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Os Dramaturgos

Sobre: 

Qualquer estudioso da literatura e do teatro brasileiros que não se tenha dado ao trabalho de fazer o levantamento da obra dos membros da Academia Brasileira de Letras se espantará de que, entre os quarenta fundadores, dezesseis fossem dramaturgos. Na maioria dos casos, escrever peças não representou, de fato, a sua ocupação principal. Considerando, porém, o juízo severo do historiador José Veríssimo, outro dos acadêmicos que participaram da fundação deste silogeu centenário, segundo o qual “Produto do Romantismo, o teatro brasileiro finou-se com ele”, é admirável que, em 1897, tantas figuras ilustres estivessem de alguma forma vinculadas à dramaturgia.

Menciono de imediato seus nomes, observando a ordem das Cadeiras: Coelho Neto, Filinto de Almeida, Aluísio Azevedo, Valentim Magalhães, Urbano Duarte, Visconde de Taunay, Olavo Bilac, Salvador de Mendonça, Medeiros e Albuquerque, Machado de Assis, Garcia Redondo, Guimarães Passos, Joaquim Nabuco, Artur Azevedo, Afonso Celso e Graça Aranha. Esse número continua a surpreender-nos, se nos lembrarmos de que, em 1898, o próprio Artur Azevedo escreveu: “São eles, os teatrinhos (particulares), que fazem com que ainda perdure a memória de alguma coisa que já tivemos; são eles, só eles, que nos consolam da nossa miséria atual. Esta é a verdade que hoje reconheço e proclamo. Do amador, pode sair o artista; do teatrinho pode sair o teatro.”

Não se estranhará, conhecendo a relação dos fundadores, que os patronos, entre os quais se acham muitos românticos, surjam mais abundantes, alcançando dezenove, se se admitir a presença de Junqueira Freire, autor de um drama inacabado (Frei Ambrósio). Também pela seqüência de Cadeiras, cabe citar: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Cláudio Manuel da Costa, Gonçalves de Magalhães, Fagundes Varela, França Júnior, Franklin Távora, Gonçalves Dias, Joaquim Manoel de Macedo, Joaquim Serra, José de Alencar, Junqueira Freire, Laurindo Rabelo, Manoel Antônio de Almeida, Martins Pena, Araújo Porto-Alegre e Francisco Adolfo Varnhagen. Os patronos incluem vários dos criadores e consolidadores da literatura teatral brasileira.

Numa resenha sobre os dramaturgos, prefiro ater-me aos principais, a partir dos fundadores, já que a tentativa de contemplar todos correria o risco de parecer mera catalogação. Não obstante a “imortalidade” atribuída aos acadêmicos, a História costuma ser implacável na decretação da permanência dos valores, sem esquecermos que Shakespeare demorou dois séculos para ser redescoberto e que a Academia comemora apenas o primeiro centenário. Dos fundadores, são dramaturgos mais lembrados, hoje em dia, Artur Azevedo, Coelho Neto e Machado de Assis, lamentando-se a ausência de um elenco oficial ou particular que, à maneira da Comédie Française, se especializasse em reviver os textos do passado.

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A propósito de Artur Azevedo (1855-1908), não tenho dúvida em repetir que se trata da maior figura do teatro brasileiro – não o maior dramaturgo, por certo, mas aquele que, pela obra dramatúrgica, feita de comédias, dramas, revistas, burletas, paródias e traduções, além do imenso trabalho de crítico e animador, preencheu o nosso palco, nas três últimas décadas anteriores à sua morte.

Amor por anexins, que já havia escrito e representado em seu Maranhão natal, antes de chegar ao Rio, com dezoito anos de idade, inspirou-se em Les Jurons de Cadillac (As pragas do capitão), de Pierre Berton, e lhe é muito superior, pela graça contínua dos provérbios, desencadeados pelo solteirão Isaías, na faina de conquistar a viúva Inês. Essa peça em um ato traz em germe muitas das características do autor. Se ele partiu, com freqüencia, de obras alheias, renovou-as com verve inacreditável, conferindo-lhes o selo de brasilidade, o diálogo espontâneo e o perfeito encadeamento das situações.

Queixou-se Artur Azevedo de que vários de seus textos ambiciosos não conheceram o favor da platéia, obrigando-o a fazer concessões, na busca da sobrevivência. A Almanjarra só foi levada quatorze anos depois de escrita. Para montar A jóia abdicou dos direitos de autor. O badejo deixava vazio o teatro. O retrato a óleo não passou de meia dúzia de récitas. E Fonte Castália, apesar da boa recepção por parte da imprensa, não foi além de quatorze espetáculos. A crítica julgava O dote a melhor obra do autor, ainda que sua trama fosse discutível, sob o prisma psicológico. A inconsciência da mulher, que faz despesas incontáveis em função de um dote já gasto, só tem paralelo na fraqueza do marido, que se deixa ingenuamente arruinar. Os caracteres nunca foram o forte de Artur Azevedo.

Em compensação, vencido o preconceito que provocam as obras ligeiras, as revistas de ano, em que são revividos os acontecimentos marcantes do ano anterior, e sobretudo as burletas, em que a trama ficcional se mescla à música , passaram a constituir o acervo mais representativo do gênio maranhense. Nesse último gênero, consideram-se particularmente felizes A Capital Federal e O Mambembe.

