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Vilaça presidente

 

Os dois anos em que Marcos Vinicios Vilaça foi presidente da Academia Brasileira de Letras estão hoje registrados no livro "Para além do pórtico". Assim, parte de suas viagens no exercício da Presidência da Casa de Machado de Assis aparece narrada e explicada, o que dá a seu livro não só um testemunho de um trabalho, mas também um retrato fiel do que é a realidade da Academia Brasileira de Letras e de que maneira exercem os acadêmicos as suas atividades.


Alguns capítulos do livro tratam do centenário da morte de Machado de Assis, a que a Academia deu o melhor de seu trabalho, chegando ao ponto de montar, organizar, dirigir centenas de atos públicos. Além de uma exposição múltipla que ocupou o espaço livre na entrada da Academia, no seu andar térreo, no primeiro andar e no segundo, onde estão os móveis de Machado e Carolina, seus objetos pessoais, o xadrez em que ele jogava, a pena para escrever que ele usava, com as visitas diárias de crianças que são normais na Academia, mas que tiveram aspectos diferentes este ano.


As conferências e sessões do Teatro Raimundo Magalhães Jr. tiveram, sob a gestão de Vilaça, público permanente na ordem de 400 pessoas, numa demonstração de grande interesse pelos detalhes da vida e obra do homem que dedicou seu tempo à literatura de sua terra e ao uso pessoal da palavra que fica. Uma parte do livro é também dedicada ao estudo de autores, em análises sobre a obra de Ariano Suassuna, Tobias Barreto, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira.


Comovente é a homenagem que Marcos Vinicios Vilaça presta a Josué Montello, que também ocupou a Presidência da Academia Brasileira de Letras, de que foi dedicado servidor ao longo de cinqüenta anos. Eis o texto: "Contemplo Josué e recuso-me a aceitar sua finitude. Diante do inevitável, depois de tanto sofrimento, o adentrar de Josué na terra desconhecida ainda parece incompreensível para nós, os seus companheiros.


Não nos acostumamos à idéia da ausência do grande escritor devotado desde a juventude ao ofício das letras com ardor de um crente. O enorme talento, suficiente para consagrá-lo como um dos maiores romancistas do nosso tempo, multiplicava-se e se enriquecia, por servir a um tenaz trabalhador literário, homem íntegro, inteiro, incansável, diuturno. Um homem de caráter.


Lembro Montaigne, um dos seus prediletos, em "Filosofia é aprender a morrer". Montaigne, dizendo que toda a filosofia é aprender a morrer, advertindo-nos de que, pouco a pouco, vamos percebendo que a aventura da vida não termina na morte. A vida daqueles que cuidamos e que desaparecem se prolonga em nossas vidas. Levamos até o fim as recordações dos que conosco morreram e, deste modo, continuam vivos.


Todos os dias, às cinco da manhã, quando a madrugada exige ainda luzes acesas no interior do escritório, Josué se encontrava diante de uma escrivaninha com seus instrumentos de trabalho, a criar as urdiduras dos seus romances, contos e novelas, ou então a preparar, com a erudição haurida na leitura dos clássicos, tomos de história literária, biografias, ensaios e artigos para jornal. Duas horas depois, os manuscritos prontos eram passados à sua querida e devotada Yvonne, e ela se ocupava de datilografá-los; só depois de terminada a primeira tarefa do dia, o casal tomava o seu café-da-manhã.


Às oito horas, Josué iniciava a segunda fase dos seus trabalhos, as leituras, os estudos, as pesquisas sempre à procura do ainda ignorado para as devidas incorporações. Depois do almoço, um terceiro tempo dedicado às atividades de administrador cultural em várias esferas do governo: Conselho Federal de Cultura, Biblioteca Nacional, museus, Universidade, cátedra, reitoria, deveres diplomáticos. E, acima de tudo, a dedicação à Academia, onde chegou com o divino calibre de moço e com a qual manteve espécie de relação orgânica - seu corpo, sua pele, se alongando no corpo da Casa.


O vigoroso coração de Josué insistiu o quanto pôde no objetivo de torná-lo, assim como é sua vasta obra literária, fisicamente imortal, busca de imortalidade. Sei, sabemos os que acreditam na permanência do espírito, que seu repouso final não representa a vitória da morte. Poderíamos perguntar até neste momento, diante de Josué, repetindo Paulo na Epístola aos Coríntios: "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?"


Seus livros de repercussão internacional, uma verdadeira brasiliana escrita por um só homem, jamais escondem a influência das suas raízes maranhenses. Ele destacava com carinho especial os romances, alguns deles a exemplo de "Tambores de São Luís" ou "Noite sobre Alcântara" - dos mais belos escritos em língua portuguesa - como, nestes livros, está o ensinamento de que ninguém será grande se negar suas raízes. Na Escritura está muito claro que Vita mutatur, non tollitur, a vida é mudada, mas não tolhida.


É num claustro de paz que Josué se encontra agora e donde virá sempre para junto dos seus confrades, pois é verdade o que ele me ensinou, vinte anos atrás: a nossa vida são os nossos mortos. Enquanto não nos convertemos em saudades, Josué, sentiremos saudade de você."


"Para além do pórtico" é uma Edição Consultor. Prefácio de Arnaldo Niskier. Revisão de Carolina Rodrigues. Capa e projeto gráfico de Isio Guelman, ilustração da capa de Francisco Brennand ("A loba e o chapéu vermelho").


Tribuna da Imprensa (RJ) 09/09/2008

Tribuna da Imprensa (RJ), 09/09/2008