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Os Historiadores

Sobre: 

Esta palestra será, necessariamente, polêmica. Como acomodar devidamente em sessenta minutos a galeria dos que ilustraram esta Casa e a historiografia brasileira? Como distinguir os historiadores stricto sensu daqueles que se dedicaram preponderantemente a outras atividades? Ora, o exercício de qualquer opção convida ao desacordo, à contestação do critério usado. Inevitável, portanto, que alguns dos presentes, ou futuros leitores desta série de conferências, assinalem omissões a seu ver relevantes, ou opções menos felizes. Procurei o equilíbrio e a objetividade, de preferência à simpatia ou afeição pessoal que eventualmente me ligasse aos autores.

I. OS PRECURSORES

Para começar no começo, só dizendo que os próprios precursores tiveram um precursor – este hors concours – que foi certamente o saboroso Pero Vaz de Caminha. Sem o suspeitar, o escriba produziu o primeiríssimo compêndio da História pátria, em que nada omitiu, no seu rompante de ufanismo e no colorido do imenso painel em que anunciou uma nacionalidade ainda em ser. Como que pressentindo os genes de uma realidade futura, identificou, como um iluminado, o ADN – ou, se preferem, o DNA – do celebrado país do futuro.

Duas palavras, não mais, sobre os Precursores propriamente ditos – chamemo-los assim – os que precederam, no tempo e no espaço, o aparecimento de Varnhagen, proclamado por João Ribeiro “o nosso primeiro historiador”.

A rigor, poder-se-ia dizer que dois anglo-saxões deram início à nossa História: o poeta laureado e historiador Robert Southey, que publicou em Londres, em 1810 e 1819, a sua History of Brazil, e o seu continuador, John Armitage, autor de The History of Brazil, 1839.

Byron foi certamente injusto quando disse que só recorria ao texto de Southey em noites de insônia, pois o livro foi escrito com elegância e talento descritivo, além de apreciável intuição histórica. Disso, aliás, estava convencido o próprio autor, que diria a seu amigo Townsend, sem traço de modéstia: “Daqui a séculos, meu livro se encontrará entre aqueles que não estão destinados a perecer, e será para os brasileiros o que a obra de Heródoto é para os europeus.” (Rodolfo Garcia, discurso de recepção na ABL, 13.04.1935)

Aos autores luso-brasileiros dos séculos XVI, XVII e XVIII – Gandavo, Gabriel Soares, Frei Vicente do Salvador, Rocha Pitta e Aires do Casal – faltava objetividade, mesmo nos simples inventários que procuravam fazer da terra e da gente do Brasil, sempre considerado como simples apêndice de Portugal. A História é utilizada como recurso para atrair a imigração e pedir atenção da Metrópole para o estado pouco defensável do país, sujeito a inimigos contra os quais se reclama proteção.

Aos dois ingleses, sucedeu ainda Henrique Handelmann, professor da Universidade de Kiel, cuja História foi traduzida do alemão, graças ao nosso benemérito Instituto Histórico, em 1931, cerca de setenta anos depois de lançado.

João Ribeiro, preparando-se para escrever o seu estupendo compêndio, conta que foi precisamente no substancioso trabalho de Handelmann que encontrou os “pontos de vista” de que necessitava para compreender a nossa História. O principal era o que chamou de particularismo do desenvolvimento brasileiro. Nossa pátria não se originou de um núcleo central que se multiplicasse ou se expandisse, como Roma. Com efeito, o Brasil começou a nascer ao mesmo tempo em diferentes pontos, quase incomunicáveis. As distâncias e o sistema colonial favoreciam esse crescimento e a independência dos núcleos criadores mais o agravava. O sistema colonial ligou esses núcleos à metrópole, mas não os ligava entre si. Ora, a unidade existia na religião e na raça, mas definhava ou estava ausente na administração. As grandes indústrias da criação e da mineração formaram o contato do interior com a zona litorânea e foram os fatores decisivos da unidade territorial e nacional. (João Ribeiro, Jornal do Brasil, 3.11.1931). Notem que João Ribeiro aprendeu essa lição em alemão.

Citarei um exemplo, um único entre muitos, de acuidade de análise de Robert Southey, tão escassa nos autores brasileiros dos primeiros séculos. No curso da questão dinástica entre Portugal e a Espanha, de 1578-1580, ou seja, a sucessão de Dom Sebastião, o destino do Brasil esteve, em certo momento, diretamente envolvido. Desejoso de obter a desistência da Duquesa de Bragança, o todo-poderoso Filipe II tentou inutilmente oferecer-lhe o Brasil, com absoluta soberania e o título de rei outorgado a seu marido, Dom João. Comentário de Southey: “Nem ele fazendo a oferta, nem o Duque, rejeitando-a, calculavam-lhe o alcance.” (Historia do Brasil, tradução brasileira, Rio, 1862, tomo I, p. 43)

Só não me detenho em von Martius, autor do livro Como se deve escrever a História do Brasil, porque nenhum brasileiro se animou a seguir o seu conselho.

Até a Independência, os textos de História estiveram invariavelmente ligados à História Sagrada, às línguas e à retórica. Foi Dom Pedro I quem encarregou o Barão, logo depois Visconde de Cairu, de planejar uma obra que englobasse a “história dos principais sucessos”. Isso porque nenhuma das histórias do Brasil aparecidas a partir do século XVI tinha esse objetivo. Quatro tomos chegaram a ser publicados, um preliminar, sobre o Descobrimento do Brasil, e os demais referentes à própria Independência, de cujo movimento fora ativo participante. (Helio Vianna, O Visconde de Cairu, na Contribuição à História da Imprensa Brasileira. Rio, 1945, pp. 359-446)

 

II. VARNHAGEN (1816-1878)

Retomando o fio da meada, e para começo de conversa, poderei dizer que o ponto de partida e o alto da colina foram já consagrados, faz exatamente um século, quando os fundadores da Academia elegeram patrono da Cadeira 39 o insigne pesquisador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen.

Canonização tranqüila, inconteste, que apenas formalizou um sentimento generalizado, não apenas nos quadros acadêmicos mas em todo o país.

É comum associar-se a vida do diplomata, ontem como hoje, à fruição de uma espécie de ócio institucional que pode, ou não, ser utilizado em benefício do país. No caso de Varnhagen, não haveria duas opiniões. Seguramente, nenhum outro servidor público brasileiro terá utilizado com maior diligência o seu tempo no exterior em prol dos interesses superiores do país.

Ainda estudante em Coimbra, o futuro Visconde de Porto Seguro já revelara pendor marcante pela pesquisa histórica. Começou pelo que se poderia chamar de arqueologia literária, que lhe inspirou diferentes estudos sobre os nossos primeiros cronistas e o conduziu à revelação de inúmeras preciosidades inéditas, além da edição dos épicos brasileiros, o Caramuru e o Uraguai. A Narrativa epistolar de Fernão Cardim, até então desconhecida, foi também por ele reimpressa. A Enformação do Brasil, de 1584, obra anônima que Candido Mendes demonstrou pertencer a Anchieta, revelou-se uma das melhores crônicas do tempo.

Depois dos cancioneiros; depois de esboçar criativamente a nossa História literária no Florilégio; depois de intensa fixação na pesquisa propriamente histórica, do Brasil e da América, o jovem diplomata começou a delinear os contornos do que seria a sua obra mestra – a História Geral do Brasil.

Em seu discurso de posse na Academia, em 1903, como primeiro ocupante da Cadeira 39, Oliveira Lima evocou o estágio que fizera na Torre do Tombo, em Lisboa, quando estudante de Paleografia, e a ânsia com que esquadrinhava pilhas de documentos bolorentos, “na esperança de encontrar algo que na sua prosápia juvenil viesse a ser decisivo para a solução de qualquer dos enigmas da nossa história.” Ora, conta ele, “era com viva surpresa e não menos vivo desapontamento que, em quase todos aqueles papéis, se me deparava a marca discreta do lapis de um pachorrento investigador que me precedera na faina, e que verifiquei não ser outro senão Francisco Adolfo de Varnhagen.”

Com efeito, da Torre do Tombo Varnhagem extraiu documentos sem-número e sem par. Dos de Simancas, como dos de Sevilha e do Escorial, está cheia a primeira edição da sua História do Brasil, publicada em Madri em 1854-57, servindo-lhe aqueles de que então não se aproveitou, para, mais adiante, quando veio a servir na América do Sul, documentar o ensaio sobre a ocupação holandesa do norte do Brasil, bem como ilustrar a sua famosa defesa de Vespúcio.

Em 1868, Varnhagen foi removido para Viena, onde permaneceu os dez últimos anos de sua vida, dedicados inteiramente à atividade intelectual. Além de valiosas contribuições para a elucidação da cartografia medieval e da Renascença, bem como da história dos primeiros descobrimentos do Novo Mundo, preparou as segundas e mais completas edições da História das Lutas com os holandeses (escorado na opulenta documentação que recolheu nos arquivos de Amsterdã e Haia) e da História geral. Como se não bastasse, dirigiu cuidadosamente a reprodução dos trabalhos filológicos do jesuíta Montoya, que trouxe do Paraguai de Solano López – Arte, vocabulario y teatro de la lengua guaraní -- e chegou a concluir a sua história da Independência, cujos originais, profusamente anotados por Rio Branco, foram encontrados entre os papéis que formavam o arquivo particular do chanceler, adquirido pelo Governo. Encaminhados pelo Ministro Lauro Müller ao Instituto Histórico, a este devemos a edição de 1916 e a reedição, com índices, de 1938.