A Capital Federal, reelaborada ficcionalmente da revista de ano O Tribofe, encanta a platéia, nas sucessivas reapresentações, desde a estréia em 1897. Do original, o autor retirou os aspectos circunstanciais, dando maior ênfase à visita da família de roceiros de São José do Sabará ao Rio de Janeiro, cujos costumes eram tão diferentes dos seus. A quase totalidade dos mineiros se desagrega na Corte, pintada na sua beleza extraordinária e ao mesmo tempo fonte inevitável de pecado. As palavras finais do fazendeiro: “É na roça, é no campo, é no sertão, é na lavoura que está a vida e o progresso da nossa pátria” – apoteose à vida rural – não escondem o deslumbramento do provinciano com as maravilhas da antiga Capital da República.

Um dos mais belos cânticos de amor ao teatro é como se pode definir O Mambembe, outra obra-prima de Artur Azevedo. Para quem não conhece o significado do título, o próprio texto esclarece: “Mambembe é a companhia nômade, errante, vagabunda, organizada com todos os elementos de que um empresário pobre possa lançar mão num momento dado, e que vai, de cidade em cidade, de vila em vila, de povoação em povoação, dando espetáculos aqui e ali, onde encontre um teatro ou onde possa improvisá-lo. Aqui está quem já representou em cima de um bilhar!” Se há episódios difíceis nessa constante peregrinação, sendo até empenhada a mala, para pagamento da hospedagem em hotel, outras portas se abrem ao elenco, trazendo-lhe imprevistas alegrias. A peça faz do teatro uma criação maravilhosa de cada instante. E basta um espetáculo bem recebido para pagar todos os revezes anteriores.

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Morto Artur Azevedo em plena tarefa de dirigir o Teatro da Exposição Nacional, quando encenou, em menos de três meses, quinze originais brasileiros, o cetro teatral transferiu-se para outro maranhense, Coelho Neto (1864-1934), mencionado pelo historiador Sílvio Romero como o responsável pela “reação idealístico-simbolista”. As perto de três dezenas de peças que escreveu, cobrindo várias épocas e estilos, revelam valor desigual, e crescem de interesse na medida em que se inscrevem na tradição da comédia de costumes, à qual ele imprimiu um colorido particular do Simbolismo.

Uma influência ibseniana cabe ser detectada em A muralha e O dinheiro, que fixam a libertação feminina, em face de problemas conjugais. Ressalvados o discursivo e o melodramático dos diálogos, os textos guardam uma certa eficácia. Lamentavelmente A mulher, título que sugeriria um tratamento superior do tema, se perde na brincadeira de uma comédia em um ato, em que, opondo-se ao feminismo da neta, a avó, de postura convencional, perfilhada pelo autor, chega a afirmar: “Eu insisto em dizer que a mulher deve contentar-se com a sua força, que é feita de um conjunto de fraquezas. A mulher deve ser meiga, crente, resignada, amorosa, caritativa e dócil.”

Quebranto, sem dúvida a melhor peça de Coelho Neto, une o filão da comédia de costumes a um conto cujo simbolismo se imiscui na trama. A firmeza moral do paulista em O diletante de Martins Pena e o mineiro Eusébio em A Capital Federal, entre outras personagens, transmudam-se aqui no rico seringueiro Fortuna, apaixonado pela jovem carioca Dora. A não-consumação do matrimônio não deve ser levada à conta de apego ao tabu da virgindade, mas recusa do papel de enganado. É a sociedade que recebe a condenação, pela venda da mulher ao dinheiro, pelo culto da aparência. A lenda simbólica, narrada pelo seringueiro, tem como protagonista uma jovem que casou impura. Há “uma flor que só nasce em água muito limpa e tem a virtude de murchar e morrer logo se uma moça... que não é pura, pega nela”. Essa flor é segredo de caboclo. Fortuna não se vingará de Dora, a quem deseja a felicidade. O quebranto passou.

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A dramaturgia de Machado de Assis (1839-1908) é mais um produto da mocidade do primeiro presidente da Academia e maior figura da literatura brasileira. Ainda que, ao longo dos anos, ele não tenha abandonado de todo a atividade teatral, o amadurecimento ditou-lhe a admirável saga do romance e do conto, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. Iniciando-se no palco na década de 60, em 1873, no estudo “Literatura brasileira: Instinto de nacionalidade”, já se mostrava desalentado com o teatro, sobre o qual sentenciou: “Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?”

Não teria Machado sentido forças para modificar a situação, ou simplesmente intuía ser outro seu caminho vocacional? A verdade é que seu juízo severo sobre o teatro brasileiro da época representou também a abdicação de realizar obra dramática mais consistente.

Por isso tendeu a generalizar-se a opinião de Quintino Bocaiúva acerca de O caminho da porta e O protocolo, suas duas peças de estréia: “As duas comédias são para serem lidas e não representadas.” O crítico mostrou-se atilado, ao observar, ainda na mesma carta, que as duas obras, “modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa  riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção”.

O destino das peças, em geral curtas, para saraus literários e artísticos, e não para o profissionalismo do palco, talvez explique o seu vôo tímido, longe de um empenho verdadeiro. Por outro lado, o propósito de ilustração de um provérbio, à maneira de Musset, poupa os textos de exageros tão comuns no melodrama ou na escola realista. O bom gosto nunca é ferido, a ironia fina do ficcionista transparece em todas as cenas, não se apontará na dezena e meia de quase exercícios nenhum pecado mortal contra o teatro.

Quase ministro, que provavelmente inspirou Caiu o Ministério, uma das melhores obras de França Júnior, contém o ceticismo e a amargura que se apurarão nos romances da maturidade. Um grupo de aduladores, mobilizado à simples notícia da possível nomeação de um candidato, passa-se, sem a menor cerimônia, para a corte de quem foi escolhido. Por enquanto, apenas uma crítica ligeira das fraquezas humanas, e não a visão irremediavelmente pessimista dos últimos anos.

