Da sofrida Semana Santa dos meus tempos de infância, a figura que nítida permanece na minha memória, como uma fotografia que não envelhece, é de Verônica, encarnada pela professora Maria Elvira, cujas lágrimas e lamentos cantados nos comoviam até juntarmos ao seu sofrimento o nosso, chorando também.
Eram símbolos construídos pela igreja ao longo dos séculos e que espalhados pelo mundo tinham atravessado tempos e mares, transformados em costumes nas pequenas cidades, que na sua pobreza construíam de coisas simples, fazenda roxas e flores quaresmais, o ambiente de tristeza que coroava as celebrações da crucificação. As procissões do Bom Jesus da Cana Verde, do Encontro, do Calvário eram cercadas do silêncio das rezas que expressavam a fé que conjurava o pecado.
Às três horas da Sexta-Feira da Paixão íamos beijar os pés do Senhor Morto, colocar uma moeda e retirar outra que seria guardada para repetir no ano seguinte o mesmo gesto. Em casa, era tudo contrição e jejum. Só de peixes eram formadas nossas refeições. A cidade de São Bento, pequenina e bela, à beira de campos e lagos, cobria suas telhas e o céu de um incenso sombrio.
Depois, o Sábado da Aleluia, os sinos badalando em alegria e festa, Judas, esse mesmo que agora vem construir uma história diferente, era malhado e destruído para mostrar nosso repúdio à traição que se tornou estigma. Podem descobrir todos os pergaminhos do mundo, mas eu jamais o perdôo, porque seria destruir a minha infância, e os próprios valores da vida.
Sempre gosto de repetir São Paulo, quando resumiu o cristianismo com uma sentença radical: ''Sem ressurreição não há cristianismo.'' O Domingo da Ressurreição já me faz avançar no tempo e leva-me ao Colégio Maristas, onde eu aprendi a aprender tudo que pude saber na vida, os alunos enfileirados na nave da igreja, os sinos rompendo em aleluias e todos nós arrancávamos o roxo dos altares e anunciávamos a Ressurreição: ''Prostai-vos ó mortais / viva aos céus eternais / celebrai o Rei da Glória. / Cantai, cantai, cantai a Vitória!''
Avançando no tempo, saíamos da Faculdade para assistir ao espetáculo da Paixão de Cristo, levado em sessões contínuas no Teatro Arthur Azevedo de São Luís, para rir da caricatura em que um grupo teatral transformava a Sagrada Paixão. E aí vinha o Rubem Damasceno e fazia o seu ''caco'', no papel de Cristo, já pregado (amarrado) à cruz: e o centurião lhe colocava na boca o hissope de algodão, embebido em cachaça, em vez de vinagre, e o Cristo pedia ao seu algoz ''mais vinagre, mais vinagre''.
Depois, pelos caminhos do mundo, beijando os pés do Senhor Morto em Póvoa do Varzim, de onde saíra minha tetra-avó para o Brasil em meados do século 19. Em Santiago de Compostela, na sua monumental catedral, passando a noite em vigília, na benção do fogo e da água, exorcizando o demônio e assistindo às procissões dos Encapuçados.
Eu tive um mestre, Rubem Almeida, que em plena Academia Maranhense de Letras denunciou: ''estou muito velho para acreditar em chantagem. Essa história do homem na lua é mentira. Tudo arranjo dos americanos num deserto do Texas.''
Eu, também, nesta Sexta-Feira da Paixão, venho denunciar a farsa de um tal Evangelho de Judas. É mentira, tudo armado por Bin Laden, num ato de terrorismo contra os cristãos.
Não perdôo Judas nunca. Estou muito velho para deixar escapar aquele safado traidor.
Pau nele!
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 14/04/2006