fica mais fácil, direta?

ANA MARIA: Eu acho que elas gostam de um e de outro. Eu quando escrevo não me preocupo muito se as crianças vão ou não gostar. O que importa é que eu goste. Eu acho que o importante não é a idade de quem vai ler, é uma coerência interna do texto. Tem textos que pedem para ser contados muito devagarzinho, com muita repetição. "Quem lhe disse isso?", aí o outro diz "quem me disse foi compadre pato, quem disse para o compadre pato foi compadre galo, quem disse para o compadre galo, foi a comadre galinha...". Você vai repetindo. É um tipo de barato contar assim. Tem um outro que é pontual. Você vai, cutuca e volta. Quero dizer que cada texto determina a sua própria estrutura e a sua própria linguagem. E a gente tem de se treinar para detectar isso e obedecer a essa regra interna.

Agora, me parece que você está fazendo muita pesquisa, já que trata de temas da nossa cultura. O livro da Companhia das Letrinhas, por exemplo, "Histórias à brasileira"...

ANA MARIA: Vai sair o segundo da Companhia das Letrinhas no fim do ano. Não, eu sempre fiz isso. Eu fiz o Portinari agora, mas eu já tinha feito o Volpi e um sobre arte popular, e um sobre Modigliani. E eu pinto. Então, ir e voltar da pintura para a escrita é algo que eu faço há 35 anos. Eu pinto há mais tempo que escrevo.

Você tem de mostrar os seus quadros...

ANA MARIA: Ali, outro ali (diz ela, apontando para alguns dos muitos quadros na sala de seu apartamento). Enfim, eu sempre tive esse diálogo. Mas há muito tempo que não faço exposição. Fiz a última em Paris, em 1971.

Mas com essa experiência, porque você não ilustra?

ANA MARIA: Exatamente porque eu pinto. Pintar para mim não é contar uma história. É resolver problemas visuais, me expressar por uma linguagem de cor, de texturas, de transparência, composição, volume. Não tem narrativa. Mas hoje, assumidamente, eu sou uma pintora de domingo. Pinto pouco, muito menos do que eu gostaria. Ultimamente eu tenho mexido mais com têmpera. Houve uma fase em que eu usei muita aquarela. Mas eu volto sempre ao óleo. $acho que o óleo é onde eu me sinto mais segura. Mas não pretendo fazer um livro ilustrado, não tenho vontade. Esse do Portinari tem algumas ilustrações que são desenhos da minha filha, de quando ela era pequena, que eu misturei, porque eu conto a história de uma menina. Mas, voltando à questão da pesquisa, eu sempre li muito, sempre tive interesses muito variados, eu fui livreira, jornalista, professora, e, antes de tudo isso, estudei geografia. Larguei a faculdade no meio para fazer letras, mas eu estudei, fiz vestibular, freqüentei. Então, tenho interesses ecléticos. Já escrevi outros livros. Quando me dá essa curiosidade, aí eu pesquiso um pouco. Por exemplo, para "Abrindo caminho" eu não fiz pesquisa nenhuma.

Mas tem uma coisa dos elementos reais...

ANA MARIA: Eu acho que o livro que eu escrevi que teve mais pesquisa, eu publiquei em 1988 e a rigor eu não deveria ter pesquisado nada, porque é o meu livro mais autobiográfico, foi "Tropical sol da liberdade", que é um romance para adulto sobre o período da repressão. E aí eu quis verificar a data exata do dia, se era quinta-feira o dia da passeata, aí eu pesquisei para burro. Teve um elemento autobiográfico.

Foi o primeiro para adulto?

ANA MARIA: Não, foi o terceiro. O último para adulto foi um ensaio, "Como e por que ler textos da literatura universal" (Objetiva). Depois eu entreguei um outro de ensaio para a Nova Fronteira, que deve sair até o fim do ano, e eu estava, antes de me meter nesse negócio da Academia, começando um romance para adulto. E aí acabei parando...

Você começou essa loucura da Academia quando?

ANA MARIA: Em dezembro.

Que estalo deu para você querer concorrer a uma vaga?

