Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Uma lição para comentário

Uma lição para comentário

 

De onde teria saído essa lição que condena o uso de ‘da’ por ‘de a’ em construções que já comentamos aqui, como ‘É tempo da pessoa descansar’,em vez de ‘É tempo de a pessoa descansar’?  

Já tivemos há anos a preocupação de rastrear antigos textos de gramática para detectar a lição mais antiga dessa crítica,e a nossa pesquisa fixou, salvo investigação mais apurada, a ‘Nova Gramática Analítica’,do suíço Adrien Grivet, saída no Rio de Janeiro em 1881, que exerceu influência em gramáticos posteriores brasileiros.  

No capítulo de sintaxe, Grivet faz largo estudo dos usos linguísticos do padre Antônio Vieira, escritor do séc.XVII, nos ‘Sermões’. E aí registra que o notável estilista usava,como sempre se fez em todos os períodos da língua portuguesa,tanto a sintaxe com a  preposição aglutinada à vogal inicial do substantivo ou pronome, do artigo ou de qualquer outro adjunto do substantivo (isto é, construção semelhante a ‘É tempo da pessoa descansar’), como da construção sem aglutinação (‘É tempo de a pessoa descansar’). 
     
Em vez de proceder como verdadeiro pesquisador,registrando as duas construções como válidas,
embora sobre elas pudesse estabelecer sua preferência, optou por servir-se da falsa lição da “regência” do sujeito, e condenou as construções encontradas em que Vieira opta pela aglutinação,classificando-as como provindas “da ousadia ou da distração do copista iletrado” (pág. 388 da sua Gramática).

Que a língua portuguesa sempre usou das duas construções mostram os textos literários entre portugueses e brasileiros,de todos os séculos.Mas a lição da "regência" preposicional do sujeito ficou tão disseminada, que os organizadores modernos de edições de livros e antologias se permitiram “corrigir”os exemplos com aglutinação.Ocorre a pretensa correção num trecho de Alexandre Herculano recolhido na“Antologia Nacional” organizada por dois grandes conhecedores de nossa língua, Fauto Barreto e Carlos de Laet.Nas edições antigas respeitava-se a sintaxe praticada por Herculano:“Sabia-o, senhor, antes do caso acontecer"(pág.162 da 6ªed.da‘Antologia Nacional’, 1913). Já nas edições mais modernas, trocaram ‘antes do caso acontecer’ para ‘antes de o caso acontecer’.  
   
O que hoje se arcaizou foi a aglutinação da preposição com‘o’, ‘a’ objeto direto do infinitivo, construção que escritores saudosistas dos clássicos , como Rui Barbosa, ainda  praticavam no século 20. Escrevia-se até o século 18: ‘Esforcei-me pelo conseguir’, substituído hoje por:‘Esforcei-me porconsegui-lo’ ou ‘Esforcei-me para consegui-lo’.    

Por fim,a regra contra a aglutinação em construções do tipo ‘É tempo da pessoa descansar’tem sido reclamada por bons conhecedores da língua,como aconteceu com as‘Tradições Clássica da Língua Portuguesa’, do Padre Pedro Adrião, livro que a ABL acaba de reeditar.A restrição à aglutinação ganhou espaço nas regras gramaticais, e é hoje a construção preferida dos textos literários ejornalísticos.   
     
O que falta dizer é que com essa opção a língua perde um grande recurso semântico-pragmático, isto é, expressional,quando quer ou não quer emprestar mais ênfase ao sujeito do verbo no infinitivo.Com a aglutinação diminui-se a força semântica do sujeito: ‘É tempo da pessoa descansar.’ Não se fazendo a aglutinação, percebe-se leve pausa entre a preposição e a unidade de sujeito, fenômeno rítmico que põe em maior evidência esse sujeito: ‘É tempo de a pessoa descansar’.  

O Dia (RJ), 27/2/2011