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Vinte anos depois: Francisco

 

Tomo café no terraço do hotel que dá vista para um castelo, um gigantesco castelo neste pequeno vilarejo com apenas algumas casas, na província de Navarra, Espanha. Já é noite, não há lua, estou refazendo de carro minha peregrinação a Santiago de Compostela, para comemorar os vinte anos de quando cruzei este caminho à primeira vez.


 


O vilarejo onde estou, porém, não faz parte do percurso, que passa a uns 19 quilômetros daqui. Mas pretendia visitá-lo, e aqui estou. Há quinhentos anos nasceu neste lugar um homem chamado Francisco. Deve ter brincado muito nos campos em volta do castelo. Deve ter se banhado no rio que corre por perto. Filho de pais ricos, deixou sua aldeia para completar seus estudos na famosa Universidade Sorbonne, de Paris. Deduzo que foi sua primeira longa viagem.


Era atlético, bonito, inteligente, invejado por todos os alunos — menos por um, vindo da mesma e distante província espanhola, que se chamava Inácio. Inácio dizia: “Francisco, você pensa muito em você. Por que não se dedicar a pensar em outras coisas, como Deus, por exemplo?” Não sabemos por quê, mas Francisco, o mais belo e mais valente estudante da Sorbonne, deixa-se convencer por Inácio. Juntam-se com outros alunos, e fundam uma sociedade, que é motivo de risos de todos os outros, a ponto de alguém escrever na porta da sala onde se reuniam: Sociedade de Jesus. Ao invés de ficarem ofendidos, adotam o nome. E a partir daí, Francisco começa uma viagem sem volta.


 


Vai com Inácio a Roma, e pede que o Papa reconheça a “sociedade”. O pontífice aceita encontrar-se com os estudantes, e para estimulá-los, dá o seu acordo. Francisco — que morria de medo de navios e de mar — parte sozinho para o Oriente, imbuído do que considera sua missão. Nos próximos dez anos visitará a África, a Índia, Sumatra, Molucas, Japão. Aprenderá novas línguas, visitará hospitais, prisões, cidades e vilarejos. Escreverá muitas cartas, mas nenhuma — absolutamente nenhuma — fará referências a pontos “turísticos” destes lugares. Comenta apenas a necessidade de levar uma palavra de coragem e esperança aos que são menos favorecidos.


 


Morre longe do vilarejo onde estou agora tomando meu café e é enterrado em Goa. Em uma época em que o mundo era imenso, as distâncias, quase insuperáveis, os povos viviam em guerra, Francisco achou que devia considerá-lo como uma aldeia global. Supera seus medos porque está consciente que sua vida tem um sentido. Não sabe, enquanto caminha pelo Oriente, que seus passos jamais serão esquecidos, e que tudo que plantou dará frutos; está fazendo isso porque é sua lenda pessoal, a maneira que escolheu de viver sua vida.


 


Quinhentos anos depois, na cidade de Ahmedabad, na Índia, um professor pede a seus alunos uma biografia sobre ele. Um dos meninos escreve: “Foi um grande arquiteto, porque em todo o Oriente existem escolas que construiu e que levam seu nome”.


 


Francisco veio de um pequeno povoado de Navarra, mas era um homem do mundo, e todos os consideravam parte de sua própria gente. Não era arquiteto especializado em construir escolas; como diz um de seus primeiros biógrafos, “era como o sol, que não pode seguir adiante sem espalhar luz e calor por onde passa”.


 


Penso em Francisco: sair daqui, correr o mundo, fazer com que o nome deste pequeno vilarejo seja levado a tantos lugares, a ponto de muita gente achar que é o seu sobrenome. Enfrentar seus medos, renunciar a tudo em nome de seus sonhos. O limite de um homem não é o tamanho de sua cidade ou de seu horizonte, mas a dimensão dos seus sonhos. Que isso me inspire e me sirva de exemplo; eu que estudei em um dos colégios da tal “sociedade de Jesus”, ou S.J., ou escolas jesuítas, como são conhecidas.


 


Estou no povoado de Xavier. Tanto Francisco como Inácio, que veio de outro pequeno povoado, chamado Loyola, foram canonizados no mesmo dia, 12 de março de 1622. Naquela manhã, colocaram uma faixa em um dos muros do Vaticano:


“São Francisco Xavier fez muitos milagres. Mas o milagre de Santo Inácio é ainda maior: Francisco Xavier.”


 


O Globo (Rio de Janeiro) 02/07/2006

O Globo (Rio de Janeiro), 02/07/2006