ANA MARIA: Eu acho que é uma vontade de participar, é algo natural em quem escreve. É o mesmo que um jogador de futebol querer entrar para a seleção. É um desemboucadouro natural. E eu era muito amiga do doutor Evandro. Quem acabou de me ligar agora foi minha sobrinha, neta dele. Minha irmã é casada com um filho dele, então a gente conviveu muito. Ele várias vezes me falou que eu deveria me candidatar, que ele gostaria muito de me ver na Academia. E quando ele morreu eu achei, bom, a hora é agora.

Dá trabalho, né?

ANA MARIA: Dá trabalho. Mas tem coisas muito interessantes. A gente chega perto de pessoas muito interessantes. E se não fosse assim, não conhecia de perto.

E o que você espera da ABL?

ANA MARIA: Ah, eu não posso falar de uma coisa que não estou lá dentro.

Você enfrentou resistências por ser autora de infantis?

ANA MARIA: Não tenho muito problema com isso, porque eu ganhei o prêmio da ABL, há dois anos, pela obra de adulto. Então, eu não tenho de provar na Academia que eu também escrevo para adultos. Agora, é claro que existe esse lado do infantil, realmente eu acho que a Academia está mais do que preparada para receber a literatura infantil brasileira. Porque é uma literatura de muito boa qualidade, respeitada no mundo inteiro, que vive ganhando prêmio fora, e que ainda não teve na Academia um escritor reconhecido, primordialmente, por sua obra infantil. Monteiro Lobato tentou entrar e não entrou, foi recusado na Academia. Então essa coisa ficou, essa imagem muito forte de que a Academia rejeitou a literatura infantil. O que é um pouco injusto, também, na medida em que vários acadêmicos escreveram para criança e alguns deles têm uma parte muito grande de sua obra voltada para criança, como Viriato Correia, Orígenes Lessa, se a gente for lá longe, Olavo Bilac, se a gente olhar em volta, aqui, Rachel de Queiroz, Arnaldo Niskier, Ledo Ivo, Josué Montello, João Ubaldo... É ruim citar, porque acabamos esquecendo... Mas são todos autores que têm uma obra infantil aí publicada, estão sendo adotados por colégio.

O livro infantil tem um mercado que só cresce. E a Bienal também tem muito essa vocação, de divulgar o livro. Isso é só no Brasil que é assim, grande?

ANA MARIA: É só no Brasil. Mas é uma coisa grande, por uma razão simples, porque o principal comprador de livro é o governo, que compra livro para as escolas. Se as editoras brasileiras forem depender da vontade do leitor brasileiro de entrar numa livraria e comprar um livro - já não estou nem falando do poder aquisitivo do leitor brasileiro, mas, digamos, da classe média, de quem tem um poder aquisitivo, de quem compra roupa e janta fora e, às vezes, num ano inteiro não compra um livro. Se as editoras fossem depender dessas pessoas, já tinham fechado há muito tempo. Se as editoras fossem depender da renovação de acervo de biblioteca para comprar esses livros, como é na Inglaterra, também já teriam fechado. A biblioteca brasileira, pelos mais diferentes motivos, não se constituiria num mercado comprador de livro. Então, na verdade, a partir do momento em que sucessivos governos, em diferentes instâncias - federal, estadual, municipal - têm procurado maciçamente comprar livros, para crianças e jovens das escolas, e que várias empresas têm projetos de compra de livros, é claro que isso desenvolve muito. Ninguém distribui livro para criança de escola como no Brasil. Cada criança de escola pública brasileira, de quarta série, nos anos passado e retrasado, cada uma levou para escola cinco de presente que o governo comprou, num programa que se chama Literatura em Minha Casa. A coisa mais parecida que existe é um programa do México, que foi copiado do Brasil e é um programa para comprar para ter na escola. Mas não é nesse sistema. É maravilho que seja assim no Brasil. Isso é uma chama acesa.

Você acha que tem efeito?

ANA MARIA: Eu diria que o que tem acontecido no Brasil hoje talvez seja fruto disso. De você olhar e dizer, bom, votamos diferente, pensamos diferente, exigimos outras coisas, compreendemos outras coisas, eu acho que é uma soma de gente que está lendo há algum tempo e chegando na hora de votar. Agora, o problema todo é que quando chega na adolescência, pára-se de ler. Porque professor não lê. O livro ficou muito associado a brinquedo e fica largado como coisa infantil. Então, no momento, temos um nó aí. A formação do professor não inclui o convívio com o livro e fica muito difícil. Isso tem de ser reforçado.

