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Amiga dedicada ao Brasil

 

Rachel Bertol

O GLOBO - Caderno Prosa e Verso (25.05.2002)


Amizade e dedicação são palavras que condizem muito bem com a biografia de Luciana Stegagno-Picchio. Na semana passada, a italiana, com 82 anos e pique de menina, esteve no Brasil para duas importantes homenagens: tomou posse como sócia correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL) e recebeu um doutoramento honoris causa da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu discurso na ABL, proferido em festiva cerimônia após ter participado do ritualístico chá das quintas-feiras, Luciana fez uma ode a amigos acadêmicos, lembrando Manuel Bandeira, Aurélio Buarque de Holanda, Jorge Amado e tantos outros. Em Minas Gerais, rememorou outro amigo, decisivo, o juiz-forano Murilo Mendes, com quem ela e o marido, Nino, conviveram quase que diariamente nos 18 anos em que o poeta morou em Roma com a mulher, Maria da Saudade Cortesão.

Luciana poderia passar horas contando causos de amigos, que conquista facilmente. Esta crítica, tradutora e professora seduz pela simpatia e suscita admiração pela obra dedicada às letras portuguesas, brasileiras e de todos os países que falam o português - uma língua, como disse na fotobiografia que lhe consagrou o Instituto Camões, expressionista e afetiva, menos racional que o italiano e o francês.

- Luciana foi uma das pessoas, talvez a principal, que mais fizeram pelo Brasil na Europa no século XX. Não só pela literatura, mas por toda a nossa cultura - destaca o presidente da ABL, Alberto da Costa e Silva, seu amigo desde os anos 60, que guarda ótimas recordações de Nino, um médico bem-humorado, falecido há quatro anos e que sabia tudo de Stendahl, das ruelas de Roma e de seus fantasmas em sacadas e esquinas.

Amizade de Murilo levou Luciana a descobrir o Brasil

Nesta viagem ao Brasil, Luciana anunciou que doará à Juiz de Fora, em retribuição à homenagem recebida, a parte do espólio de Murilo Mendes que guarda na sua casa de Roma: manuscritos, cartas, originais. Um tesouro, que ajudou seu trabalho de composição da monumental edição crítica da "Poesia completa e prosa" do poeta, publicada pela Nova Aguilar em 1994.

- A lembrança que guardo de Murilo era de todos os dias. Morava com Saudade numa belíssima casa, na Via del Consolato 6, onde reunia pintores e escultores. Em Roma, sempre se chegava à casa de Murilo - conta Luciana, que acaba de publicar na Itália (com a ajuda da Embaixada brasileira) o livro de arte "O olhar do poeta", no qual reuniu os textos de catálogos de exposições escritos por ele. - É um espécie de história da pintura italiana, com a reprodução de uma obra de cada artista citado - diz.

A amizade com Murilo nasceu em 1957, quando ele substituiu Sérgio Buarque de Holanda na cátedra de cultura brasileira da Universidade de Roma. Naquele ano, iniciou-se a conversão de Luciana, até então uma lusitanista convicta, para a cultura do Brasil. Conheceu o país em 1959, quando participou de um congresso na Bahia: foram "45 dias inesquecíveis, que mudaram a minha cabeça e a minha vida", disse na fotobiografia. Muitos portugueses passaram a se queixar, com ciúmes, do namoro de Luciana com o Brasil, o amante com o qual traiu o marido Portugal.

- Hoje eu refaria completamente a tradução de "Fogo morto". Naquela ocasião eu era uma medievista aportuguesada, que não percebia a língua de José Lins do Rego. Endireitei sua prosa, embora ele tenha dito, em dedicatória, que fiz de "Fogo morto" um livro vivo - conta a autora da "História da literatura brasileira" (Nova Aguilar), escrita nos anos 70 e há alguns anos reatualizada.

Com seu ostranienie - o estranhamento que aprendeu com Roman Jakobson, com quem colaborou - Luciana consegue ver verdades que os brasileiros, ofuscados pelo cotidiano, não identificam. Sobre Murilo, observa que só nos últimos anos sua estrela subiu no Brasil.

- No início, ele era considerado apenas um anacrônico poeta católico. Sua religiosidade condiz mais com os tempos de hoje. E na Itália ele descobriu muitas coisas - afirma a professora emérita da Universidade de Roma "La Sapienza".

Se os autores brasileiros são pouco conhecidos no exterior - Luciana considera Machado de Assis o maior prosador da língua portuguesa - isto se dá, grandemente, por culpa dos brasileiros.

- É preciso estimular as traduções, que envelhecem rapidamente - diz a autora de mais de 500 artigos sobre o Brasil.

A crítica - entre seus mais elogiados trabalhos destacam-se estudos da poesia medieval portuguesa - observa que Drummond, segundo ela "grandessíssimo poeta", é muito mais difícil de ser traduzido, devido às raízes muito brasileiras, do que Manuel Bandeira ou Murilo Mendes. Dos novos, diz gostar muito de Milton Hatoun e Moacyr Scliar.

- Eles introduzem na literatura brasileira ecos de outros mundos. Scliar traz um mundo judaico e um mundo russo. Com Hatoum, há árabes e cristãos. São como os sírios de Jorge Amado. Por que Amado fazia sucesso? Porque sua Bahia, tão local, podia ser vista como uma utopia.

Não faz muito, Luciana terminou um estudo sobre a obra de Jorge Amado, que pretende publicar no Brasil. Na juventude, uma ruiva muito bonita, chegou a atuar em filmes da idade de ouro do cinema italiano, revela Alberto da Costa e Silva. Fascinada pela arte de representar, seus primeiros estudos voltaram-se para a história do teatro português. O presidente da ABL, ao descrever as qualidades da amiga, não se esquece de destacar seus dotes culinários - "a melhor pasta ao pesto que já comi em Roma". No momento, entre outros projetos, Luciana dedica-se à edição em vários volumes e com diferentes autores da história da literatura dos países de língua portuguesa.

- Luciana possui, decididamente, uma excepcional capacidade de conquistar amigos e influenciar pessoas. E o Brasil deve muito a ela - afirma o amigo Alberto.

 

07/06/2006 - Atualizada em 06/06/2006