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Vão aproveitando aí

 

Claro, já estava por acontecer há muito tempo, só não via quem não queria. E olhem que as novidades mal começaram. Como sempre, asseguram-nos que o alcance delas é cientificamente limitado e, mesmo que não fosse, haverá leis severas para coibir abusos. Tudo conversa fiada, claro, assim como era conversa fiada (embora os americanos não soubessem disso, porque acreditam nos filmes que eles mesmos fazem sobre como são sempre os mocinhos) a noção de que a invasão do Iraque seria uma espécie de passeio, um piquenique animado a fogos de salão. Já tínhamos visto um outro tipo de filme, como observei modestamente na ocasião, continuamos a vê-lo e conviveremos com ele, ai de todos, ainda por muito tempo.


Mas não vou falar em guerras, pelo menos no sentido mais estrito. Estou pensando em outra coisa, embora minha preocupação pessoal, com relutante sinceridade, não seja tão grande assim, pois já estou crescidinho o suficiente para escapar desta. Se alguma coisa me incomoda um pouco, é talvez o fato de que não vou entrar na festa da saideira, que prevejo retumbante para os últimos machos, que deverão ainda nascer durante um par de décadas, para depois sumir definitivamente.


Talvez nem um par de décadas, considerando a velocidade em que tudo agora acontece. É possível mesmo que não nasçam mais machos no futuro próximo, eis que, como sempre se suspeitou e há exemplos abundantes desse fato, eles são inúteis e, se continuam a circular por aí, isso se deve a que a Natureza trabalha devagar e ainda existem fêmeas que apreciam um macho de vez em quando, embora com as habituais restrições, familiares a todos os que conhecem o receio do lar. Ao contrário do que se costuma pensar, os machos nunca estiveram com essa bola toda em vastos setores do reino animal, inclusive entre os humanos.


Há quem ache mesmo que os machos humanos que, durante um período relativamente curtíssimo da História, andaram por cima da carne-seca, deveriam ter feito construir, no mundo todo, monumentos ao Macho Desconhecido. É bem plausível supor que, durante a maior parte de nossa existência como espécie, quando ainda aprendíamos a falar e mal nos distinguíamos dos nossos primos macacos, não soubéssemos do nexo de causa e efeito entre a relação heterossexual e a procriação. Há muito mitos, em toda parte, que ajudam a sustentar essa suposição. Quantos heróis mitológicos não eram filhos de uma mulher com um rio ou um vento? A moça ia tomar banho e, de repente aparecia grávida, só podia ser o rio. Isso até que um gênio, esse Macho Desconhecido (ou uma traidora da classe, sempre pode ser), descobriu que, sem o homem fazer aquilo com ela, ela não ficava grávida. Continuava, é claro, sagrada, detendo o mistério da perpetuação da espécie e carregando novos viventes na barriga, mas precisava do homem.


Deu-se aí o revertério que os machos aproveitaram fartamente e que vinha durando alguns séculos, mas tinha que ser desmoralizado, mais cedo ou mais tarde. Acaba de sê-lo. Claro que não fui eu somente quem leu isso, mas, como às vezes parece que sim, ressalto aos mais distraídos que deu no jornal que cientistas japoneses conseguiram a geração de uma camundonga filha legítima de duas camundongas, sem a mínima necessidade de espermatozóides ou qualquer outra colaboração masculina. Os objetivos oficialmente anunciados são nobres, notadamente, como é de hábito apontar-se, a cura de doenças e a obtenção de avanços em algumas áreas arcanas das ciências biológicas. Mas a verdade inescapável não vai desaparecer e a verdade é que os machos estão dando o primeiro passo para se tornarem inteiramente dispensáveis, do ponto de vista da perpetuação da espécie.


Não se trata de clonagem, ou qualquer dessas coisas antigas. Trata-se de reprodução normal mesmo, cruzamento entre dois seres da mesma espécie mas sem nenhum parentesco, o que torna insignificantes os riscos da endogamia. Só que, por não haver o envolvimento de cromossomos masculinos, não nascerão mais machos, só nascerão fêmeas. E machos para quê, se qualquer uma poderá ter sua filhinha à vontade, com a amiga, namorada ou consorte que escolher? Quem precisa deles?


Alegarão algumas, ainda meio acostumadinhas com os velhos tempos, que um macho às vezes tem seu lugar, que certas coisas ficam mais divertidas na companhia deles e assim por diante. Pura resistência à mudança, um certo reacionarismo, talvez até um pouco de piedade pelo destino dos que estão condenados a se tornar peças de museus e, no máximo, ser exibidos como curiosidades arcaicas, em zoológicos especializados. Eu, Deus é grande, não peguei, nem vou pegar, esse tempo. Quer dizer, talvez venha a testemunhá-lo, mas com a indiferença de quem pôde ser concebido e já colaborou com algumas concepções pelo método antigo. O problema não vai ser para o pessoal do meu tope, que talvez pegue até um cartaz já a esta altura inesperado, junto às saudosistas, na saideira a que me referi acima.


Mas a cruel realidade, meus caros amigos, é que a Evolução já descartou os machos, foi uma experiência talvez interessante, mas malograda. Resta apenas um fiapo de esperança. Dentro de algum tempo, vão descobrir que homem faz falta para lavar carro, carregar compras e cumprir outros misteres pouco dignos da Rainha de Criação. E, assim, é bem possível que acabem ensaiando uma volta tímida e regulada. Sim, as feministas de antigamente vão cumprir seu ideal. Homem só como objeto e com o status análogo ao de um eletrodoméstico. É por essas e outras que me acho um sábio, quando digo que a melhor coisa do futuro é que não vou estar nele.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 02/05/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 02/05/2004