Foge ao pessimismo, entretanto, a última experiência dramatúrgica de Machado, e uma das mais felizes – Lição de botânica, publicada pela primeira vez em 1906, no volume Relíquias de casa velha. Aí, ganha novo colorido a psicologia feminina, nas vestes de uma viúva jovem que, pela certeira objetividade, toma a palavra do pretendente tímido para fazer em seu favor, à tia, o pedido de casamento. Essa peça, como já provou mais de uma vez, fica de pé no palco, embora sem muita ambição. Na pior das hipóteses, é lícito considerar que a dramaturgia machadiana da juventude ajudou a afeiçoar um instrumento literário do romancista adulto.

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João do Rio, pseudônimo do carioca Paulo Barreto (1881-1921), jornalista e cronista brilhante, não o foi menos no campo teatral, em que a A bela madame Vargas fez expressiva carreira, a partir da estréia no Teatro Municipal do Rio, em 1912, ainda que o debate da protagonista entre um amor que finda e outro que desponta tenha descambado no melodrama. Dos vários textos deixados pelo autor, entre os quais Última noite, Que pena ser só ladrão!, Encontro e Um chá das cinco, aquele que mereceria uma grande montagem, capaz de consagrá-lo junto à platéia atual, se chama Eva.Estreado em São Paulo, em 1915, com grande êxito, ele reúne as melhores qualidades do dramaturgo. Sob a aparência de futilidade de uma reunião elegante numa fazendo do interior paulista, em que os criados se dirigem aos patrões e hóspedes em francês, Eva, cujo nome é mais do que simbólico, deseja pôr à prova a autenticidade do sentimento do pretendente Jorge. Num jogo perigoso, ela se proclama a autora do furto de uma jóia preciosíssima, que exigiria a intervenção da polícia. Disposto a sacrificar-se pela amada, Jorge assume a responsabilidade do ato. Mas não será necessário levar às últimas conseqüências o heroísmo, porque se descobre a identidade do ladrão. A prova foi decisiva – triunfou o amor. Tivesse João do Rio vivido além dos quarenta anos, seu talento seria por certo lembrado por muitas outras obras-primas.

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Autor de mais de trinta peças, além de diversos ensaios sobre o nosso teatro, Cláudio de Sousa (1876-1954) marcou o palco em 1916, com a peça Flores de sombra, estreada em São Paulo, no desempenho de Leopoldo Fróes. A Primeira Grande Guerra de 1914 a 1918, como se sabe, distanciou-nos da Europa, levando-nos a questionar os valores da nacionalidade. O dramaturgo paulista, na mesma trilha dos predecessores que se debruçaram sobre a realidade do País, fez um cântico de louvor às virtudes campestres, aos troncos tradicionais da família brasileira, contra o cosmopolitismo degenerescente da Capital. A fábula ajudava a fortalecer a austeridade do velho Brasil.

Flores de sombra tem uma sólida estrutura dramática, semelhante à dos sentimentos que procura exaltar. Na fazenda paulista de “mobiliário antigo de carvalho, sólido e pesado, que vai de geração a geração”, a mãe prepara-se para receber o filho, que vive no tumulto da metrópole e namora a filha de um ministro. Ele pensa modernizar o ambiente para receber os hóspedes: a moça, sua mãe e um companheiro de infância, que dilapida a fortuna herdada. A convivência na fazenda denuncia a pouca afinidade dos namorados, enquanto um amor da infância se imporá de novo. Ao ver o rapaz, ela deixa cair um vaso de begônia, planta definida como “a alma da saudade. Não gosta da luz, quer sempre a sombra em que possa meditar”. Se a namorada citadina era, no dizer da mãe, “uma flor muito vistosa, que respirava porém no ar viciado de uma estufa”, o amor da infância é “a flor de sombra, modesta, rasteira, que a tempestade respeita! Com um pouco de terra nova, ela reviverá...” Impõe-se o simbolismo da comparação, em benefício do sentimento duradouro.

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Curiosamente, também em 1916 o poeta Guilherme de Almeida (1890-1969), em colaboração com Oswald de Andrade, publicou o volume Théâtre Brésilien, contendo as peças Mon coeur balance e Leur âme, de atmosfera simbolista. Pelas informações biográficas, sabe-se que as histórias tratadas nos textos pertencem à experiência vivida por Oswald e não por Guilherme. Mas, como houve parceria, é justo assinalar a colaboração do Príncipe dos Poetas Brasileiros. Em ambas as obras, em clima crepuscular, dois homens se seduzem pela mesma mulher, que acaba por abandoná-los, sem declarar o motivo. Eu não hesitaria em mencionar esse teatro escrito em francês, com o intento de fugir das limitações internacionais de nossa língua, ao lado dos poucos bons exemplos cênicos do nosso Simbolismo.

Embora tanto os parceiros Guilherme e Oswald, como Graça Aranha, participassem da Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922, o teatro esteve ausente de suas manifestações. Qualquer conjetura a respeito seria hoje mera especulação, porque os organizadores do acontecimento, ao que me consta, não se manifestaram sobre o assunto. É lícito supor que, sendo o teatro uma arte compósita, que reúne literatura, cenografia, indumentária e desempenho, para só se mencionarem os elementos mais visíveis, exigiria longo e articulado preparo, para se obter uma completa renovação do espetáculo.