Segundo Oliveira Lima, era como que se perseguisse Varnhagen o receio de perder seus apontamentos nas constantes remoções a que o compelia a vida diplomática, tal a pressa com que os ia imprimindo, uns após outros. Com aquelas publicações avulsas, comentou, “organiza-se a mais curiosa das bibliotecas, com volumes de todos os formatos; bulindo em não sei quantos assuntos, escritos em português, em espanhol, em francês, em alemão, pois que ele conhecia e redigia em uma porção de línguas vivas e mortas, impressos nos mais variados lugares, em Lisboa, em Estocolmo, em Madri, em Caracas, em Viena, em Lima, na Havana, em Santiago”.

Embora reconheça tratar-se do “criador da história pátria”, o elogio de Oliveira Lima é longe de ser irrestrito: “em Varnhagen superabundava em erudição o que escasseava em espírito propriamente filosófico”. Deveria ser classificado na variedade a que os alemães dão o nome de história pragmática, a saber, a história que não é propriamente a filosófica, ou que dos acontecimentos deduz as leis que governam na sua marcha as sociedades humanas, mas que vai além da simples exposição dos fatos, acompanhando-os de reflexões e considerações sociológicas.

No prólogo da segunda edição da História geral, Varnhagen assim define sua missão:

“Cada dia nos convencemos mais de que a história é um ramo da crítica, não da eloqüência; e que perante o tribunal dela, o historiógrafo não é um advogado verboso e florido, mas antes um verdadeiro juiz, que, depois de averiguar bem os fatos, ouvindo as testemunhas, com o devido critério, deve, feito o seu alegado com o possivel laconismo, sentenciar na conformidade das leis equitativas da sociedade e humana justiça.”

O fato é que a primeira e segunda edições de a História geral foram saudadas como um atestado de maioridade de nossa historiografia. Sobre elas se debruçariam, reverentes, duas das mais expressivas figuras da inteligência brasileira : primeiro, Capistrano de Abreu, e logo em seguida, Rodolfo Garcia. À obra de Varnhagen dedicaram os melhores anos de suas vidas, votados ao intenso labor de anotar, completar, assinalar, corrigir a opulenta História geral.

 

III. JOÃO FRANCISCO LISBOA (1812-1863)

Varnhagen foi chamado de “o pai da nossa História” pelo único de seus contemporâneos que, na opinião de Rodolfo Garcia, lhe poderia fazer sombra, com ele competir pela vastidão do seu saber e profunda erudição em assuntos brasileiros: João Francisco Lisboa, com justiça escolhido patrono da Cadeira 18.

Capistrano foi ainda mais longe. Segundo ele, só dois brasileiros poderiam ter escrito uma história do Brasil melhor que a de Varnhagen: Joaquim Caetano, com sua perspicácia admiravel, lucidez de espírito, estilo-álgebra e saber inverossímil; e João Francisco Lisboa, com seu modo abundante, ironia ácida, pungência doentia, pessimismo previdente e intuição fervilhante. Seriam dois belos livros, se tivessem sido escritos. Não o foram. Resta o monumento de Varnhagen. (Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, p. 201)

Também enviado ao exterior pelo governo imperial para colher documentos elucidativos da história brasileira, o Timon maranhense realizou intenso trabalho nos arquivos portugueses, inclusive pesquisa para uma biografia do Padre Antonio Vieira, que deixou inacabada. Seu precário estado de saúde não permitiu que as pesquisas em curso tivessem produzido frutos mais significativos. Seu contemporâneo Antônio Henriques Leal chamou a si a publicação das suas Obras, em 4 volumes, impressos no Maranhão em 1864-65.

Em 1986, Arnaldo Niskier nos propiciou bela coletânea de escritos do combativo publicista, sob o título João Francisco Lisboa, o Timon maranhense – primeiro volume da nova fase da Coleção Afrânio Peixoto.

 

IV. NA ESTEIRA DE VARNHAGEN

Capistrano de Abreu (1853-1927)

Figura singular, mestre Capistrano de Abreu, colecionador voraz de fatos e alfarrábios, estudioso impenitente, à margem e acima de qualquer vaidade ou interesse material. Com todos os títulos para produzir uma obra própria do porte da de Varnhagen, faltou-lhe sempre o ânimo de empreender tarefas de grande alento. Optou, invariavelmente, por ensaios, estudos, prefácios, monografias, apostilas, traduções, comentários, anotações, artigos, todos riquíssimos em informação, mas sempre fragmentos de crítica histórica, mais do que pròpriamente de história. “Mas, que soberbos fragmentos!”, chegou a exclamar João Ribeiro, acrescentando: “Capistrano cultivava não só a história e a geografia, mas tudo que se relacionava ao território, à biologia e à etnologia e à linguística americana, deixando em cada ramo dessa variada cultura monografias definitivas e memoráveis.” (João Ribeiro, Obras, vol. VI, p.89)

Ao contrário de Varnhagen – bafejado pelo favor imperial no Velho Mundo – Capistrano, estudante rebelde no Ceará, não chegou a concluir o curso de humanidades e veio empregar-se na Côrte, sob a proteção de José de Alencar. Após ofícios modestos, passou a funcionário da Biblioteca Nacional e, por brilhante concurso de provas, conquistou, aos 26 anos, o cargo que lhe serviria de arrimo até o fim da vida. Aos 30 anos, novo concurso lhe deu a cátedra de Corografia e História do Brasil do Colégio Pedro II, quando defendeu, com notável erudição, a tese da intencionalidade da descoberta do Brasil, quando à época era comum a crença do achado casual. A cátedra, porém, jamais o seduziu, embotra tivesse lecionado, mal e mal, por três lustros. Sua atração exclusiva eram as fontes documentais. (Fernando Segismundo, Grandezas do Colégio Pedro II, Unigraf, Rio, 1996)

Em realidade, apenas a história colonial inflamava o seu interesse de pesquisador – índios, capitanias, jesuítas, primeiros goverandores, primeiro povoamento e primeiras migrações. Nenhum interesse peloprimeiro nem pelo segundo reinados, nem pela guerra do Paraguai e muito, muitíssimo menos pela República. (João Ribeiro, op.cit., p. 86)

Como vivesse, literalmente, nas bibliotecas, chegou-se a dizer que a mania de ler matava-lhe a faculdade de produizir. Mas ao amigo que lhe perguntou por que não lia menos e escrevia mais, limitou-se a responder que havia já quem escrevesse demais, lendo muito menos... “Míope, extremamente míope, mergulhava a cabeça nos in-folios e manuscritos e daí não era possível tirá-lo, senão quando o guarda ou vigia vinha adverti-lo de que ia fechar o estabelecimento e em alguns desses tinha a permissão de ir além das horas regulamentares.” (Jornal do Brasil, 1.1.1930, coluna de João Ribeiro)

Graças ao zelo e diligência da Sociedade Capistrano de Abreu, constituida logo após a sua morte, em 1927, os “soberbos fragmentos” foram sendo editados, um a um, em monografias memoráveis, o que tornou possivel preservar para as seguintes gerações esse acervo admirável de subsídios à história pátria. Ao registrar o aparecimento dos primeiros volumes – O descobrimento do Brasil e Caminhos antigos e povoamento do Brasil – João Ribeiro assinala que a Sociedade logrou colocar o nome do sábio brasileiro no plano em que figuram Rio Branco, Caetano, Candido Mendes e outros eruditos da nossa História.

Temperamento hirsuto, avesso a qualquer mundanidade, consta que quando alguém, um dia, sugeriu que deveria ser da Academia, respondeu que não pertenceria a sociedade nenhuma, a não ser à sociedade humana, da qual “contra a vontade já fazia parte. E estava farto”. (Op. cit., p.94)

 

Oliveira Lima (1867-1928)

Discípulo dileto de Oliveira Martins, cedo iniciado na intimidade dos arquivos portugueses, Oliveira Lima pôde desenvolver os seus dotes de pesquisador sob os auspícios do serviço exterior brasileiro, tal como o seu padroeiro Varnhagen.

A têmpera do historiador se revelaria nos primeiros ensaios: Pernambuco e seu desenvolvimento histórico (Berlim, 1895); Aspectos da literatura colonial (Leipsig, 1896) e Sete anos de República no Brasil (Paris, 1900). No Secretário d’El-Rei, em pinceladas fortes, deu-nos um belo retrato de Alexandre de Gusmão. A seguir, a Memória sobre a Descoberta do Brasil (1900), O reconhecimento do Império, publicado em 1901, e a Relação dos manuscritos interessando o Brasil, existentes no Museu Britânico de Londres (1893) consolidaram a trajetória de Oliveira Lima. Em outra vertente, as impressões que nos deixou em Nos Estados Unidos (1899) e No Japão (1903) revelaram o observador arguto de outras culturas e civilizações.

