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Volta à Amazônia

 

Volto à Amazônia, terra emblemática do Brasil, que, se ameaçada de fora, é normalmente preservada pela sua literatura. Um dos mais importantes preservadores dessa brasilidade foi Dalcídio Jurandir (1909-1979), cujo romance "Três casas e um rio" reflete, como poucos outros, o espírito selvagem de um povo. Num ritmo natural de narração primitiva, consegue Jurandir um equilíbrio raro numa história escrita sem os limites da literatura bem comportada. Nela concepção tem primazia sobre a técnica.


Dentro do princípio de que muitas obras literárias tendem para a música (tempo), enquanto outras se dirigem na linha da estrutura arquitetônica, ou do traço, ou da pintura (espaço), pode-se dizer que Dalcídio Jurandir se situava no plano rítmico de Proust, em que a concepção sinfônica da obra se subdivide ao máximo.


É claro que, no mesmo espírito de aproximações, o romancista da Amazônia difere, e muito, do criador de Swann, como, no plano exclusivamente musical, Villa-Lobos (a quem Dalcídio poderia filiar-se) se separa de César Frank (com que Proust se aparentaria). Essa digressão serve para acentuar o aspecto espacial- e o temporal - como podendo existir em vários tipos de realizações (literárias, musicais ou de puro espaço como nas estátuas e nas colunas).


A narrativa de ficção costuma também mostrar momentos de contração ou expansão de um escorrer dramático. Sob esse aspecto, é Dalcídio Jurandir de clara sabedoria, levando seus personagens a um extremo de pungência, para, depois, inesperadamente, deixá-los na calmaria de uma cadência propositadamente tranqüila. Se, em dois de seus romances anteriores a este, "Chove nos campos de Cachoeira" e "Marajó", havia Dalcídio mostrado que vinha dizer algo de novo, "Três casas de um rio" firmou seu nome como o de um dos grandes romancistas deste País.


É a Amazônia que, reduzida à pequena fresta de Cachoeira, se deixa ver por completo, num livro que, a exemplo do "Grande sertão veredas", de Guimarães Rosa, incorpora mais um território à nossa literatura.


O Amazonas está sempre presente no romance. Sua correnteza, sua magia, seu mistério, formam um todo, ao longo da narrativa, com o sentimento das gentes que a povoam. Para conseguir essa visão geral, não se afasta Dalcídio Jurandir dos limites de espaço que a si mesmo se impusera. Não sai de cachoeira. É, ao contrário, todo o mundo amazônida que para ele aflui. O Major Alberto Coimbra vivia com a preta Amélia, e seus dois filhos, Alfredo e Mariinha, faziam, do rio, que ora vinha para perto e ora fugia de onde eles moravam, o centro mesmo de um largo país que ora era de verdade e ora de faz-de-conta.


Nesse meio, o livro é, principalmente, das crianças. Nele, os adultos têm sua importância, mas Alfredo, Andreza e Mariinha fornecem a tônica da ação. As sucessivas mudanças de atitude do filho para com a mãe, a figura quase lateral da irmã, a força de Andreza como gente, o modo de as crianças julgarem os adultos, tudo vai e vem, num contraponto da presença infantil dentro de "Três casas e um rio", contraponto que deságua às vezes nos períodos de transição do romance, como na ida e vinda normal das chuvas, das enchentes e do rio manso.


Uma das evidências da obra de Dalcídio Jurandir é seu apego vigorosamente amoroso ao chão de cima, ao chão de baixo da água e à água em si mesma quando cobrindo toda a paisagem. O mundo circundante impõe respeito e como que passa a fazer parte dos personagens. No caso de um romance com essa força, o importante é a densa visão do mundo que Dalcídio Jurandir impõe ao leitor. Sua narrativa se mantém junto da gente de seu universo e dentro dos leitores que dele tomam conhecimento.


Tribuna da Imprensa (RJ) 13/2/2007