Essa renovação aproximou-se dos postulados estéticos do Modernismo no Teatro de Brinquedo, fundado por Álvaro Moreyra (1888-1964), membro da ABL, e sua mulher, Eugênia Álvaro Moreyra. Adão, Eva e outros membros da família, a primeira peça de Álvaro, encenada em 1927, já havia tido publicação em 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna. No livro de lembranças As amargas, não, o autor sintetizou o sentido de sua tentativa: “Teatro de Brinquedo... Eu queria um teatro que fizesse sorrir, mas que fizesse pensar, um teatro com reticências. O último ato não seria último ato... Justamente eu queria o Teatro de Brinquedo, que tinha uma legenda de Goethe: – A humanidade divide-se em duas espécies: a dos bonecos que representam um papel aprendido, e a dos naturais, espécie menos numerosa, de entes que vivem e morrem como Deus os criou... – Um teatro de bonecos? Sim. Mas supondo que nessa estação do século XX, os bonecos, de tal maneira aperfeiçoados, dessem a sensação de gente de carne, osso, alma, espírito... Por que de brinquedo? Porque os cenários imitavam caixas de brinquedos, simples, infantis. [...] O Teatro de Brinquedo fez a revelação de Eugênia, e dele, com ela, partiu o evangelho da poesia nova.”

O pioneirismo de Adão, Eva e outros membros da família encontra-se na escolha de problemas a personagens, distantes daqueles que freqüentavam o nosso palco. O diálogo vivo, telegráfico, só tinha paralelo na comédia ligeira. Na aparência de divertimento inconseqüente, a peça enfrenta uma das contradições da sociedade em que vivemos: a mudança de um mendigo e de um ladrão em figuras respeitáveis da classe dirigente – um, capitalista, e outro, dono de jornal.

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Não descarto a possibilidade de que o texto de Álvaro Moreyra tenha sido o ponto de partida de Deus lhe pague, a peça mais famosa de Joracy Camargo (1898-1973), também membro da Academia. Aliás, Joracy participou do elenco de Adão, Eva e outros membros da família, junto com outros nomes que se afirmaram no teatro ou em outras atividades. Em Deus lhe pague, estreada em 1932, no desempenho de Procópio Ferreira, que realizou mais de dez mil apresentações, dialogam dois mendigos, e um deles, com o resultado da esmola, leva uma vida dúplice de rico. As implicações da trama, em que se menciona Marx, valeram à peça o título de iniciadora do “teatro social” no Brasil.

Constranjo-me em comentar Deus lhe pague, porque a considero uma súmula de equívocos. Desde as peripécias totalmente inverossímeis, ao discutível teor literário, que se socorre de frases feitas e desemboca em subfilosofia. A ela prefiro, por exemplo, Maria Cachucha e Anastácio, que, passíveis também do mal da inverossimilhança, têm os outros defeitos atenuados. A personagem Maria Cachucha foi rica, depois viveu como louca na miséria das ruas e de súbito transformou-se na governanta de um milionário solteirão. Já o banqueiro Fernando é vítima de falência pouca esclarecida, volta para a prisão porque, em liberdade condicional, bebeu, e no desfecho é de novo preso, suspeito do furto de uma igreja. Apelidado Anastácio, tendo perdido o nome, a mulher, a irmã e os amigos, apesar de tudo, não perdeu a fé...

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Muitos outros acadêmicos escreveram para o teatro, nas últimas décadas, a maioria tendo feito da literatura dramática uma experiência lateral, no conjunto de sua obra. Cito, pela ordem das cadeiras: Goulart de Andrade, Marques Rebelo, Augusto de Lima, Adonias Filho, Luís Guimarães Filho, Ribeiro Couto, Octavio de Faria, Menotti del Picchia, Vicente de Carvalho, Paulo Setúbal, Ramiz Galvão e Luís Edmundo.

Predecessor de Joracy Camargo foi Viriato Correia (1884-1967), representativo de duas tendências de nossa dramaturgia: a comédia de costumes, de larga tradição, e a peça histórica, estimulada pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, no período do Estado Novo.

Exemplo da primeira é a peça de costumes sertanejos Juriti, com música de Chiquinha Gonzaga, e em que teve seu primeiro grande êxito, em 1919, no papel de Zé Fogueteiro, o ator Procópio Ferreira. Viriato define-se como verdadeiro homem de teatro, que sabe construir grandes painéis dramáticos, criando suspense permanente nos conflitos, por personagens bem talhadas.

Em Juriti, pinta-se o cotidiano de uma vila do interior, com as maledicências costumeiras, a divisão tradicional entre conservadores e liberais, a chegada ao Rio de Janeiro de dois jovens e ainda brincalhões bacharéis em Direito, a jovem faceira que dá título ao texto e, decidida nos seus propósitos, rompe o namoro com quem duvidou dela e transfere o amor para o humilde Corcundinha. Até um bumba-meu-boi Viriato incorpora à sua história.

Indagado, cinco anos antes da morte, qual era a peça preferida entre as muitas que produziu, o autor respondeu: Marquesa de Santos, representada em 1938, pela Cia. Dulcina-Odilon, com três números musicais de Villa-Lobos. Trata-se de “comédia histórica”, também estimulada pela política do recém-criado Serviço Nacional de Teatro no Estado Novo, examinando numa ótica positiva personagens que pertenceram realmente ao nosso passado.