Você está engajada, né? O seu livro "Texturas"... São palestras...

ANA MARIA: E antes dele o "Contracorrente". Eu faço isso há muito tempo. Primeiro eu fiz isso muito fora do Brasil, na Unesco, eu dei seminário para a Unesco em países em desenvolvimento, eu participei de um projeto em Angola para desenvolver o livro lá, então, eu fiz, primeiro, de uma maneira muito forte lá. Depois à medida que isso foi se desenvolvendo no Brasil, também fiz aqui. É a minha militância, é a militância pela leitura. Eu não estou achando que todo mundo vai ler livros de literatura sofisticadíssimos, não é isso. Mas eu acho que todo mundo tem o direito de saber se quer. E para saber se quer, tem de ter acesso, não só ao livro, mas a uma maneira de ler. Eu acho que é um direito do cidadão.

Você está mais otimista. Você acha que, desde os anos 70, a situação melhorou?

ANA MARIA: Muito, muito. Não acho não, são os números. A Bienal vende mais para criança, etc... Tudo isso. E por que vende mais para criança? Porque as crianças estão lendo mais. Começou antes de ter tanto livro para criança. Começou a partir de histórias em banca de jornal e revista. E aí as próprias editoras, como a Abril, que editavam as revistas, perceberam que aquilo estava vendendo bem e começaram a reunir as histórias em livros separados para vender em banca. Isso ainda no começo dos anos 70. E aí isso desenvolveu ilustrador, isso profissionalizou escritor.

E você já trabalhou em todas as partes: é leitora, escritora, já foi professora (deu aulas na UFRJ e na Sorbonne), foi livreira, só faltou editar...

ANA MARIA: Fui sócia da editora Quinteto, mas o meu trabalho lá foi menos editorial e mais de gerente financeiro. Isso foi no fim dos anos 80. Eu fiquei lá três anos, era uma editora feita por autores e ilustradores, como a Ruth Rocha. Eles estavam com problemas financeiros, então eu entrei para dar uma saneada, porque eu já tinha experiência de ser gerente financeira da livraria Malasartes. Fiquei três anos na editora e depois a vendemos muito bem, foi um sucesso. Mas eu não lidei tanto com a parte editorial, embora acompanhasse.

Hoje, acompanhando o que se produz no país para criança, qual a sua avaliação. Porque eu acho que é difícil surgir um bom autor novo para criança.

ANA MARIA: É, deveria ser. É sempre uma tradição, é sempre seguir. Nós só podemos existir porque existiu o Lobato antes. E eu acho que essa nova geração que está aí, está fazendo coisas maravilhosas, porque nós existimos antes. Eu diria assim, de saída, tem dois que eu acho maravilhosos: Adriana Falcão e Roger Mello. O livro do Roger sobre o menino do mangue é uma obra-prima. E "Mania de explicação", da Adriana, eu acho maravilhoso. "Clara Luna" eu acho bom. Mas eu acho que o problema começa quando se acha que é para essa idade ou para aquela. Aí, é um grande risco. Você fazer direcionado... Mas eu não acho que a Adriana vai fazer isso. É um risco para o escritor, para o resultado, para tudo.

Mas muita gente se sente atraída para escrever para um segmento tão forte...

ANA MARIA: Aí, você pega o seguinte: 9, 10 anos, são os que estão lendo "Harry Potter". Não tem nenhum problema. A gente lê aquilo do que nos apropriamos. Meu fôlego dá e pronto. E o escritor não pode partir disso, ele tem partes de várias idades convivendo dentro dele. Eu não sou capaz de dizer de um livro meu para que idade ele é. Já aconteceu várias vezes de eu entregar, e dizer que acho que é para tal idade, e a editora dizer... Mas profissionais bastardos existem em todas as áreas. Acho que as editoras nem selecionam tanto. Tem lugar para todo mundo. O leitor é que deve resolver. Se o editor acha aquilo suficientemente interessante para botar o dinheiro dele ali, vai em frente e corra o risco...

Você critica o Harry Potter, também, não é? Ao dizer que ela trabalha bem os clichês, mas que tem muitos autores brasileiros...