D. João VI no Brasil, publicado no Rio em 1909, ainda no quadro das comemorações do centenário da migração real portuguesa, causou forte impacto. Paupérrimos os textos sobre o século XIX, o painel traçado por Oliveira Lima tornou-se um marco significativo. Pela primeira vez, uma descrição objetiva e lúcida do quadro político europeu sacudido pelo vendaval napoleônico; das intrigas diplomáticas em curso, sobretudo no Rio da Prata; da quase tutela que a Inglaterra exerceu sobre Portugal; dos bastidores do jogo de poder e dos horizontes que abria o Novo Mundo. Reeditado um terço de século mais tarde, o prefácio de Octavio Tarquínio de Souza declara a obra intacta, sem nenhum sinal aparente de envelhecimento, sem exigir qualquer nota no intuito de atualizar informação, desfazer obscuridade ou retificar engano. Até então, mesmo os livros de estrangeiros como o alemão Handelmann ou o inglês Armitage haviam interpretado as conseqüências políticas dos treze anos de estada do rei entre nós, melhor do que a grande maioria dos brasileiros, tão pobre a nossa historiografia.

Graças a Oliveira Lima, essa fase de nossa História passou a ser vista como a do lançamento efetivo das bases da emancipação brasileira. Nesse processo de revisão histórica, Dom João VI ganhou contornos morais, logrou a recuperação de qualidades humanas e políticas que antes lhe contestavam. Para Oliveira Lima, a tarefa do historiador se confundia muitas vezes com a do sociólogo, tal a atenção que votava aos fatos menos aparatosos de natureza econômica e social, às mudanças de estilo de vida na antiga colônia, em suma, o processo de nossa diferenciação nacional. (Octavio T. de Souza, prefácio à 2a edição de Dom João VI no Brasil)

Vítima, em parte, da síndrome de Capistrano, Oliveira Lima foi dando vasão espasmódica a uma variada série de estudos, monografias e artigos, publicados aqui e acolá, sobretudo na imprensa. Sua História da civilização foi uma das exceções, mas teve um intuito didático imediato, tal seja o de corrigir o desequilíbrio dos compêndios adotados, que atribuíam, uns, espaço excessivo às civilizações antigas, enquanto outros larga parte à História Sagrada, com insuficiente atenção à História das Américas e à História Contemporânea. Em duas palavras, o falso dilema da primeira reforma do ensino secundário na República: história descritiva versus história da civilização – a Kulturgeschischte – esta finalmente deixada às faculdades superiores de letras.

Digna de nota a série de doze conferências que Oliveira Lima pronunciou na Sorbonne, em 1911, sob o título de Formation historique de la nationalité brésilienne, traduzidas para o português em 1944, com prefácios de Gilberto Freyre e José Veríssimo. Excelentes conferências, sem dúvida, mas com a finalidade de divulgação cultural junto a um público notoriamente pouco informado sobre o Brasil. Espécie de contraponto à Esquisse do Barão do Rio Branco? Também digno de menção o excelente ensaio de história diplomática D. Miguel no trono – 1828-1833, sobre o conflito entre o Portugal absolutista e o liberalismo do nosso Dom Pedro I.

Cousas diplomáticas é uma coletânea de artigos na imprensa periódica, de 1903 a 1907, com extensas reflexões sobre os rumos que caberia imprimir à carrière. Sem a menor dúvida, fonte de polêmica dentro e fora do Itamarati.

Homem suscetível e brigão, nascido para espadachim não obstante a sua corpulência de obeso, como o pintou Octavio Tarquínio, Oliveira Lima como que “comprou” vários incidentes. Um deles, que teve muita repercussão, foi com o irreverente Emílio de Menezes, a quem chamara de “bêbado e vadio”. O poeta retrucou com um soneto lapidar em que traça o perfil do historiador pernambucano e assim termina:

Eis, em resumo, essa figura estranha

Tem mil léguas quadradas de vaidade

Por milímetro cúbico de banha.

Incontestável que Oliveira Lima amou e serviu a seu país. Mas à sua maneira. Reácio à disciplina do Barão, acabou rompendo os vínculos com a carreira. O rancor acumulado não facilitou uma reparação quando o regresso à diplomacia se tornou talvez possível após a morte de Rio Branco. Tendo aspirado à missão em Londres, e depois à sucessão de Joaquim Nabuco em Washington, não obteve nem uma nem outra. Nas suas Memórias, seriam visíveis as farpas ao Barão, a Nabuco, a Graça Aranha. Desertou também da Academia, por julgá-la subserviente ao grande ministro. A opção do ostracismo levou-o a doar, por cláusula testamentária, à universidade católica de Washington a sua opulenta biblioteca, talvez a mais vasta brasiliana de todos os tempos: mais de 40.000 volumes primorosamente catalogados.

 

Rodolfo Garcia (1873-1949)

Com a morte de Capistrano, recaíra inteiramente sobre os ombros de Rodolfo Garcia a tarefa ingente de revisão e anotação da obra de Varnhagen. A rigor, a terceira edição já foi substancialmente trabalho seu, excetuado o estupendo excurso final, da lavra de Capistrano.

À frente da Biblioteca Nacional, promoveu a reedição de obras de imenso valor como a Arte de gramática de José de Anchieta, primeiro texto sobre a língua tupi. Sem as asperezas e idiossincrasias de Capistrano, Garcia reunia à sua volta, no final da tarde, um círculo de estudiosos para algumas horas de conversa. Eram o que Augusto Meyer chamou “os rosacrucianos da História”, assinalando entre os mais assíduos Afrânio Peixoto, Octavio Tarquínio de Souza, Tasso Fragoso, Artur Neiva, Serafim Leite, Alberto Rangel, Aurelio Porto, Carlos Pontes, Primitivo Moacyr, Wanderley Pinto, Batista Pereira, Eugênio de Castro. Josué Montello, àquela altura encarregado dos cursos da Biblioteca e seu futuro diretor, conta que essas tertúlias, a rigor, se passavam no fundo da sala, de forma a que o mestre, depois de falar com um, e com outro, pudesse voltar à sua mesa, lupa em punho, e retomar a companhia dos alfarrábios. No início dos anos quarenta, cheguei a visitá-lo com relativa freqüência, seja para mostrar-lhe alguma preciosidade recém-descoberta nos arquivos do Itamarati, ou para pedir-lhe conselho, ou alguma pista a seguir nas minhas próprias pesquisas então em curso.

Expoente extraordinário de uma espécie em rápida extinção – a dos pesquisadores em tempo integral – a verdadeira paixão de Garcia era espojar-se nos pés-de-página e nos fins de capítulo, no afã de compor, dilatar, reconstituir, enfim, tornar biodegradável o trabalho alheio.

Ao recordar esse traço tão marcante da personalidade garciana, Josué Montello observa, com justeza, que o simples fato de haver consagrado grande parte de sua vida à anotação elucidativa de textos básicos da nossa historiografia, tornou a sua obra “praticamente escondida por esses mesmos textos”. Ora, seus estudos autônomos são de alta qualidade e reclamam uma reedição crítica, para conhecimento das novas gerações, conclui.

 

V. OS FUNDADORES

Poder-se-ia dizer que dois – Pereira da Silva (1817-1889) e Oliveira Lima (18671928) – foram primordialmente historiadores, enquanto quatro outros se destacaram como personalidades de grande relevo na vida do país e nos legaram, igualmente, trabalhos de relevante valor histórico: o Visconde de Taunay (1843-1899), Teixeira de Melo (1833-1907), Joaquim Nabuco (1849-1910) e Afonso Celso (1860-1938).

Jornalista, político, contista, memorialista, João Manuel Pereira da Silva interessou-se pela história do século XIX e produziu uma obra de divulgação relativamente extensa, embora de discreto valor: História da Fundação do Império Brasileiro; História do segundo período do Reinado de Pedro I; Menoridade de Pedro II; Memórias do meu tempo.

Pouco participou dos trabalhos da Academia, pois faleceu no ano seguinte ao da fundação. Seu sucessor, o Barão do Rio Branco, tomou posse por carta, o que era então permitido pelo regimento. Ora, essa circunstância privou Pereira da Silva do elogio acadêmico e terá contribuído ainda mais para o esquecimento em que caiu o seu nome. O que o salvou, aliás, do esquecimento completo foi a memória de algumas pilhérias a seu respeito, até hoje lembradas. Ainda recentemente, Alberto Venancio Filho recordou que, certa vez, Pedro Calmon, em banca de concurso, repetiu a frase de Martim Francisco III: “A ninguém é dado ignorar, por completo, a História do Brasil antes de conhecer a fundo a obra do Sr. Conselheiro J.M. Pereira da Silva.” (Revista Brasileira, Ano III, n. 9, pág. 87)

Rio Branco, que conhecia como ninguém a questão do Sul, acusou Pereira da Silva de ter inventado uma batalha que nunca teve lugar, dando até o número de mortos e feridos. (Capistrano, Ensaios e Estudos, p. 215)

Talvez seu melhor trabalho seja o livro de Memórias, em que descreve, com objetividade e isenção, a sua experiência política. Na opinião de Magalhães Júnior, “nenhum dos nossos historiadores terá com mais precisão descrito os efeitos do primeiro encilhamento e o craque bancário que se lhe seguiu, na administração financeira de Souza Franco”. E conclui: “E o melhor elogio que se lhe fará é o de dizer que Oliveira Lima repetiu quase textualmente algumas passagens do seu livro, ao tratar do assunto em O Império Brasileiro.”*

O Visconde de Taunay, neto do famoso paisagista da Missão Artística de 1816 e filho de Felix Emilio, Barão de Taunay, desenvolveu muito cedo a paixão literária a despeito da opção pela engenharia militar. Incorporado à expedição enviada a Mato Grosso, no início da guerra do Paraguai, logo encontrou inspiração para a maior parte dos seus escritos. Primeiro-tenente, convidado pelo Conde d’Eu para secretário do seu Estado-Maior, coube-lhe redigir o Diário do Exército, reproduzido em livro em 1870. A publicação, pouco depois, de A retirada da Laguna, originalmente em francês, e do primeiro romance – Inocência – deram imediata notoriedade ao jovem escritor. Embora obras de juventude, são até hoje julgadas como os pontos mais altos de sua obra.

