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Viva o povo brasileiro

 

Para certos escritores, como infelizmente eu mesmo, assunto às vezes é uma praga invencível. Eu não queria falar novamente no que vou falar, pelo menos agora. E pretendia escapar ao efeito colateral, que é o de pegar mais uma vez no pé do presidente da República. Não vou negar que me tenho visto na obrigação de pegar no pé dele e, quando acho que devo, pego mesmo. Certamente ele não gosta, mas é o presidente, deve explicações aos governados e eu sou um governado na mesma situação geral que milhões de outros. Ele pode nem escutar nem ler, mas a gente tem que falar e escrever o que pensa do que ele faz. Presidente sendo, tudo o que ele faz é do interesse público.


O que ele disse recentemente na África é natural para a maior parte dos brasileiros, porque foram “verdades” estabelecidas sem discussão há décadas e agora influenciadas pela globalização e pela nossa permanente colonização cultural. O que vou argumentar é contra essas “verdades” - como os índios serem os primeiros brasileiros e a África ser um continente homogêneo, possuidor até mesmo de uma única cultura, a famosa “cultura africana” - sobre as quais escrevi outro dia, mas admito que vai sobrar para ele, a começar pelo lugar escolhido, de onde pouquíssimos escravos vieram para o Brasil.


Expandindo um pouco o que já publiquei aqui, vamos lembrar que, mais ou menos do mesmo jeito que entre os índios brasileiros antes do descobrimento, não havia, na África, noção de África comparável nem de longe à de hoje e muito menos de “negritude”. Milhões de negros, antes do contato com brancos, nasceram e morreram achando que a Humanidade era toda constituída de negros como eles, pois eles só conheciam negros. E a Humanidade, branca ou negra, não é uma espécie lá muito meritória. Os negros, como os brancos, amarelos ou o que lá fosse, praticavam a escravidão entre si, porque eram muitos povos, todos diferentes e, naturalmente, se vendo como diferentes. Faziam a mesma coisa, praticamente desde que o mundo é mundo. Guerreavam e quem ganhava costumava escravizar quem perdia. Isso já acontecia na África anterior à chegada européia e não podia ser diferente, pois a escravidão é uma iniqüidade antiga e tão sedimentada que até hoje não acabou.


Aquela casa de comércio de escravos onde o presidente pediu desculpas era, digamos, tripulada por negros. Eram negros comerciantes de outros negros, aos quais não se consideravam iguais de forma alguma, mas antagônicos e inimigos ferozes. Segundo me ensinou o mais erudito estudioso do assunto que conheço, o poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, um povo denominado jalofo, naquela região, costumava vencer e escravizar os povos tacrus, fulas ou sereres, seus vizinhos, negros como eles, é óbvio. Esse tipo de coisa acontecia em todo o mercado mundial de escravos negros. Nos séculos XV e XVI, se não me engano, o reino do Congo, onde mais ou menos fica hoje Angola, subjugava seus vizinhos, escravizava-os e os vendia aos portugueses, que usaram durante algum tempo o nome calhorda de peças-da-índia para designar lotes de escravos. Ou seja, os portugueses não compravam homens livres, compravam peças-da-índia, “mercadoria pronta”, gente já escravizada, que, se não fosse exportada, continuaria na condição de escrava em sua própria terra.


Tudo isso é de uma monstruosidade sem medida, mas como hediondo crime de ser humano contra ser humano, não de raça contra raça. A escravidão é uma vergonha e uma indescritível violência, mas somos, como também diz o Alberto, todos descendentes de escravos, de senhores ou de ambos, pois houve (e ainda há) escravidão em todos os continentes. O presidente, que, por sinal, falou como branco, pediu desculpas, referindo-se a homens livres que de repente eram arrancados de sua terra para serem escravizados, mas não se tratava mais de homens livres, já eram de fato escravos. E também deixou de lado o que muita gente deixa, ao pensar no assunto: as nações ou etnias negras que vendiam escravos também devem desculpas aos descendentes destes. Se nós devemos ter remorso e vergonha da escravidão, também eles devem ter remorso de haverem sido cúmplices e participantes ativos da escravidão, humilhação e infindável sofrimento de seus semelhantes. Semelhantes homens, friso eu, não semelhantes negros. É abominação suprema escravizar qualquer pessoa. Aquilo que trouxe lágrimas aos olhos da senadora Benedita devia trazer ainda mais, se ela lembrasse que quem amontoava gente ali como gado não eram brancos, mas negros, que, aliás, não viam nenhum mal no que faziam.


Acho importante recordar isso porque estamos engolindo cada vez mais a noção de que a raça nos divide, deixando de enxergar a evidente realidade de que os negros são também verdadeiros primeiros brasileiros e que trouxeram com eles tão importante parte da riqueza cultural, que hoje nos ornamenta e singulariza. Nós conseguimos ser e agora vivemos fazendo força para deixar de ser, num gigantesco passo atrás, o único país onde de fato a Humanidade se misturou e se mistura, onde ninguém permanece “de fora” e até culturas resistentes à integração, como a japonesa, se deixaram assimilar e os oriundos de qualquer parte não vivem aqui enquistados, como no resto do mundo. A verdadeira fraternidade não pode restringir-se àquela entre negros e negros ou brancos e brancos, ou quaisquer outras categorias limitadas. A verdadeira fraternidade há de medrar entre todos os homens e a nossa nação não é branca, nem negra, nem índia, é brasileira. Sei que há quem não goste, mas brasileiros somos, brasileiros sempre seremos e brasileiros morreremos, na nossa esplendorosa mestiçagem que, para mim, aos olhos de Deus, é o mais belo testemunho do grande milagre da Criação, que não foi raça nenhuma, foi o homem e sua consciência.


 


 


O Globo (Rio de Janeiro) 24/04/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 24/04/2005