ANA MARIA: Mas eu não critico o Harry Potter. Isso eu disse uma única vez, na resenha que eu fiz do livro. Eu disse que o livro tem tudo para fazer sucesso, mas é uma coleção de clichês. E os autores brasi$, muitos deles, que não têm esses clichês e vendem tanto quanto muitas vezes e não têm esse espaço. É uma maravilha ver o espaço que vocês deram agora para o Ziraldo.

Mas no caso do Harry Potter, foi algo mundial...

ANA MARIA: No Brasil, foi especialmente. Ele foi um fenômeno de mídia antes de sair. Ele foi capa de revista semanal antes de ter chegado aqui e ficado pronto. Como não vai vender depois? Bota a Adriana Falcão na capa da "Veja" e vê o que acontece. E foi uma campanha de marketing muito inteligente, muito bem feita, o slogan era genial, dizia: "Vem aí o Harry Potter: quem vai ler primeiro: você ou seu pai?". Agora, tudo isso não quer dizer que o livro seja ruim. Não estou criticando o Harry Potter, porque senão passa uma imagem de que estou ressentida ou falando mal do que é estrangeiro. Eu sou a pessoa menos xenófoba.

Você até comparou esse fenômeno com o do Paulo Coelho, internacional...

ANA MARIA: Não comparei, mas fiz a referência. É claro que se alguém faz esse sucesso todo, não é só marketing. Não há marketing capaz de transformar alguém que não tenha nada. Transforma rapidamente, mas não dura. Transforma num big brother. Mas, você olha, a Xuxa está aí há mais dez anos, alguma coisa tem. O Paulo Coelho vende tudo isso, é claro que ele fala para a alma das pessoas. Eu acho que não temos também de achar que, só porque fez sucesso é um horror. Não é...

E o que você tem escrito?

ANA MARIA: Eu estava fazendo um romance que eu interrompi, e que vou retomar. É uma história de imigrantes. Até um dos motivos de eu ter meio parado, é porque de repente a novela estava pegando um pouco. São imigrantes portugueses. Mais do que isso não gosto de falar, porque vai embora. Eu tenho um bisavô e um avô português.

Você já tem neto?

ANA MARIA: Tenho dois netos. O Henrique tem 7 e a Isadora tem 2.

Inspira alguma coisa. O Ziraldo se inspira bastante nos netos dele...

ANA MARIA: É muito diferente. O Ziraldo teve os filhos deles todos numa leva só. Eu tive um filho por década. Um na década de 60, na de 70 e na de 80. Nos anos 90, eu tive netos. Então não parou nunca. É uma história diferente. Sempre tinha uma criança em volta. Além de que, eu tenho dez irmãos menores e 19 sobrinhos. Eu sou a mais velha, a matriarcona da família. A família tem uma parte muito grande capixaba - minha mãe é capixaba, e o meu pai é de Petrópolis. No Espírito Santo, eu tenho casa. Vou pelo menos uma vez por mês. Tenho um vínculo muito forte, mas eu sou carioquíssima, fui criada aqui.

Mas isso de ter criança em volta deve ajudar muito...

ANA MARIA: Ajuda muito. Eu observo, e às vezes é muito engraçado. Eu gosto muito de ouvir, de ver...

Dar aula para criança, você nunca deu?

ANA MARIA: Não, não tenho a menor paciência. Não tenho nenhuma paciência com filho alheio. Eu gosto dos meus, dos meus sobrinhos. Quer dizer, gostar a gente gosta, mas aquela paciência, a paciência enorme, repete, faz de novo, explica outra vez, não sei o quê. Eu acho que tem de ser uma criança à qual você possa impor limite. Dizer, isto não, e pronto. Mas, enfim, eu sempre gostei muito de ensinar para adolescente. Eu tenho paixão. Adolescente... Eu me orgulho. Eu fui paraninfo de todas as turmas em que eu dei aula. No Princesa Isabel, no Santo Inácio, além da universidade. Aula de português.

Tem muita literatura, hoje, que se faz à criança que é dirigida, com algum propósito didático....

ANA MARIA: É, isso não é literatura. É um livro didático, tem o seu lugar. Eu acho que tem lugar para isso. Quando eu falo que a gente tem direito à literatura, não é a isso que me refiro. Falo do tipo de livro que é ilargável, que você carrega para todo canto, que te faz sonhar, imaginar, faz ver coisas novas. Eu não sou especialista nisso: eu não posso falar disso, porque eu não conheço.