Deputado pelo Estado de Goiás e, mais adiante, pelo de Santa Catarina, foi também presidente desta última província, bem como da do Paraná, e finalmente senador, tendo sido agraciado com o título de Visconde, com grandeza, dois meses antes da queda da monarquia. Homem de grande integridade moral e patriotismo, escreveu inúmeros artigos em louvor do Imperador e do regime deposto. Trabalhador infatigável, deixou-nos além das narrativas de guerra e de viagens uma relativamente extensa obra literária que inclui romances, contos, estudos críticos e peças de teatro.*

Sobre Joaquim Nabuco, eu poderia dizer que, pela estatura, simplesmente não caberia dentro dos limites e parâmetros desta conferência. Pede um livro inteiro.

Sou da geração que ainda lia e relia Minha formação. Quando Carolina publicou a admirável biografia do pai, o sentimento que em muitos de nós produziu foi uma espécie de nostalgia pelo grande livro de memórias que êle mesmo poderia nos ter legado, tal a riqueza da sua vida.

Apesar de haver escrito o Porque continuo a ser monarquista, a República foi bater à sua porta. Precisava muito mais dele que ele da República.

João Ribeiro o conheceu de perto e se compraz na análise de sua personalidade. Sem ser egoísta, e muito menos ególatra, “tinha um extremo cuidado de si próprio, sem a intenção de engrandecer-se. Quase tudo quanto escreveu é autobiografia “. (Obras, Crítica, vol. VI)

Após Camões e os Lusíadas (1872); L’Amour est Dieu, poesias líricas; O Abolicionismo (1883); O erro do Imperador, história (1886); Escravos, poesia (1886), os dois livros seguintes foram reações ao episódio da sublevação da Armada em 1893: a biografia de Balmaceda (1895) e A Intervenção estrangeira durante a revolta, história diplomática (1896). Um estadista do Império (1897-1899), em três volumes, é mais do que biografia, é uma história da própria monarquia no Brasil. Sua obra maior.

No Reino Unido, onde serviu de 1900 a 1905 – tendo sido o último diplomata a ser recebido pela Rainha Victoria, pouco antes de sua morte – o Conselho Municipal da Grande Londres fez instalar, em 1973, uma placa comemorativa, para assinalar aos passantes que, no número 52 de Cornwall Gardens, viveu Joaquim Nabuco como chefe da missão diplomática brasileira. Passados 24 anos dessa cerimônia, é com grata emoção que repito hoje algumas das palavras que então pronunciei, como Embaixador do Brasil: “Joaquim Nabuco é uma dessas raras figuras que pertencem tanto ao passado quanto ao futuro do Brasil, pelo elevado sentido que souberam dar ao seu amor pelo país e pela relevância da contribuição prestada à nossa evolução social e política.”*

Filho do Visconde de Ouro Preto, grande estadista e dileto amigo do Imperador, Afonso Celso não procurou o caminho mais fácil quando decidiu ingressar na política. Elegeu-se deputado sob a bandeira republicana, ideal que trouxera dos bancos acadêmicos, e agigantou-se na Câmara como paladino intransigente de todas as causas de interesse nacional. Seu livro Oito anos de Parlamento documenta muito bem essa bela página de sua vida e contém excelentes perfís de muitos de seus contemporâneos. A instabilidade política (conheceu nove ministérios, oito presidentes do Conselho, 54 ministros, doze presidentes da Câmara), a campanha da Abolição, os pródromos da República, a última sessão da Câmara na monarquia são objeto de páginas de grande interesse.

A pureza do seu civismo logo conduziu ao desencanto com a República recem-proclamada e Afonso Celso não hesitou em retomar a contra-mão – tornou-se monarquista. Esse mesmo civismo e entranhado amor à pátria inspiraram a obra que o consagrou: Porque me ufano de meu país – breviário cívico até hoje lembrado.

Romancista, teatrólogo, conteur, cronista, crítico, poeta de talento, sua obra mais marcante foi a tradução, em verso, de A Imitação de Cristo, que lhe terá valido o título de Conde papal, conferido por Pio X. Com a queda da monarquia, acompanhou o pai à Europa e escreveu-lhe mais tarde a biografia, bem como O Imperador no exílio (1893) e diversos opúsculos políticos: Aos monarquistas; O assassinato do Cel. Gentil de Castro; Contraditas Monárquicas, e outros.

Professor da Faculdade de Direito, reitor da Universidade do Rio de Janeiro, colunista do Jornal do Brasil durante mais de trinta anos, orador privilegiado, membro fundador desta Academia, desejo evocá-lo especialmente como Presidente-perpétuo do Instituto Histórico. Formidável trabalhador, é extensa a relação dos discursos que proferiu, não apenas nessa qualidade, mas com a credencial de pesquisador esclarecido de nossa história.

 

VI. O BARÃO DO RIO BRANCO (1845-1912)

Não fosse o pendor inato pelos estudos históricos, sobretudo de História Militar, jamais teria Rio Branco podido desempenhar o papel transcendente que o destino lhe reservara. Ainda estudante de Direito em São Paulo, produziu uma biografia de Luís Barroso Pereira, morto em combate contra navios argentinos em 1826. Pouco depois, uma biografia do Barão do Serro Largo, também morto em combate contra forças argentinas na batalha do Passo do Rosário. Não tinha mais de 21 anos quando publicou os Episódios da Guerra do Prata, que lhe abriram o caminho às minuciosas anotações a A Guerra da Tríplice Aliança, de Schneider.

Ex-aluno do Colégio Pedro II, Paranhos principiou sua vida independente substituindo o catedrático de Corografia e História do Brasil (Joaquim Manuel de Macedo) num de seus impedientos. Mais adiante, procurou divulgar o país no exterior e defender os nossos interesses, colaborando em revistas e enciclopédias, no que demonstrou, invariavelmente, notável conhecimento de Geografia e História do Brasil. Foi nesse contexto que produziu o Esquisse de l’Histoire du Brésil (1889), que Eduardo Prado qualificou de “arcabouço e o trama de uma larga história”, que infelizmente não chegou a escrever. Em 1930, graças ao empenho de Paranhos da Silva, sobrinho do Barão, e à colaboração de Max Fleiuss, que acrescentou os eventos do período republicano, o Esboço foi editado em formato de livro didático. Ao saudar o lançamento, João Ribeiro lembra que Rio Branco, modestamente, não ligava grande aprêço a esse trabalho feito às pressas em quinze dias: “A verdade, porém, é que esse esboço representava o estóico trabalho preliminar de muitos anos consagrados ao estudo da nossa história, e saiu, pois, na sua brevidade uma admirável e prodigiosa condensação de fatos, como só a podia elaborar um espírito igual ao seu.”

A simples idéia de compilar uma obra estritamente de consulta, árida e incolor como as Efemérides bastaria para ilustrar a paixão de Rio Branco pelo detalhe, pela exatidão da referência, pela disciplina da informação. O estilo, notou João Ribeiro, é apenas o da expressão prática e, com raras exceções, “quase de teor comercial ou matemático”. O manuscrito foi reconstituído e completado por Basílio de Magalhães, outro prestimoso sherpa da historiografia nacional, e editado pela Revista do Instituto Histórico.

Embora não sendo extensa – se excluirmos a dezena de volumes de memórias em defesa das nossas fronteiras – a obra escrita que nos deixou Rio Branco impressiona invariavelmente pelo seu elevado nível de erudição. As anotações à história da Independência merecem destaque pelo seu volume e qualidade. O relatório da comissão do Instituto Histórico que examinou o manuscrito de Varnhagen registra a existência de capítulos “em que os comentários do imortal Chanceler são mais copiosos que o próprio texto”.

Em seu discurso de posse, em 1956, Magalhães Júnior lembra que Rio Branco se agigantou por tal forma no cenário nacional que a impressão que ficou é a de que fora escolhido para que a Academia se beneficiasse com os reflexos do seu prestígio. Ora, não foi o que se deu: essa glória apenas despontava. “Eleito em ocasião em que se encontrava ausente do país e sem os benefícios de uma candidatura única”, recorda Magalhães, “foi este o verdadeiro pórtico de sua fama. Foi daqui que partiu o primeiro ato de reconhecimento nacional de seus altos méritos. Antes que Rodrigues Alves o chamasse para o Ministério, antes que o Congresso Nacional lhe proclamasse a benemerência, antes que as multidões o consagrassem com o seu aplauso, antecipando-se a tudo e a todos a Academia Brasileira de Letras o integrou em seus quadros, – e o fez quando esse homem avesso às convenções era ainda um continente rico de energias cívicas à espera de quem o descobrisse.”

