Com a morte de Evandro Lins e Silva, o Brasil se vê privado de um cidadão modelar, exemplo para várias gerações. E eu perco um companheiro muito querido, velho amigo da minha família, que extraiu Virgílio de Melo Franco dos cárceres no Estado Novo. Das nove décadas de sua vida irreprochável, toda dedicada à justiça, aos interesses maiores e mais legítimos do País, limitar-me-ei, aqui, à passagem breve, mas significativa, que empreendeu pela política internacional.
Essa atuação começou quando, em 1961, Evandro foi convidado pelo então vice-presidente da República, João Goulart, a fim de acompanhá-lo em visita à República Popular da China, com a qual não tínhamos, na época, relações diplomáticas.
A viagem ao oriente comunista começou por Moscou, então também afastado diplomaticamente do Brasil. Ali, a delegação brasileira manteve breve encontro com Kruschev e Brezhnev.
Em Pequim, recebidos por Chen Y-ii, ministro das Relações Exteriores, as principais reuniões dos brasileiros se deram com Mao Tse-tung e o chefe do governo, Chou En-lai. As reivindicações chinesas visavam, sobretudo, o apoio do Brasil ao ingresso da República Popular nas Nações Unidas. A questão se prendia ao reconhecimento de credenciais das delegações.
Na ONU, o lugar da China no Conselho de Segurança era ocupado, sob pressão americana, pela República da China, cujo governo, derrotado na guerra civil em 1949, buscara abrigo na ilha de Taiwan. Mais ou menos como se a parte vencida numa revolução hipotética entre nós se houvesse refugiado em Marajó, e, durante um quarto de século, os Estados Unidos tentassem convencer o mundo de que o Brasil era Marajó. Havia, também, grande interesse chinês no desenvolvimento do intercâmbio comercial e, se possível, diplomático entre os dois países.
De junho a agosto de 1963, Evandro Lins chefiou a política externa brasileira e recebeu de João Goulart (alçado à presidência com a renúncia insensata de Jânio Quadros) total autonomia para o exercício das suas novas funções.
Lá, deu plena continuidade à diplomacia independente iniciada por Afonso Arinos, que se caracterizara por rejeitar alianças automáticas e pela atenção prioritária conferida aos interesses nacionais.
Aquela política teve prosseguimento com San Tiago Dantas, de novo com Afonso Arinos, Hermes Lima e Evandro. O último titular do Itamaraty, antes da instauração da ditadura militar em 1964, foi o embaixador Araújo Castro.
Quando dirigia o Itamaraty, Evandro Lins e Silva representou o Brasil na posse do presidente Belaunde Terry, do Peru, e na coroação do papa Paulo VI. Nessa última ocasião, acompanhando o presidente Goulart, aproveitou o ensejo para encontrar-se, em Roma, com o presidente John Kennedy. O pleito brasileiro era reescalonar a dívida externa, então, como agora, obstáculo permanente ao desenvolvimento econômico sustentado do nosso País.
No Brasil, Evandro manteve diálogo delicado com o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, que se mostrava insatisfeito pelas declarações contrárias à Aliança para o Progresso, de iniciativa do presidente Kennedy, proferidas por ocupantes de outras pastas.
O chanceler alegou ao diplomata americano que, no Brasil, as opiniões se exprimiam livremente, mas as posições do Governo em matéria de política externa eram as definidas pelo presidente da República e pelo ministro do Exterior. E aproveitou para reclamar de taxações injustas sobre a venda de produtos brasileiros no exterior. Queixa que permanece válida até hoje.
Coube também a Evandro Lins instruir a Delegação do Brasil junto às Nações Unidas para que votasse a favor da descolonização das chamadas províncias ultramarinas portuguesas na Comissão de Territórios Não-Autônomos.
No Governo Goulart, o grande brasileiro ocupara ainda, com dedicação e integridade incomparáveis, a Procuradoria Geral da República, a chefia do Gabinete Civil da Presidência, e chegaria ao Supremo Tribunal Federal, de onde o arbítrio ditatorial o excluiu.
Mais tarde, foi sua a glória de expulsar do templo o vendilhão Fernando Collor. E seria membro dos mais estimados e respeitados da Academia Brasileira de Letras, onde terá sucessor, mas nunca substituto.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 19/12/2002