Com o passar dos anos, já é possível ver as consequências que vão surgindo e as tendências que se vão formando com a nova (?) Constituição de 1988. Acho que essa avaliação está passando ao largo dos estudiosos do direito e da sociologia política. A verdade incontestável é sua ambiguidade, sua dupla face: uma com normas próprias do regime parlamentarista, outra do presidencialismo predominante.
Vamos examinar especificamente a divisão clássica dos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Foi Montesquieu quem primeiro sistematizou essa divisão, embora ela já tivesse raízes inglesas (Locke). Foram estes certamente que, com a "rule of law", exerceram de maneira empírica esta separação, que veio a desaparecer depois que o Parlamento absorveu o Executivo e entregou ao rei as funções honoríficas de chefe de Estado.
Mas esse balanço de forças foi esquematizado pelos americanos na Constituição de Filadélfia de 1787.
Era uma trindade lógica. O Judiciário, como guarda da Constituição, fiscalizava o Executivo e o Legislativo, e este, particularmente, controlava aquele. Aqui a Constituição de 88 explicitou de tal modo a independência que está desaparecendo a harmonia. Não no sentido de comportamento nem no conceito musical, mas na quebra do "acordo entre elementos diversos que resulta em algo agradável de ver ou ouvir". O campo da harmonia e da independência passou a ter linhas divisórias difíceis de detectar.
A Constituição de 88 criou outros poderes também independentes, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas, enquanto a sociedade transformou a mídia, antes chamada quarto poder, em superpoder. Esses se tornaram tão fortes que surgiu a necessidade de controles externos.
Mas o que eu desejava mesmo é constatar que esse modelo de privilegiar a independência sem harmonia está criando um arquipélago, em que cada um busca ampliar seu campo de mando em prejuízo de uma coisa mais alta que é o próprio funcionamento da democracia.
A falta de harmonia está, como no universo em expansão, onde se afastam as estrelas, afastando os poderes um dos outros, e o regime passa a funcionar em situações de atrito permanente, resultando na ineficiência do Estado e em detrimento dos serviços que ele deve dar à sociedade. Os direitos individuais e políticos sofrem ataques restritivos. Vejam-se o número de obras paradas no país inteiro, o poder pessoal apropriado por alguns agentes dos poderes que determinam o que se deve fazer e o que não se deve.
Assim, todos ampliam seu campo de ação e surge um Estado desarticulado, capenga e autoritário. Como se diz no Nordeste, "panela que muitos mexem, ou sai insossa, ou salgada".
Folha de S. Paulo, 23/10/2009