 

VII. O CASO ROCHA POMBO

O destaque que dou a Rocha Pombo, em prejuízo do equilíbrio desta conferência, não envolve julgamento de valor. Dou apenas vasão à perplexidade que sempre me causou a sua obra – e certamente a muitos dentre vós. Como terá sido possível, materialmente possível a um professor substituto em nível municipal, vivendo modestamente desses proventos, produzir o que Rodolfo Garcia reconheceu tratar-se da “mais vasta, a mais considerável da nossa literatura, pela superfície imensa que cobriu, das origens do Brasil aos dias presentes”. Difícil imaginar como terá logrado captar e armazenar tanta informação e, bem ou mal, concatená-la em volumes sucessivos. Com efeito, produziu dez volumes em que o editor avaro logrou compactar 5.000 páginas in quarto, com tal economia de espaço que até as aberturas de parágrafo foram suprimidas. Dir-se-ia uma formatação desenhada especialmente para inculcar no leitor um desânimo invencível. Porém, e surpresa ainda maior, não foi o que ocorreu. “Se conferidas as estatísticas das bibliotecas” – é ainda Rodolfo Garcia quem o diz – “verifica-se que sua História do Brasil é, nessa classe, o livro mais consultado, o mais lido de todos.” Mistério total!

Depois de fazer literatura de ficção, poesias de inspiração romântica, jornalismo, além de redigir diversos ensaios sobre problemas brasileiros, tudo indicava que José Francisco da Rocha Pombo encontrara o seu caminho real na lexicografia quando decidiu enfrentar apaixonadamente o desafio de produzir um Dicionário de sinônimos da língua portuguesa. Ledo engano. O desafio maior ainda estava por vir. Eram os doze anos de dedicação integral, de corpo e alma, findos os quais o escritor paranaense surpreendeu o país com a mais extensa, copiosa, diria mesmo luxuriante História do Brasil.

Confesso que padeci para galgar a cordilheira Rocha Pombo. Informações preciosas, sim, mas dispersas e reclamando garimpo e paciência. O esforço do autor foi, certamente, gigantesco mas gerou também um oceano de trivialidades. Duas ou três amostras:

  • Na política nacional, dois partidos faziam jogo; destes, um estava sempre no ostracismo enquanto o outro governava.

  • O português era, sim, a língua oficial, segundo o Dr. Teodoro Sampaio como ainda hoje o espanhol no Paraguai. 

  • Passando-se, porém, ao Ocidente da Africa, o despotismo dos régulos é de uma fereza incrivel.

  • A agricultura estava muito adiantada no Peru. Cultivavam-se ali com muito gosto principalmente pomos e flores.

  • A piranha é o mais temeroso dos peixes carnívoros dos nossos rios. É de uma voracidade incrível. Tem tal gana de sangue que arrebata qualquer coisa vermelha que se lance na água.

Depois de cinco ou seis páginas sobre os antecedentes de Villegaignon, parte finalmente o Almirante, mas encontra ventos contrários. Comentário do historiador: “... e só não o quebrantou de todo porque aquele peito ia cheio de esperanças contra as quais nada podiam desilusões.” (Vol. 1, p. 176)

Aos 77 anos, frágil e alquebrado, negou-lhe o destino a satisfação de receber a investidura acadêmica – a morte o alcançou enquanto redigia o discurso de posse. Gustavo Barroso fez-lhe o elogio fúnebre em nome da Academia. Para a sua vaga seria eleito Rodolfo Garcia.

 

VIII. O CASO AFRANIO PEIXOTO

Impossível deixar de incluir, neste panorama uma referência especial à criação, por Afrânio Peixoto, da Biblioteca de Cultura Nacional, durante sua memorável presidência. Tomada a decisão, convocou Capistrano, Eugênio de Castro e Rodolfo Garcia para pedir-lhes colaboração na escolha das obras a publicar, bem como o preparo das respectivas apresentações e notas. Segundo o depoimento de Garcia, Capistrano acedeu prontamente e começou logo a distribuir as tarefas: a Eugênio de Castro deu o Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa, a Garcia a História de Pedro de Magalhães Gandavo, os Diálogos das grandezas do Brasil e os escritos de Fernão Cardim, tomando a si a organização dos Primeiros documentos brasileiros. Ao saírem, e como para justificar tão rápida aquiescência à solicitação de Afrânio, disse Capistrano: “Não sei negar nada a esse baiano, porque tem talento...”

Mesmo após deixar a presidência, Afrânio continuou responsável pela Comissão de Publicações, e a ele se deve a edição de vários volumes importantes, sobretudo no campo da literatura, sendo o mais notável o Florilégio da poesia brasileira, de Varnhagen, em três volumes, edição anotada por Rodolfo Garcia. O setor de biografia foi iniciado com o volume sôbre Castro Alves, por Afrânio Peixoto, seguido do Euclides da Cunha por Francisco Venancio Filho e toda a longa série que muitos dos presentes conhecerão. (Alberto Venancio Filho, Revista Brasileira, abril/junho 1997).

Rebatizada Coleção Afrânio Peixoto, em 1931, a seção de História propiciou a edição de obras fundamentais, não raro com notas e prefácios do próprio Afrânio. Vale destacar, além das já citadas, as Cartas jesuíticas, em três volumes; as Cartas do Brasil de Manuel da Nóbrega (1549-1660), as Cartas avulsas do Padre Joseph de Anchieta (1554-1591), este último com notas de António de Alcântara Machado.

Entranhadamente polígrafo, Afrânio deu vasão ao seu interesse pela história em diferentes livros, entre os quais a História da literatura geral, a História da literatura brasileira e, em 1940, culminando com a História do Brasil, ano centenário da restauração portuguesa. Em menos de duzentas páginas, Afrânio compôs uma síntese cristalina do nosso passado, sem uma só palavra inútil, à altura dos ensaios de Rio Branco e de Oliveira Lima, com a vantagem didática de excelentes sinopses ao fim de cada capítulo e profusão de mapas e retratos.

 

IX. PRIMEIRAS DÉCADAS

Antes de abordar o elenco das primeiras décadas, caberia aqui um parêntese, aparentemente digressivo, sobre o conceito de história, metodologia, doutrina historiográfica, para melhor situar os autores que iremos apreciar.

Southey e Varnhagen, bem como seus seguidores imediatos, padeceram todos da mesma limitação imposta pelo conceito de história que vigorou até o fim do século XIX e começo deste. Uma vez que o documento era considerado a própria História no nascedouro, a autenticidade documental equivalia à verdade por inteiro. Bastava, portanto, uma cuidadosa arrumação cronológica e sistemática dos textos para que a cadeia dos acontecimentos se reconstituisse quase automaticamente. Por outro lado, ao fazer a História gravitar em torno da noção de Estado, suas reconstituições se circunscreviam virtualmente ao quadro político-administrativo, à sucessão de soberanos, de governadores e altos funcionários.

Por muito tempo predominou a máxima do velho Ranke, arauto-mór da escola tradicional : não cabe ao historiador senão descrever as coisas “tal como se passaram” (wie ist es eigentlich gevesen). Fernand Braudel sustenta que embora Ranke acreditasse piamente nessa fórmula, o fato é que ela se apresentava, embora de maneira dissimulada, como uma autêntica filosofia da história segundo a qual a vida dos homens seria dominada por acidentes dramáticos ; pelas proezas de personagens excepcionais que simplesmente aparecem e se tornam, com frequência, senhores não apenas do próprio destino, mas também do destino dos demais... Quando Ranke usa a expressão “história geral”, o que ele tem em mente não é mais do que o entrecruzar dos destinos desses heróis, ou seja, falácia pura. (Fernand Braudel, Ecrits sur l’Histoire, I, 23)

No final do século passado, surgiu na Alemanha um vigoroso movimento renovador, sob a bandeira Kulturgeschichte, de rompimento com a historiografia tradicional. Imperativo que a retrospectiva histórica passe a abranger todas as formas de cultura, todos os setores de atividade, sem exceção. Já não basta o simples “tal como se passou” de Ranke. É preciso ir muito mais longe: “Como veio a suceder?” (wie ist es eigentlich geworden ?).

Precisamente no calor dessa controvérsia, desembarcou na Alemanha um jovem sergipano mandado pelo Governo estudar os programas de ensino na Europa. Chamava-se João Ribeiro. Comprou logo a briga, começou a ler, a se informar, a tomar notas e, inclusive, partido.

Seus mestres foram Riehl e Gustav Freytag, em cujas obras o povo deixa de ser elemento decorativo para se tornar o ator principal. A cultura passa a ser o centro, de onde o historiador, munido de objetiva angular, abrange todo o universo visual. João Ribeiro aproveitou sua estada na Alemanha para explorar esse horizonte. Percebeu o antagonismo entre a historiografia tradicional e a moderna, e fez a sua opção. De volta à pátria, produziu a sua magnífica e inovadora História do Brasil. Estamos na virada do século. Comemora-se o quarto centenário do descobrimento do Brasil. A rainha Victoria ainda está viva. O nosso país já tem ao seu alcance um compêndio moderno, lúcido, inovador, em suma, uma nova síntese.