D. Pedro I se caracteriza pelos arroubos masculinos de quem não podia ver saias – e é assim que, entre outros dados, perdura sua imagem popular. Chalaça se define como cortesão típico. Quanto à Marquesa, Viriato tratou-a com uma dignidade que, se embelezou o conceito da mulher, favoreceu também a composição da personagem. Além de inteligente, ela revela caráter e, quando o temperamento a levaria a não retornar do Rio a São Paulo, a fim de permitir que se abrisse o caminho para o novo casamento do Imperador viúvo, não lhe custa gritar para José Bonifácio que “não vacilou um instante entre a sua felicidade e o bom nome do Brasil”. Abandonará a Corte, embora sonhasse casar com D. Pedro I, para não manchar na Europa o nome do País. A saída de cena da Marquesa, deixando cair o lenço, se completa com uma réplica sugestiva: “É para que ele (o Imperador) enxugue as lágrimas de saudade que há de chorar por mim!”

Um ano depois, em 1939, Viriato Correia lançou no Teatro Municipal do Rio outra comédia histórica – Tiradentes –, utilizando igualmente música de Villa-Lobos e em “récita cívica” patrocinada pelo Serviço Nacional do Teatro. A ação estende-se de 1789 a 1792, em um salão numa chácara de Vila Rica, cenário da Conjuração Mineira, à sala de audiência no palácio dos Vice-Reis, até, depois de outros ambientes, a sala do tribunal, no Rio de Janeiro, onde foram julgados os Inconfidentes.

Suponho que, preparando o desfecho, o dramaturgo exprime bem seu pensamento, quando Bárbara Heliodora diz a Tomás Antônio Gonzaga por que os Inconfidentes se acham na Conjuração: “Por lirismo. Puro lirismo de poetas. Pura voluptuosidade de intelectuais. Requinte de sibaritas. Com Tiradentes o caso é outro: Tiradentes é o símbolo do povo. Traz no peito o grito da alma popular. É o único que, na realidade, sente a revolução. Talvez seja o único capaz de morrer por ela.”

Daí a fragilidade de todos no interrogatório, tendo Gonzaga qualificado Tiradentes nestas palavras: “É um visionário, um fanático, um desvairado, um louco.” Em contraste com esse comportamento, Tiradentes cresce em heroísmo, jogando nos próprios ombros toda a responsabilidade pela Inconfidência. Seus vivas à liberdade e à República encerram a bem elaborada peça.

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Na mesma linha da comédia e dos textos de fundo histórico inscreve-se a dramaturgia de Raymundo Magalhães Júnior (1907-1982), tão expressiva como a sua contribuição sobretudo no campo dos estudos biográficos. A comédia pode ser exemplificada com Trio em lá menor, que não deixa de ser uma engenhosa brincadeira sobre o triângulo amoroso; Essa mulher é minha, em que Procópio Ferreira fez excelente criação no papel de João Gangorra; e Canção dentro do pão, inspirada numa trama contada por Diderot em Jacques, le fataliste.

Em Essa mulher é minha, localizada no interior, duas solteironas reclamam do padre por não ter o bispo sido seu hóspede. O motivo, segundo o padre: o irmão mais novo tem uma amante. Este engendra um plano conciliador, para evitar as represálias familiares: João Gangorra, gerente de seu açougue, se casará com a jovem, para facilitar os encontros escusos. Ironicamente, o casal acaba por se apaixonar, frustrando a intenção da burla. Os bons achados cômicos superam o sentimentalismo. Observo uma reminiscência pirandelliana, segundo a qual a forma termina por gerar a vida.

A comicidade de Canção dentro do pão está mais desenvolvida do que no episódio de Diderot. Passa-se a ação na véspera da tomada da Bastilha, aproveitando a conjuntura histórica para transformar o leal padeiro do rei em revolucionário. Ele que deveria ser simplesmente enganado por um finório, que tramava sua prisão com o objetivo de conquistar-lhe a mulher... O desfecho algo forçado diminui o alcance da comédia.

Um judeu traça o interessante perfil de Disraeli, o notável político inglês do século XIX, e constitui, de acordo com as palavras do autor, menos uma biografia “do que em um grito de consciência em prol de um povo perseguido” – e não cabe esquecer que a estréia se deu em 1939, quando se deflagrou a Segunda Grande Guerra, cujo fim expôs ao mundo o terrível Holocausto.

Carlota Joaquina, lançada também em 1939, eleva ao papel de protagonista a mulher de D. João VI, pintada sobretudo como vingativa, por ter mandado assassinar Gertrudes Carneiro Leão, esposa de um amante seu, que ousara esbofeteá-la. O êxito dessa peça e de Um judeu levou o crítico e dramaturgo Abadie Faria Rosa, então diretor do Serviço Nacional de Teatro, a considerar Magalhães Júnior “sem dúvida o autor do momento”.

A meu ver o ponto alto do dramaturgo, ao lidar com acontecimentos reais do passado, coincidindo com seu próprio juízo sobre a obra inteira – deu-se em Vila Rica, dedicada ao grande poeta e acadêmico Manuel Bandeira, “que lhe forneceu tema e documentário sobre os atribulados amores de Dona Emerenciana Joana Evangelista de Seixas, irmã de dona Dorothéa de Seixas, poeticamente conhecida pela alcunha de Marília de Dirceu”, a musa de Tomás Antônio Gonzaga. Emerenciana, iludida sucessivamente por dois sedutores, legou ao mundo dois enjeitados. Na trama bem conduzida, peripécias extraordinárias fazem reconhecer os filhos, ao mesmo tempo que ocorre seu casamento com o segundo sedutor, dosados convenientemente os aspectos sentimental, psicológico e humano das personagens.

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O ano do centenário é também o da perda de dois queridos confrades que se dedicaram ao teatro: Antônio Callado (nascido em 1917) e Dom Marcos Barbosa (nascido em 1915). A dramaturgia não foi, por certo, a maior preocupação de ambos, mas teve papel importante no seu perfil literário. Cada um dispõe de um lugar assegurado e de relevo na escrita para o palco.

