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Zélia, o último encontro

 

Há um mês e meio, quando fui a Salvador, representar a ABL nas comemorações do Centenário do Acadêmico Luís Viana Filho, aproveitei uma brecha na programação e fui visitar Zélia Gattai Amado.


Encontrei-a instalada em seu novo e espaçoso apartamento, no bairro de Brotas, repousando num divã e respirando por um tubo de oxigênio, assistida por duas enfermeiras, uma à noite e outra durante o dia, mas esperançosa de melhorar o seu estado de saúde. Mostrava-se lúcida e atenta a todos os detalhes relacionados com a Academia e os Acadêmicos.


Conversamos mais de duas horas, durante as quais ela falou sobre os livros relacionados à sua vivência com Jorge Amado, em especial "A Casa do Rio Vermelho", onde suas cinzas agora foram espalhadas, ao lado das do seu marido.


- Nesses livros, eu relembrei as rocambolescas aventuras de nós dois na Mongólia, no Ceilão, na China, na União Soviética, além das passagens pela Bélgica, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Itália e Estados Unidos, nossa amizade com Neruda, Ehremburgo, Nicolás Guílhen, Picasso , Sartre e Simone de Beauvoir.


Neruda lia, então, um poema de dor e de protesto contra o assassinato do poeta Federico Garcia Lorca, fuzilado pelos fascistas espanhóis.


Em 1945, ela se aproximou de Jorge Amado, que, à distância, já muito admirava, com quem se casaria logo depois e de quem seria mulher e datilógrafa pelo resto da vida, durante 56 anos.


A partir de 1948 e fugindo às perseguições da polícia brasileira, viveram em Paris e em Praga, no Castelo de Dóbris, a convite dos escritores tchecos, de onde foram, sempre recebendo prêmios, a Budapeste, Bucareste, Londres, Paris, Roma, Lisboa, Sófia e Moscou, atravessaram a Birmânia, chegaram a Pequim, abrigaram-se de um vendaval de areias escaldantes no deserto de Góbi, na Mongólia, enfrentaram um perigoso maremoto no Mar do Norte, romperam a barreira do som num Concorde, descobrindo em outros céus os mais belos astros, firmamentos e estrelas.


Zélia candidatou-se à Cadeira 23 da ABL, que Jorge ocupara durante 40 anos, tendo como Patrono José de Alencar, como Fundador Machado de Assis e como Sucessores Lafayette Rodrigues Pereira, Alfredo Pujol e Otávio Mangabeira.


Elegendo-se para a Academia, empossou-se exatamente há seis anos e por coincidência neste último dia 22 de maio de 2002. Era a quinta mulher Acadêmica, depois de Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e antes de Ana Maria Machado.


Em seu discurso de posse, recordou que tudo na vida lhe acontecera tarde: começara a dirigir carro aos 45 anos; escrevera seu primeiro livro aos 63; furara as orelhas aos 80; operara-se de apêndice aos 83 e agora era "imortal" aos 85.


De todos os livros de memórias que Zélia escreveu - como excelente memorialista e narradora de histórias, no modelo de Margareth Mitchell e da nossa Rachel - restou-nos dela a imagem de uma paulista de nascimento e baiana de coração, cujos 92 anos de idade iriam completar-se exatamente no próximo dia 2 de julho, e que, em sua mocidade, se uniu a um jovem escritor, transformado depois num dos maiores romancistas brasileiros.


Mas restou-nos, sobretudo, o exemplo de um casal maravilhoso e autêntico, que nos ofereceu a inesquecível lição de uma família bem baiana e bem brasileira, a viver exclusivamente à custa dos seus direitos autorais e dentro dos mais altos padrões de honradez e dignidade.


Quando fui visitá-la, em Salvador, há 45 dias, saí da visita esperançoso de que ela conseguiria superar mais aquela crise e transmiti esta esperança num relato que fiz aos Acadêmicos, durante nossa reunião plenária da ABL, na quinta-feira seguinte e que está gravado em nossos Anais.


Afinal, por um desses curiosos desígnios do destino, eu estava sendo o último Acadêmico a falar com ela, porque três dias depois se internaria no Hospital e não mais ficaria acessível.


Nessa visita, Zélia confessou-me também que estava com muitas saudades da nossa Academia. E concluiu:


"Murilo: Por seu intermédio, peço aos meus irmãos Acadêmicos, que são a minha segunda família: peço-lhes que rezem por mim, pois estou precisando muito da oração de todos".


Transmiti esse apelo, porque, com ele, Zélia pressentia que estava próxima do seu fim.


Jornal do Commercio (RJ) 2/6/2008