Quando você escreve você não tem uma preocupação nesse sentido?

ANA MARIA: Eu tenho tanta preocupação com isso quanto Garcia Márquez quando escreve. Quanto Machado de Assis quando escrevia. Não é por isso que eu escrevo. Eu escrevo porque eu gosto da linguagem, porque eu sou assombrada por personagens, porque tem umas perguntas na minha cabeça às quais eu tenho de procurar dar vazão.

E as idéias, elas fervilham muito?

ANA MARIA: Não, não fervilham. Mas eu escrevo sempre, escrevo todo dia. Tenho um método de trabalho, então eu vou criando um ambiente...

Você desenvolveu esse método ou sempre teve isso?

ANA MARIA: Não, quando eu era criança eu gostava de brincar, eu não escrevia. Mas desde que eu comecei a escrever eu escrevo. Porque eu sou muito desorganizada, eu sou uma pessoa caótica. Então, se eu não defender um tempo para as coisas importantes que eu tento fazer, eu acabo me dispersando. Tenho umas prioridades muito claras na minha vida. A prioridade com a família, que é a número um. Amigos, dois. Escrever, três. Sabe, são umas coisas assim muito sérias. Eu tento fazer isso porque eu sou uma desorganizada.

E internet, você está com um site. Como é isso?

ANA MARIA: É outro lado. Eu sou muito novidadeira. Eu escrevo em computador desde 1982. Tive um dos primeiros Machintoshes do Brasil. Uma amiga americana que veio trouxe e, na hora de embora, deixou comigo o computador. Até hoje eu trabalho com Machintosh. Tive vários. E antes, eu escrevia em máquina elétrica. Não fico com saudades do barulhinho da minha Olivetti. Quero que as coisas me sirvam, e lido muito bem com elas. A internet eu uso para me comunicar, muito com o correio eletrônico e, eventualmente, alguns sites escolhidos. Eu gosto, por exemplo, de ir no "New York Times" e ler, por exemplo, mas eu não fico navegando a esmo.

E o retorno em relação a seu site. Mudou a interação com os leitores?

ANA MARIA: Ah, mudou. Eu acho que é muito mais civilizado. Invade muito menos, porque fica lá na caixa, eu vou lá na hora que quero, respondo quando posso. As pessoas ainda mandam cartas, mas está aumentado o correio eletrônico e estão diminuindo as cartas. E, sobretudo, diminuiu um tipo de carta que era muito desagradável. Que era a carta que a professora provavelmente escrevia no quadro e as crianças copiavam e mandavam igual. Então chegavam umas 30 e tantas cartas, absolutamente iguais e todas querendo uma resposta pessoal. E muitas vezes, meio chantageando. "Está havendo uma gincana no colégio, se você não me responder até o dia tal, eu vou perder ponto". Era algo muito afetivo, e isso praticamente acabou. Eu não podia responder a tudo. Eu não ficava culpada, fico culpada, sim, é de não escrever, porque eu fico respondendo. Mas, eu respondo a todas. Eu boto numa pilha, e vai. Às vezes pode levar dois anos até chegar o dia de responder a carta. A criança já perdeu a gincana, mas eu respondo. Atualmente, isso está diminuindo muitíssimo. E como tem o site é muito mais simples. É mais rápido, mais curto e mais espontâneo, porque quem vai escrever não copia da professora.

Como é o retorno de escrever para adulto e para criança? Qual é a diferença, já que você é um dos poucos escritores que trabalha nesses dois registros?