Como, aliás, condenar o atraso dos historiadores brasileiros do fim do século passado e começo deste quando a França, naquele mesmo ano de 1900, ainda produzia uma Histoire de France como a de Lavisse, assim ridicularizada por Marc Bloch: “o leitor avança tropeçando de reino em reino ; a cada morte de príncipe, descrita com os detalhes próprios dos grandes acontecimentos, faz-se uma pausa...”

Devemos ter ainda presente que, mesmo na Europa, a História só se tornou matéria de ensino regular no século XIX, por muitos considerado o século fundador da História. Até então, não passava de uma disciplina hesitante entre arte literária e saber científico. Lembremo-nos, também, de que em 1849, por decisão do Imperador, o ensino de História do Brasil foi desligado da cadeira de História e Geografia no Imperial Colégio de D.Pedro II. (E se me permitem alargar o parêntese, recordarei que a disciplina foi inicialmente confiada ao professor da segunda cátedra de Latim, que era nada menos que o poeta Gonçalves Dias. Por duas aulas semanais, o futuro patrono da Cadeira 15 desta Academia perceberia 200$000 ao ano, somados à remuneração pelo ensino do Latim. Ao procurar, pressurosamente, como primeira providência, a History of Brazil de Robert Southey, na Biblioteca Pública da Côrte, o poeta soube que o único exemplar estava em poder do seu colega João Batista Calógeras, professor de História Média e Moderna. Como este demorasse em restituir o livro, o Imperador pediu providências ao Ministro dos Negócios do Império, Visconde de Monte Alegre, que as tomou. Esta nota de pé de página é um retrato eloquente das melhores intenções do poder público e da pobreza dos recursos então disponíveis.)

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Artur Silveira da Mota, Barão de Jaceguai (1843-1914), terá sido, talvez, o primeiro eleito na condição de expoente, a exemplo da tradição francesa, ou “excepcionalidade”, como então se dizia, encorajado por Joaquim Nabuco. Capitão de mar-e-guerra aos 26 anos, cobriu-se de glória ao forçar a passagem do Humaitá. Por essa razão, ao recebê-lo na Academia, Afonso Arinos não resistiu à hipérbole: “Antes de escrever as vossas páginas de história, vós fizestes, vós vivestes estas mesmas páginas.”

Seu discurso de posse revelou o homem de pensamento, subjacente ao homem de ação. Essa peça, que merece ser lida e meditada, ganhou notoriedade pelo parágrafo em que assim justifica a ausência do elogio protocolar ao seu antecessor, Teixeira de Melo: “...sou forçado a calar-me ... [por] não haver conhecido o homem nem a obra.”

Jaceguai deixou obra considerável: Organização Naval; Formação da Armada Brasileira; Quatro séculos de atividade marítima – Portugal e Brasil (1900), Ensaio histórico sobre a gênesis e desenvolvimento da Marinha brasileira (1903); cinco volumes de memórias sob o título De aspirante a almirante (1906-1917); Reminiscências da Guerra do Paraguai (1935). Foi redator da Revista Marítima Brasileira e diretor da Biblioteca da Marinha, Museu e Arquivo (1897).

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Gustavo Barroso (1888-1959), o mais jovem imortal, aos 35 anos, eleito por 23 votos contra sete de Rocha Pombo. Já tinha, então, a seu crédito, 17 volumes publicados, além de extensa bagagem jornalística. Mas o livro que logo o consagrou foi o primeiro, Terra do sol. Sua produção não cessou de crescer nos anos seguintes e ao longo de toda a sua vida, nas mais variadas províncias do saber, notadamente no tocante à literatura militar. Consta que um dia teria dito a Josué Montelo que se reunisse tudo quanto escreveu daria para mais de trezentos volumes.

Não só exuberância produtiva, mas invejável erudição, intensa pesquisa, análise segura de textos, coordenação inteligente de fatos e circunstâncias. Aprende-se muito nos seus livros sobre as guerras do Prata, em que o seu amor ao Brasil o terá levado a infletir discretamente, aqui e acolá, a imparcialidade do historiador.

Tendo abraçado o Integralismo, de corpo e alma, chegou a extremos de paixão, que vasou numa série de livros infelizmente dominados pelo anti-semitismo. Brasil, colônia de banqueiros; Sinagoga paulista; A maçonaria, seita judaica; Judaismo, maçonaria e comunismo; Reflexões de um bode, são exemplos dessa exacerbação que culminou com a divulgação de Os protocolos dos sábios de Sion. Sua História secreta do Brasil, cujos três primeiros volumes chegou a publicar, tem essa mesma deplorável inspiração.

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Quando Alberto de Faria (1865-1931) chamou a si a tarefa de compor uma biografia de Mauá, a vida desse grande brasileiro, nas palavras de Rodolfo Garcia “era página virada na memória das gerações modernas”. Com efeito, Alberto de Faria levou anos para concluir seu trabalho, mas foi compensado pelo aplauso geral com que o livro foi acolhido, e a que não faltou o placet mais difícil – o de Capistrano – que confidenciou a seu amigo João Lúcio de Azevedo, em carta guardada na Biblioteca Nacional: “O livro sobre Mauá tem muitas novidades e é contribuição preciosa para a história do Segundo Reinado.” Grau dez do mestre.

Ao reaprendermos o que fora Mauá, reaprendemos igualmente a extensão do nosso atraso. O Brasil de antes e de depois dele. Os primeiros trilhos, a primeira locomotiva do continente sul-americano – a Baronesa – (trilhos que Mauá planejou levar até às nações do Pacífico); a iluminação a gás; o abastecimento de água  o transporte urbano; a engenharia sanitária, com a abertura do canal do Mangue; a navegação dos grandes rios (primeiro navio a vapor a subir o Amazonas); a siderurgia; produção de tubulões para canalizar a água; indústria naval; cabo submarino para ligar a América do Sul ao resto do mundo – tudo idealizado e tocado por esse riograndense iluminado, fiel à palavra dada ao Brasil, na presença do Imperador, em 25 de março de 1854: “Não podemos parar.”

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Aos 19 anos, Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846-1938), o futuro Barão de Ramiz, com grandeza, surpreende com um livro de peso – O púlpito no Brasil. Formado em Medicina, tendo chegado a servir como cirurgião militar, sua vocação era, porém, o magistério. Helenista emérito, foi professor de Grego no Colégio Pedro II e de Química Orgânica, Zoologia e Botânica na Escola de Medicina do Rio. Feito preceptor dos príncipes imperiais, acabou privando da confiança do Imperador, que lhe confiou diferentes e honrosas missões.

Enquanto a maioria dos biógrafos se fixa em homens públicos ou personalidades de destaque, Benjamin Franklin Ramiz Galvão, ao contrário, devotou anos de sua vida e intensa energia para reconstituir, interpretar, dissecar a vida e pensamentos de Frei Camilo de Monserrate, um monge austero porém angustiado e em conflito permanente com a disciplina de sua Ordem, padecendo de constantes e prolongadas crises de consciência, causadas, talvez, por hipertrofia de espiritualidade ou, mesmo, um sério desajuste estrutural. Não será fácil imaginar o que terá fascinado o biógrafo nesse sábio acadêmico europeu que desembarcou no Brasil com sua pesada carga de malaventuranças e complexos (filho natural de uma italiana e do Duque de Berry). Um personagem tão mentalmente instável e irrequieto não merecia semelhante devoção de alguém tão previsível, metódico e convencional.

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Filho do Visconde de Taunay, primeiro ocupante da Cadeira 13, Afonso d’E. Taunay (1876-1958) optou pelas ciências físicas, de que foi professor nas escolas politécnicas do Rio e de São Paulo. O fato de seus pais terem contratado Capistrano de Abreu para ministrar-lhe lições de História do Brasil deve estar na origem do gosto que viria a se manifestar pelas pesquisas históricas.

Até se convencer de que sua autêntica vocação não era a de ficcionista, Afonso publicou, na França, Crônica do tempo dos Felipes (1910), reimpressa em São Paulo em 1926 sob o título de Leonor de Ávila. Embora romance, foi o que lhe abriu as portas do Instituto Histórico, onde foi julgado estréia auspiciosa. Em 1917, a Missão Artística de 1816 obteve a medalha de ouro do Instituto. A sorte estava lançada. A seguir, Capistrano teria convencido seu ex-aluno de que um só dos autos dos nossos inventários bandeirantes valia mais que uma grande ruma de cartas régias. Segundo Ivan Lins, foi esse conselho do mestre que o lançou na tarefa de reconstituição do nosso passado, em toda a sua complexa estrutura, isto é, focalizando não só o elemento dirigente, mas as bases econômicas e sociais. Daí em diante, Afonso não parou mais. A História geral das bandeiras paulistas rendeu onze volumes de detalhes sobre a nossa expansão territorial. Deu-nos, afinal, com o Tráfico africano no Brasil, um reconhecimento explícito de que foi o negro não só uma das vigas mestras do bandeirismo como a principal mão de obra em quase quatro séculos de nossa existência. A esses estudos seguiu-se a História do café no Brasil, esta literalmente exaustiva, em quinze volumes. Não foi sem razão o dito de Agripino Grieco: Afonso produziu às toneladas.