Depois de ter produzido as peças A cidade assassinada, Frankel (vencedora de concurso da Cia. Tônia-Celi-Autran) e o Colar de coral, Antônio Callado deu uma contribuição especial à nossa dramaturgia com Pedro Mico, estreada profissionalmente em 1957. A peça alcançou imediata popularidade, em virtude da exata psicologia de um malandro de morro, cujos expedientes mantêm a trama em contínuo fluxo cômico. A narrativa que faz Aparecida, a prostituta que lhe supre o não-aprendizado da leitura, das peripécias de Zumbi, sugere a ele o estratagema final para escapar da polícia, com graça e inteligência. Pedro Mico participa do conjunto de quatro obras do Teatro Negro do autor, a meu ver seu legado específico para a dramaturgia brasileira.

Se Uma rede para Iemanjá substitui, para a personagem pai do Juca, o filho desaparecido há um ano, no mar, por um menino que vai nascer, num desambicioso auto de Natal, O tesouro de Chica da Silva ganha em urdidura dramática e aprofundamento das personagens. Impressiona a sinceridade do amor do contratador de diamantes João Fernandes pela mulata Chica da Silva, tendo ela uma determinação e uma inventividade espantosas, ao dobrar o hipócrita e avarento Conde de Valadares, Governador da Capitania de Minas Gerais.

A Revolta da Cachaça, que dá título ao volume do Teatro Negro, publicado em 1983, utiliza a metalinguagem para discutir o problema do ator negro, Ambrósio, que cobra do autor branco Vito uma peça, prometida há dez anos, aproveitando-o no primeiro papel, e não como criado, bicheiro, ladrão ou chofer.  Numa réplica, Ambrósio diz: “Não agüento mais ser copeiro, punguista e assaltante.” No texto, Antônio Callado atribui igual importância às personagens de brancos e do negro, no elogiável esforço de vencer a odiosa discriminação racial que ainda não utiliza igualmente, no palco brasileiro, as duas raças.

Forró no engenho Cananéia, de 1964, situa no centro da ação camponeses nordestinos, que lutam contra os sicários do coronel dono da fazenda, quando ele não cumpre a promessa de manter o cemitério para o enterro de seus mortos, alegando o imperativo mentiroso de ser ali construído um açude. Até os violeiros Zé Gato e Leleco Jaguaratica, rivais no desejo de Maria Candonga, se unem ante o brado de Manuel Ermitão, definido como misto de cangaceiro, beato e doido, a mencionar permanentemente El-Rei D. Sebastião e morrendo com alguma facilidade, no final, depois de ter distribuído armas aos colonos, para se tornar o maior herói nessa revolta contra a injustiça.

Diversos volumes enfeixam os autos de Dom Marcos Barbosa, escritos para a maior beleza das festas católicas do Mosteiro de São Bento: a Páscoa, o nascimento de Jesus e a reintegração de Adão, passagens capitais da vida de santos e profetas, os milagres, enfim, que fazem a contextura religiosa. As personagens respiram o sobrenatural. Não há, propriamente, conflitos, pois o coro, numa solenidade de missa cantada, se eleva para proclamar, numa única voz, a grandeza do Senhor. Até o aparecimento do sedutor, numa das peças, é suave, não vem dividir e trazer discórdia, mas apenas dar mais vigor à verdade una e total. O diálogo, que compõe O lugar do meu repouso, realiza-se como uma narrativa exposta por duas pessoas que se intercalam para marcar as pausas normais de uma história. As falas se completam para o objetivo de estabelecer a continuidade da louvação mística, sem que uma nota diferente quebre a harmonia a ser preservada.

A primeira coletânea de autos, reunida por iniciativa de Gustavo Corção e por ele prefaciada, em 1947, vinha trazer a público um documento religioso de compreensível importância, a que não falta a marca da literatura. Referiu-se o prefaciador à “admirável justeza conseguida pelo autor na difícil associação entre a Sabedoria e a Poesia”, que, aliada à “essencial harmonia dos elementos”, caracteriza a mensagem de Dom Marcos Barbosa.

Um ortodoxo crítico teatral apontaria nesses autos a falta de conteúdo dramático que os projetaria além da fronteira do culto cristão. Confinam-se eles à comunhão espiritual necessária à plenitude das solenidades religiosas. Mas, na sua modéstia de gênero literário de ocasião, o que, de certa maneira, significa que foi acentuado o propósito de atingir a alegoria cristã, os mistérios criam o ambiente adequado à exaltação religiosa, são o exemplo vivo dos grandes momentos que devem habitar a alma dos fiéis. A linguagem requerida é, assim, a dos cânticos, dos poemas elegíacos, em que as apóstrofes formam verdadeiro hino de edificação litúrgica. Os versos de Dom Marcos Barbosa, simples e objetivos, são veículo acertado para a construção do clima poético indispensável à comunicação dos mistérios. Adjetivação rica, perpassada de tonalidades imprevistas, cuja fonte maior é a inspiração bíblica, sem contar a influência notória da poesia de Paul Claudel e de Augusto Frederico Schmidt. Esse teatro vale, para os que têm fé, como exercício espiritual de uma alma humilde, ingênua e absolutamente integrada na mística religiosa.

Quem não vive o pensamento católico pode ver uma sensibilidade poética aberta a diversos motivos, embora dentro de rigorosa concepção cristã. Com poucos recursos técnicos e destinado a espectadores que se identificam a ele nas mesmas idéias, o teatro de Dom Marcos Barbosa consegue, entretanto, do espectador que pode senti-lo, a comunhão tão desejada da arte teatral.