ANA MARIA: Tem duas ênfases diferentes no retorno. Mas todos os dois são muito emocionantes. O retorno do leitor é o grande prêmio do livro. Eu pelo menos acho. A gente escreve para alguém ler e dizer que leu. O retorno da criança em geral é muito afetivo. É muito bom, porque é muito afetivo. A criança chega perto da gente numa Bienal ou numa escola, e o olhinho brilha. E fica vermelha, nervosa de vir falar com a gente e só diz: "Eu gostei", ou "Eu li". E faz uma pergunta, um comentário. E é uma coisa de um afetividade muito grande, é muito bom. E quando não gosta diz na maior. Adolescente diz logo: "Eu queria que ela tivesse ficado com ele...". Eu tenho um livro que às vezes causa muita reação, porque eles lêem como se fosse a história de um primeiro amor para dar certo, chama-se "Isso ninguém me tira". E na verdade é a história de um primeiro amor em que a menina cresce mais rápido que o menino, deixa ele para trás e vai cuidar da vida. Elas reagem: "Ela devia ter cedido, devia ter ficado". "Por que, se era um grande amor, não deu certo?". Cai no clichê emocional, e elas vêm e reclamam. E é ótimo, porque aí discutimos. Os meninos às vezes não gostam, porque percebem que o menino ficou para trás. O adolescente fica no meio e o adulto reage de maneira maravilhosa. Eu adoro as cartas que eu recebo de adulto e às vezes nem as cartas, os encontros. Porque é uma reação intelectual, racional, verbalizada, mas a partir de um ponto que tocou em uma emoção. E eu acho que é um espaço de falar de certas coisas que nem sempre é fácil de a pessoa falar. Então, o leitor se sente à vontade de falar disso. E é muito emocionante.

E, na hora de escrever, deve vir a memória de um livro que você fez para criança, para adulto...

ANA MARIA: É, aí vem tudo misturado. Eu acho que escrever nasce de uma mistura de três atitudes, além do amor à língua, claro. Mas, compor um romance, é a mistura de três atitudes. Uma tem a ver com o passado, que é a memória, a valorização da memória. Depois, uma outra mais ligada ao presente, que é a observação. É andar pela vida, prestando atenção nas coisas, de olho aberto, ouvido atento, faro fino. E uma outra que é voltar para o futuro, ou condicional, ou impossível, que é a imaginação. E essas três coisas se entretecem, com um fio daqui e outro dali, e formam o texto. Claro que só dá certo quando tem um embasamento de linguagem, o trabalho com a linguagem, com a sensibilidade pela linguagem. Não se pode ser ingênuo. Eu não posso usar essas três coisas - memória, imaginação e observação - para fazer uma sinfonia, porque eu não domino a linguagem musical, mas eu posso escrever.

Tem vezes que você começa escrevendo achando que está se dirigindo para uma idade e depois vê que se enganou?

ANA MARIA: Várias vezes, eu começo achando uma coisa, e passo para outra. E várias vezes eu termino achando que é uma coisa, e depois na releitura eu constato que não é. E às vezes não sou nem eu, é o editor. Hoje em dia menos, porque eu acho que eu já consigo ver na releitura. Quando escrevo, eu costumo deixar o texto descansar uns dois ou três meses. Na releitura, eu às vezes percebo que é diferente. Já me aconteceu de escrever uma história para criança, que eu achava que era para criança, e na releitura me dar conta de que era um conto para adulto. Como eu nunca consegui juntar um livro de contos, eu tenho contos, mas nunca consegui fazer a unidade, e deixei de lado. E, anos depois, eu estava escrevendo um romance, que eu não sabia como ia acabar, aí tive um sonho, e achei que ia escrever sobre aquilo. E falei com o Lourenço, meu marido, e disse: "Acho que vai entrar o avô da personagem, acho que estou com o meu avô na cabeça, eu nunca escrevi sobre ele". E ele me disse: "Já, você não se lembra daquele conto?". Quando eu achei aquele texto, vi que o personagem tinha o mesmo do personagem do romance, e era o capítulo final do romance, que faltava. Eu não tive de mudar nada. Botei fim e pronto. Foi "O tropical sol da liberdade". Eu acrescentei dois parágrafos no final para fechar a história. E já me aconteceu, no meio de um livro, que por acaso também foi "O tropical sol da liberdade", tinha uma parte que quando eu reli depois, achei que ficou falso, bobo, artificial. Aí hesitei, pensei em tirar, dei para três pessoas ler - das que eu deixo ler antes de publicar, que são, afetivamente, marido, irmã e filho. E eles disseram, "olha, esse pedaço aqui não funcionou". E aí eu tirei e depois virou um outro livro, para adolescente. Eu corto muito quando releio. Eu sou uma autora mais da família do Graciliano que do Guimarães Rosa. O meu primeiro original é muito maior do que a versão que finalmente vai. Hoje em dia isso também é diferente, porque a gente escreve no computador e não fica mais o registro. Mas antigamente, ia minguando e minguando. Jogando fora excesso de palavras. No "Alice e Ulisses", a primeira versão tinha 250 laudas, a segunda, 140 e a final, 90.