É procedente a crítica de que os volumes de Afonso contém transcrições textuais maciças de documentos, uns após outros, sem que o autor se lance ao trabalho de síntese. Dir-se-ia que, por vezes, a sua profunda honestidade o inibia, como se o documento, fonte primeira da verdade, devesse ser oferecido à livre interpretação do próprio leitor. É possível. Mas acho que ninguém poderá negar-lhe o mérito de haver documentado pela primeira vez, com luxo de detalhes, as caminhadas épicas dos bandeirantes. Nem que o manancial que ele represou não seja excelente matéria prima para os estudiosos das gerações seguintes.

 

X. DÉCADA DE TRINTA

A década de trinta, sem dúvida, foi a que assinalou o ingresso de maior número de historiadores, ou melhor, cultores da História: Alcântara Machado (1875-1941), Rocha Pombo (1857-1933), Rodolfo Garcia (1873-1950), Pedro Calmon (1902-1985), Oliveira Viana (1883-1951), Barbosa Lima Sobrinho (1897- ) e J.C. de Macedo Soares (1883-1968). Ao todo sete.

No centro do palco, uma figura irradiante: Pedro Calmon, em quem não se sabe o que mais admirar: se a elegância, a erudição, o dom de comunicação, a fabulosa retentiva de fatos, cifras e circunstâncias, ou o fascínio que lhe inspirava o fato histórico. Jovem provinciano que parte à conquista da capital, foi balisando o seu caminho com marcos de valor, no magistério, na política, na literatura, na imprensa, até desaguar no estuário da historiografia. Estuário que não abandonaria mais. A exemplo de Afonso Celso, creio que se identificou mais com o Instituto Histórico do que com a Academia. O Instituto passou a ser o seu posto de trabalho, o centro de suas atividades, o real fulcro de suas preocupações. Quantas vezes o encontrei em seu gabinete, curtindo um velho manuscrito, lendo ou comparando textos, frequentemente na companhia de Américo Lacombe, antípodas de temperamento, quase xipófagos pela paixão da pesquisa.

Ao suceder a Calmon na Academia Portuguesa da História, Josué Montelo – em discurso luminoso – assinalou que para os modernos historiadores brasileiros, sua obra não corresponderia à visão nova da História, mais filosofia da História do que História factual. Calmon optou pela história factual, “aquela que busca os vários caminhos da pesquisa para tentar defrontar-se com a verdade histórica. Toda a obra de Pedro Calmon tem de ser julgada à luz de sua opção como historiador”. E, em feliz definição: “A opção é o código do escritor.”

Ao pensar no prazer que sempre me proporcionou, ao longo dos anos, a leitura da obra de Calmon, ocorrem-me as palavras de Marc Bloch, linha dura da moderna metodologia: “Gardons-nous de retirer à notre science sa part de poésie.”

Quando alguém qualificou O rei cavaleiro de romance, Calmou o retificou, mas só em parte: “É a narrativa da sua vida brava e bizarra, com os contrastes do drama, a comédia, a tragédia e a epopéia, vistos por um novelista.”Alcântara Machado marcou bem a sua entrada nesta Casa com a frase que ficou famosa: “Paulista sou há quatrocentos anos.” A que acrescentou: “Só em minha terra, de minha terra, para minha terra, tenho vivido, incapaz de servi-la quanto devo, prezo-me de amá-la quanto posso. Amo-a com a ingenuidade e a cegueira inseparáveis do verdadeiro amor.”

Recebido por Afrânio Peixoto, em discurso não menos memorável, ouviu bela apologia de seu livro essencial, A vida e morte do bandeirante, e evocação de seus ascendentes:

“Sentistes e dissestes a obra formidável dos que, devassando o Brasil, lhe fizeram a periferia regional dilatada, há, debruçado sobre vosso ombro de escritor, a sombra ancestral de Machado d’Oliveira, bandeirante moderno que, pela ação, vos daria os hereditários acentos de evocação comovida... Esse livro vos conduz à Academia que vosso ilustre avô imaginou, para vós...”

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A publicação, em 1920, de Populações meridionais do Brasil, livro de sociologia aplicada à história, como que catapultou Oliveira Viana para o primeiro plano da elite intelectual do país. Ainda era extrema, àquela altura, a pobreza das nossas letras em matéria de interação de disciplinas, como a sociologia, a etnografia, a psicologia, ou seja, das disciplinas subsidiárias da história. Ainda eram novidade entre nós a antropogeografia de Ratzel, a antroposociologia de Lapouge, a psicofisiologia de Gustave Lebon e William James. Foi, portanto, trabalho pioneiro, geralmente aclamado, malgrado as ressalvas de Capistrano, que logo assinalou não haver o autor aprofundado certos aspectos da nossa formação, delineados pelo mestre em seus Capítulos de história colonial. “Magister dixit.” Sensível a essa crítica, Oliveira Viana se dispôs prontamente a preparar uma segunda tiragem.

De todos o mais identificado com o exercício do métier d’historien, o jovem professor fluminense escreveu, em 1918: “Ainda somos um dos povos que menos se estudam a si mesmos: quase tudo ignoramos em relação à nossa terra, à nossa raça, às nossas regiões, às nossas tradições, à nossa vida, enfim, como agregado humano independente.”

Seguiu-se um volume, basicamente de antropogeografia política, Evolução do povo brasileiro, porém de tudo quanto veio a publicar nos anos imediatos, a obra que faz pendant com as Populações é, sem dúvida O Ocaso do Império (1925) – análise equilibrada e imparcial dos acontecimentos que levaram à queda da monarquia.

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A grande lição de Barbosa Lima Sobrinho, pela qual será sempre lembrado, é a da coerência, da integridade e do amor ao país. Identificado, ao longo de toda uma geração como cabeça e alma da ABI, a que serve ainda com comovedora dedicação, e da qual é. de facto, presidente perpétuo, o Decano desta Academia produziu obra histórica, que desejo recordar: A língua portuguesa e unidade do Brasil; A comarca do Rio São Francisco; Presença de Alberto Torres, além de magistral trabalho sobre a Revolução pernambucana de 1817.

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Certamente mais identificado com a política e a diplomacia, a que serviu com dignidade e distinção, José Carlos de Macedo Soares deixou alguns estudos históricos dentre os quais destaco As fronteiras do Brasil colonial; Os falsos troféus de Ituzaingo; e Santo Antônio de Lisboa, militar do Brasil. Além de presidente desta Casa, dedicou particular interesse ao Instituto Histórico, que presidiu por vinte e nove anos.

 

XIII. AS ÚLTIMAS DÉCADAS

Foram igualmente ricas. Excluidos os acadêmicos vivos, afeitos às letras históricas, vale destacar Luís Edmundo (1878-1961), Roberto Simonsen (1889-1948), Luís Viana Filho (1908-1990), Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), Francisco de Assis Barbosa (1914-1991) e mais dois que seriam plenamente identificados com o métier d’historien: José Honório Rodrigues (1913-1987) e Américo Jacobina Lacombe (1909-1993).

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Quando Luís Edmundo publicou o seu grande painel do Rio antigo, sua veia literária foi mais celebrada que as cautelas do historiador. Mas, àquela altura – estamos em 1932 – isso ainda não fazia falta. O leitor era muito menos exigente do que hoje, e se contentou em se divertir com as pinceladas fortes que compoem a crônica de meio século desta cidade no tempo dos vice-reis.

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Roberto Simonsen, político e líder empresarial, faleceu quando discursava no Salão Nobre desta Academia para saudar o primeiro-ministro belga, Paul van Zeeland, em visita oficial ao Brasil. Sua História econômica (1500-1820), em dois volumes substanciosos, foi indubitavelmente uma contribuição valiosa, adiante do seu tempo entre nós. Pena que não houvesse continuado a sua obra, que cobre apenas o período colonial. No remate, resume o autor: “O Brasil-colônia nascera com a revolução comercial; o Brasil iniciaria seus passos paralelamente com a revolução industrial.”

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Personalidade harmoniosa, a de Luís Viana Filho, em que as preferências dos seus admiradores oscilam do político ao escritor, ao biógrafo, ao humanista, ao ser humano de escol. O necrológio de Josué Montelo teve esta expressão feliz : “Íntegro. Superior. Obra-prima do bom gosto de Deus.” (Jornal do Brasil, 12.6.1990)

Pelo conjunto de obra, o nosso maior biógrafo. “Príncipe dos biógrafos brasileiros”, pontificou certa vez Alceu de Amoroso Lima. E com razão. Extraordinária a aplicação de Luís Viana a esse gênero de expressão literária, a que se lançou com A vida de Rui Barbosa. Reflexo evidente, nesta primeira biografia, da inquietação do político militante, que procura pensar a história presente através de um acontecimento do passado, conforme confessou a Luís Navarro de Brito: “É uma obra intencionalmente política.” (Luiz Viana Filho, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978, pp. 9-24). Desencadeada a polêmica, Luís Viana Filho voltou gostosamente à carga com A verdade na biografia, em que se compraz em racionalizar as boas técnicas biográficas, escorado nos melhores mestres.