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Se era grande o número de dramaturgos entre os fundadores da Academia, ele não é pequeno entre os seus membros atuais. Continuando com o critério da ordem das Cadeiras, cabe-me mencionar: Carlos Nejar, Rachel de Queiroz, Lêdo Ivo, Dias Gomes, Jorge Amado, Josué Montello, Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto.

Dada a impossibilidade de apresentar, em pouco tempo, a obra de todos, darei preferência aos que fizeram, da dramaturgia, a ocupação principal e consagradora. Nesse caso estão Dias Gomes e Ariano Suassuna, ainda que o primeiro se tenha popularizado também como autor de telenovelas de êxito e o segundo com o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e História d’O Rei degolado nas caatingas do sertão/Ao sol da onça Caetana.

Dias Gomes passou a figurar na primeira linha dos nossos autores com a estréia, em 1960, de O pagador de promessas, depois de um silêncio de várias temporadas. As peças da juventude, encenadas na década de 40, pertencem já à linha da temática social, que só se consolidaria no final dos anos 50. Lembre-se de que Pé-de-Cabra, de 1942, fora proibida, sob a alegação de ser marxista, quando o autor, nas suas palavras, “até aquele momento, ainda não havia lido uma só linha de Marx”. Ele assim sintetiza o conteúdo de outras obras: “Em Zeca Diabo, eu aflorava o problema do cangaço, em Dr. Ninguém, tentava destruir o mito da ausência do preconceito de cor entre nós, em Eu acuso o céu, abordava o problema das secas e dos retirantes nordestinos. Em Um pobre gênio tinha um tema perigoso para a época, uma greve operária”.

O pagador de promessas põe em cena o sincretismo e a intolerância religiosos, compreendido o primeiro como manifestação da crença popular e criticada a segunda pela dureza capaz de gerar crimes. Com fina ironia, Dias Gomes faz os mais diferentes representantes da sociedade viver um cruel “baile de máscaras”, enquanto o “herói vencido” Zé do Burro é sacrificado pela cumplicidade ou indiferença dos outros. Mas prevalece a mensagem positiva, quando o protagonista, que não havia conseguido carregar a cruz para o interior da igreja, é transportado sobre ela, já morto, pela multidão que se apossa do templo.

Em A invasão, favelados ocupam o esqueleto de cimento armado de um edifício, não por convicção política, mas pelo imperativo da sobrevivência, porquanto haviam sido coagidos a abandonar os barracos. A revolução dos beatos, em outro contexto, retorna ao movimento coletivo: os “adoradores” do boi invadem as terras do padre Cícero, num ato volitivo contra as manobras de um deputado. Bastião, depois de descobrir a impostura da crença no boi, desperta para a liderança política, ao desnudar o mecanismo social.

O santo inquérito engrossa, com base em história real, a ficção que verbera as forças opressoras, o obscurantismo, o mau uso da religiosidade para sufocar a pureza e a inocência. A vítima, no caso, se chama Branca Dias, sacrificada pela Inquisição (transposta de Portugal para o Brasil colonial do século XVIII). Mais uma vez, o desvirtuamento da autoridade religiosa é condenado pelo dramaturgo, solidário com a fé autêntica de seus protagonistas. Amor em campo minado parte de uma situação interessante: a necessidade que tem o intelectual de esquerda de esconder-se numa garçonnière, no sábado seguinte ao golpe de 1964. A justa crítica à repressão não permite complacência, por sua vez, com a fragilidade dos reprimidos.

Uma virtude histórica fundamental deve ser creditada a Campeões do mundo, estreada em 1979: a de inaugurar, iniciada a abertura política, o balanço do que aconteceu no País, de 1964 até à data em que foi escrita, com inteira liberdade, não precisando recorrer a metáforas ou alusões para iludir os censores. A segura intuição dramática fez com que o autor arrolasse os argumentos dos oponentes, sem tomar partido pessoal nos conflitos. Talvez nem houvesse muita virtude nessa isenção, pois a História praticamente condenou por unanimidade a ditadura, e não custava conceder a palavra a seus poucos paladinos.

Meu reino por um cavalo sugere, em grande parte, a análise da crise da maturidade, o sincero autodesnudamento. Otávio (alter ego do dramaturgo?) fala abertamente: “Engajamento não é sectarismo político, maniqueísmo ideológico, realismo socialista, essas bobagens. Nunca embarquei nessa. Mesmo quando militava no Partido, sempre preservei a minha liberdade de criação. Nunca submeti uma peça minha à apreciação de qualquer comitê. Sempre fui um indisciplinado e me orgulho disso. E hoje sou um livre-atirador”. Um livre-atirador, sem dúvida, mas que nunca perde de vista a perspectiva social.

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Ariano Suassuna surpreendeu o Rio e São Paulo, em 1957, com o Auto da Compadecida – um choque de brasilidade, na síntese feliz da tradição do teatro religioso, vindo da Idade Média européia e do teatro de Gil Vicente, aliada ao nosso populário, nascido da autenticidade das histórias de cordel. Ele se tornou de imediato o texto mais popular do repertório brasileiro de então, porque fundia a fé católica, no que ela tem de mais visceral na formação da nacionalidade, e a existência cômica e patética do homem comum, permanentemente vilipendiado pelos poderosos.