E, dos livros que vocês escreveu, quais na sua memória são os mais fortes?

ANA MARIA: "Canteiro de Saturno" foi um momento muito forte. E acho que "A audácia dessa mulher" também. Foram livros que o processo da escrita foi muito retrabalhado, muito intenso, convivi muito tempo com o livro. Estou falando nos de adulto. Nos infantis, o "Bisa Bia, Bisa Bel" é um deles. "O canto da praça" é outro.

E você sofre quando escreve?

ANA MARIA: Eu lido muito com o sofrimento. Em "Bisa Bia" eu chorava no meio, tive de parar. Agora, não é sempre. Tem vezes que não. Do contrário, eu já tinha parado de escrever há muito tempo, eu não sou masoquista. Mas, quase sempre, não é porque eu estou escrevendo, mas é porque tocou em alguma dor minha. Agora, muitas vezes, a maioria das vezes, é muito prazeroso escrever.

O registro para adulto fica mais próximo da sua história, da sua memória?

ANA MARIA: Não. Talvez até menos. Depende. Mas, para criança, às vezes, é poderoso. Para criança, é mais superficial, ou seja, estou na superfície do livro. No para adulto, está mais escondido, mais profundo. Mas é muito difícil falar sobre a nossa própria obra, não se tem distância.

Tem coisas que você renega, não gostaria mais de ver publicadas?

ANA MARIA: Graças a Deus não tenho. Deve ser horrível isso. Já me aconteceu muito, deixar, reler e rasgar. Já rasguei muita coisa. Geralmente não chega nem a ficar pronto quando é assim. É, então, melhor desistir. É muito chato, doloroso, é uma sensação de desperdício. Mas publicar sem passar por esse crivo é pior ainda.

Como você se vê hoje, comparando-se com a escritora de 20 anos atrás?

ANA MARIA: Eu hoje sou uma pessoa mais madura. E hoje eu tenho muita experiência de escrever. Isso se chama tarimba. Então, eu sento e escrevo. Digamos, é mais fácil escrever e, por isso mesmo, mais arriscado. Depois eu já escrevi tanta coisa, que eu não posso correr o risco de me repetir. Eu acho que os desafios são maiores, as responsabilidades são maiores, porque existe essa aparente facilidade que a tarimba dá. Nesse sentido de ofício, tem essa diferença. Mas, no resto... A vida é tão rica, tão inesgotável, tem assunto sem parar o tempo todo. Tanta coisa, tanta gente, tanta situação nova, os tempo são tão dinâmicos.

O dia-a-dia, essa violência toda, isso tem impacto no seu trabalho? Você teria vontade de escrever crônica, que tem essa coisa do dia, da exigência do diário?

ANA MARIA: Crônica é uma coisa que eu tinha vontade fazer. Porque eu acabo fazendo sem publicar. Dentro da idéia de procurar escrever sempre e me exercitar. Hoje mesmo, eu estou com uma no computador presa, que eu escrevi anteontem. Está lá, trata de grandes palavras, sobre paz, liberdade e justiça. Palavrões e grandes palavras. É sobre o que está aí acontecendo, é sobre violência, é sobre a guerra. Isso eu faço, de vez em quando, para desentupir, como exercício. Talvez ponha no meu site. Crônica é um exercício maravilhoso. E eu acho que eu escrevo porque eu fui leitora de crônica. Eu era absolutamente fascinada, hipnotizada, tiete, macaca de auditória do Rubem Braga. Eu acho que ninguém, nem Machado de Assis, escreveu crônica tão bem quanto ele. Eu era adolescente, eu tinha 13 anos, e meu pai, que era jornalista e político, me apresentou ao Rubem. Eu citei frases de cor de crônicas que nem estavam reunidas em livro. E o Rubem ficou impressionadíssimo, e nós ficamos amigos. Ele era muito tímido, eu era adolescente. Foi uma relação episódica, e me deu vontade de escrever. Se era para fazer aquilo, me deu vontade.

 

05/06/2006 - Atualizada em 04/06/2006