A biografia de Nabuco (1952), mais madura e melhor estruturada, assegurou a Luís Viana acesso triunfal a esta Casa. Entrada que disputou com onze candidatos, muitos dos quais de peso, como Leonídio Ribeiro, Magalhães Júnior, Augusto de Lima, Maurício de Medeiros. Cinco anos depois, com A vida do Barão do Rio Branco, formou-se a celebrada trilogia, evocadora dos três grandes estadistas do final do Império e início da Repúlica. A febre biográfica, porém, não o deixou. A despeito de intensa atividade política, concluiu A vida de Machado de Assis, que Josué Montelo apresentou como “o livro definitivo sobre o romancista das Memórias póstumas.” E em 1975, O Governo Castelo Branco, livro inevitavelmente polêmico. E ainda as Vidas de José de Alencar e de Eça de Queirós. Finalmente, já no lance final de sua vida, o que chamou de ensaio biográfico sobre Anísio Teixeira. Em todos os sentidos, um homem realizado.

Encerro estes parágrafos sobre Luís Viana com uma vinheta pessoal. 1968. Visita da rainha Elizabeth ao Brasil, que acompanhei por ser então embaixador em Londres. Escala em Salvador. Muito calor e um sol de rachar. Preocupado, o Governador Luís Viana abre um guarda-chuva para proteger a soberana, no que foi depois vivamente criticado. Sua resposta: “Era a única maneira de a Bahia fazer sombra ao Império Britânico...”

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Depois das palavras de Pedro Nava: “Escrever sobre Afonso Arinos de Melo Franco é como absorver um mundo”que poderia eu dizer-vos senão somar este breve registro ao louvor unânime e à aclamação irrestrita à vida e feitos desse ser humano de exceção? No escopo desta palestra, caberiam, de corpo inteiro, o ensaísta, o historiador, o biógrafo, o memorialista, o homem público. Sua Introdução à realidade brasileira, em 1933, embora de natureza política, já permitia antever a percée na historiografia que representou, poucos anos depois, o Conceito de civilização brasileira, livro avançado para a época, certamente inovador. Não tardou O índio brasileiro e a Revolução Francesa, fruto de intensa pesquisa e interpretação criadora, seguido, em 1938, pela Síntese da História Econômica do Brasil. Mais adiante, a faixa de produção historiográfica seria enriquecida com Terra do Brasil – Um soldado do Reino e do Império, sobre o Marechal João Crisóstomo Callado, seu antepassado; Desenvolvimento da civilização material no Brasil e uma História do Banco do Brasil, em que projeta, como pano de fundo, a própria história financeira do país. Mas as obras maiores ainda estavam por vir: Um estadista da República, sobre Afrânio de Melo Franco e seu tempo, e Rodrigues Alves – Apogeu e declínio do Presidencialismo.

Gilberto Freyre traçou o seguinte paralelo entre a biografia do pai de Afonso Arinos e o livro de Joaquim Nabuco:

Um Estadista da República era um livro barroco e Um Estadista do Império um livro predominantemente clássico, contrastando na diferença entre as técnicas da historiografia nas duas épocas:

Uma, a história grandiosa, dramática, fixadora das culminâncias entre os fatos e os homens, drapejada de reminiscências antigas com personagens solenes, e togados, como heróis racinianos. Outra, a história mais copiosa que grandiosa, cuja fôrça está na solidariedade dos pequenos fatos e não na emoção isolada dos grandes ; história que é rio e não montanha, história mais interpretativa do que julgadora. Diferença parecida com a que os historiadores literários fazem entre a época ciceroniana e pós-ciceroniana, idade de ouro e a prata.”

Em seu discurso de posse, Alberto Venancio assinala que Afonso Arinos concordara com a análise de Gilberto Freyre: “Para ele o Império era clássico e a República barroca. Os dois livros não podiam ser diferentes do que são.”

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Embora costumasse dizer que em tudo o que fazia estava o traço do repórter, o fato é que Francisco de Assis Barbosa logrou dar vasão, com extrema aplicação, à vertente mais genuína de sua vocação, que foi a de crítico e historiador literário. Ao seu interesse pela República Velha devemos os relatos de inúmeros fatos e situações que foi amealhando ao longo do tempo, mas sem descurar as idéias gerais, como, por exemplo, o antagonismo entre a tendência feudal dos velhos caciques e a preservação, no longo prazo, da unidade nacional.

A difícil arte do prefácio foi por ele cultivada com grande maestria e erudição: foge às palavras habituais de circunstância para incidir, de rijo, na substância mesma do livro, suas proposições e conclusões. Valem como verdadeios ensaios.

Mas a dimensão maior de Francisco de Assis Barbosa foi alcançada no engenho de sua composição biográfica. A vida de Lima Barreto é, sem dúvida, a sua obra prima. Em JK – Uma revisão na política brasileira (projeto infelizmente inacabado), a arquitetura é inteiramente diversa; o horizonte visual se expande em saga de quatro gerações – a de Kubitschek, a de seus pais, a de seus avós e a dos seus bisavós – o que permitiu ao autor desfraldar um pano de fundo que remonta à Independência e vai até o grand finale na Praça dos Três Poderes.

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Em 1940, aos 27 anos, José Honório Rodrigues publicou com Joaquim Ribeiro a Civilização holandesa no Brasil, primeiro prêmio de erudição desta Academia, o que lhe entreabriu a porta à consagração dos 33 votos com que foi eleito em 69. Escolhido bolsista nos Estados Unidos, pôde conviver com mestres de primeira grandeza e beneficiar-se das facilidades de pesquisa e formação. Era o impulso que lhe faltava e de que se valeu intensamente.

Basicamente cientista social, a um tempo teórico e militante, José Honório cedo se transformaria em cruzado e apóstolo de uma “história combatente”, movido por um revisionismo veemente. Veemente, porque tudo nele foi afirmação viril e passional.

Deixou não apenas obra extensa e sólida, de projeção internacional, mas seguidores fiéis e discípulos aguerridos que formaram o chamado “Grupo José Honório Rodrigues”, particularmente ativo na Paraíba.

Sua trilogia de base – Teoria da História do Brasil; A pesquisa histórica no Brasil; e História da História do Brasil teve como pendant uma segunda, em que reuniu o essencial de suas idéias histórico-políticas: Aspiraçõe nacionais; Conciliação e reforma no Brasil; e Interesse nacional e política externa. Mas é em uma terceira trilogia, que completa a arquitetura do essencial de sua obra, que o leitor encontrará, em plenitude, a sua visão da História, as raízes da sua interpretação crítica, do seu “participacionismo” historiográfico. Penso que entre as suas inspirações de base, bem poderia estar a máxima de Gehrard Ritter: “Quem quiser fazer história será obrigado a julgar.”

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Também figura singular, Américo Jacobina Lacombe. Não era só Afonso Arinos que, em caso de dúvidas, costumava dizer: “Vou consultar o Américo, que sabe tudo.” Ouvi essa mesma frase de outros, e eu mesmo, em diversas ocasiões, corri a pedir-lhe ajuda, uma pista, uma indicação de livro, um conselho prático. Seu traço marcante era a integridade tranquila, associada a memória invulgar e intensa paixão pela pesquisa histórica. O gosto do detalhe, porém, jamais empanou a sua capacidade de apreciar o conjunto, do que deu prova em Um passeio pela História do Brasil e no pequeno volume Brasil, que produziu para o Instituto Pan Americano de Geografia e História, na mesma linhagem do Esquisse de Rio Branco.

Obra maior foi a sua Introdução ao estudo da História do Brasil, notável exemplo de erudição e disciplina no trato da informação, destinado a balisar o caminho dos futuros pesquisadores. Todo esse lastro de cultura, de experiência acumulada na faina diária em arquivos e bibliotecas, foi mobilizado para a missão que realmente marcou a sua vida – a direção da Casa de Rui Barbosa. Ao longo de décadas, dedicou-se à edição das Obras Completas de Rui Barbosa, com previsão de alcançar 168 volumes, enriquecidos de notas, observações e comentários. Bastaria a coordenação dessa tarefa gigantesca para assegurar a Lacombe um lugar entre os mais proeminentes da nossa historiografia.

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Chego ao fim. À natural frustração dos ouvintes devo somar a minha própria, por não me haver detido em algumas figuras de minha predileção, não membros da ABL, com obra inestimável, a algumas das quais devo o gosto pela pesquisa histórica. Pena não ter evocado Alfredo do Vale Cabral (1851-1894), o primeiro a organizar a seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, responsável pelos Anais da Imprensa Nacional, 1808-1822 (1881), pela catalogação e publicação de tantos documentos históricos. Pena ainda não ter evocado os grandes nomes da crítica literária – portanto história da literatura – Sílvio Romero, José Veríssimo e Afrânio Coutinho, nem tampouco a figura estelar de Euclides da Cunha, de quem fiz o elogio ao tomar posse da Cadeira no 7. Pena, finalmente, ter de apenas mencionar Alberto Rangel, Basílio de Magalhães, Tobias Monteiro, Octavio Tarquínio de Sousa, José Maria Bello, Pandiá Calógeras, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Helio Viana.

Poderiam talvez ser objeto de uma outra conferência, em um dos próximos centenários, mas não estou certo de que os senhores estejam dispostos a esperar.

Certamente terei pecado por omissão. A mim mesmo já ocorreram várias. Um autor, por exemplo, que me teria dado um enorme prazer lembrar – e aos ouvintes ainda mais – é Mendes Fradique, o mestre humorista que enriqueceu as nossas letras com a sua celebrada História do Brasil pelo método confuso...

 

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Os Historiadores - Centenário da ABL