O enredo mágico, inventando a cada cena uma peripécia surpreendente, vale-se do riso franco, da irreverência sadia e do bom gosto de trazer o sagrado para o cotidiano das personagens. Longe de ser obra apologética, A Compadecida terá fortalecido, em muitos, a crença no catolicismo.

Em experiências anteriores, por acreditar que “estamos vivendo a época elisabetana agora, estamos num tempo semelhante aos que produziu Molière, Gil Vicente, Shakespeare etc.”, ele havia aproveitado, no “drama sacramental” Auto de João da Cruz, história que remonta à aventura faustiana, de Goethe, e a O milagre de Teófilo, de Ruteboeuf, e, em O arco desolado, lenda semelhante à de La vida es sueño, de Calderón de la Barca.

Depois da estréia de O casamento suspeitoso, que estruturava a narrativa à maneira de A Compadecida, “para firmar uma espécie de estilo”, segundo as palavras do autor, o Teatro Cacilda Becker iniciou suas atividades com O santo e a porca, que abrasileira a história do avarento, fixada na Aulularia (Comédia da panela), de Plauto, e em L’Avare, de Molière, baseando-se no achado de tratar a avareza como pecado, e daí o debate íntimo do protagonista sobre os bens materiais e espirituais, e seu resgate pelo despojamento dos valores terrenos. Na trama, Santo Antônio trapaceou com o avarento, privando-o do dinheiro, para recuperar-lhe a alma. O católico depara a infinita misericórdia e a infalibilidade dos desígnios divinos.

O mais profundo mergulho de Suassuna nas possibilidades da linguagem do teatro e no universo religioso surgiu em A pena e a lei, que consagra a virtude da esperança, oposta ao pecado do desespero, tão grave na teologia. Sob o prisma dramatúrgico, o auto dissolve a pureza tradicional dos gêneros, afirmando, com ironia, reunir tragicomédia lírico-pastoril, drama cômico em três atos, farsa de moralidade e facécia de caráter bufonesco.

Lê-se, na rubrica: o primeiro ato “deve ser encenado como se tratasse de uma representação de mamulengos, com os atores caracterizados como bonecos de teatro nordestino, com gestos mecanizados etc. No segundo ato os atores já representam num meio-termo entre boneco e gente, com caracterização mais atenuada e com alguma coisa de trôpego e grosseiro que sugira a incompetência, a ineficiência, o material que a despeito de tudo existe no homem. Somente no terceiro ato é que os atores aparecem com rostos e gestos teatralmente normais, para indicar que só então, com a morte, é que nos transformamos em nós mesmos”. A didascália sugere, de forma perfeita, a transcendência da proposta do autor – uma verdadeira súmula do teatro.

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Embora Rachel de Queiroz e João Cabral de Melo Neto tenham construído sua obra em outros gêneros - ela sobretudo no romance e ele na poesia -, a circunstância de se acharem em cartaz, na temporada de 1977, as peças A beata Maria do Egito e Morte e vida severina, justifica a quebra do critério que decidi adotar. Em ambos prepondera o grande apuro literário dos textos.

Rachel de Queiroz inspirou-se na “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, poema de Manuel Bandeira, que foi também excelente tradutor de teatro, para escrever A beata Maria do Egito. A peça aproxima com absoluta organicidade a hagiografia cristã, as crenças e as superstições do Nordeste brasileiro e um caso de amor muito humano. Ao invés de condenar superficialmente o tenente-delegado que possui sua prisioneira, desejosa apenas de juntar-se aos fiéis de padre Cícero do Juazeiro, a autora imprimiu à trama tratamento muito mais sutil que o simples abuso do poder: ele apaixonou-se de fato pela beata e, por ela, abandonaria a própria função. Por isso, quando o coronel e chefe político da localidade vem cobrar dele o mal feito à beata, ouve em resposta: “Não, coronel! Se a questão é de abusar, que é que o senhor ficaria pensando se eu lhe dissesse que ela é que abusou de mim?” O amor fez que o carcereiro se resgatasse inteiramente com a morte e, como o espectador sente maior afinidade com o seu desvario, a perspectiva terrena sai engrandecida do cotejo com o sobrenatural. Curiosamente, Lampião, peça anterior de Rachel de Queiroz, é menos uma narrativa sobre bandoleiros que também um drama de amor e de paixões humanas.

No “auto de Natal pernambucano” Morte e vida severina, João Cabral de Melo Neto conta a caminhada de um retirante da Serra da Costela, nos limites da Paraíba, até o Recife. Severino emigra, na esperança de fugir da “morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia.” No longo do percurso, ele só encontra a morte. De início, um assassinado (‘sempre há uma bala voando / desocupada”). Depois, numa casa, cantam excelências para um defunto: “Dize que levas somente / coisas de não: fome, sede, privação.”

Não obstante todas as vicissitudes, em que Severino pergunta “se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte da vida?”, anunciam ao mestre carpina José que seu filho é chegado. E ele fala ao retirante: “é difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê, severina; / mas se responder pude / à pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva [...] / mesmo quando é uma explosão / como a de há pouco, franzina, / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.”

Com beleza poética extraordinária, João Cabral associou a odisséia do retirante nordestino ao tema universal do nascimento de Cristo. Um Cristo do Nordeste, marcado pelo sofrimento, mas fazendo do próprio ato de existir um sentido para a vida. A poesia enxuta e cortante, composta de apreensões essenciais, resultou no mais belo auto de Natal da história do teatro.

Ao concluir esta resenha de nomes e obras, fico à vontade para dizer que, não fosse a dramaturgia um dos gêneros literários, esta Instituição poderia chamar-se Academia Brasileira de Letras e de Teatro.

 

 

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