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Uma família

 

A contribuição da presença, no Brasil, de imigrantes da Rússia, da Polônia e outras regiões da Europa de população predominantemente judaica, foi de tal maneira que nos é possível hoje termos toda uma bibliografia sobre eles e seus descendentes em vários setores da vida brasileira. São brasileiros como Clarice Lispector, como os Bloch (Adolpho e Pedro), como os Niskier (Arnaldo, Odilon e Celso), como os Scliar (Moacyr e Carlos), como os Sauer e como tantos outros que nos ajudaram a criar o Brasil de hoje.


 


O livro de Renato Sérgio "Odilon Niskier: relato de uma vida" vem a ser a biografia de um deles, o mais velho, Odilon, que se preocupava em evitar que o caçula, Arnaldo, perdesse tempo jogando futebol na rua em vez de estudar. No que fez muito bem porque o menino de então é hoje membro da Academia Brasileira de Letras e foi várias vezes Secretário de Estado no Rio de Janeiro.


 


A história de Odilon é também de uma família, é a história do Rio de Janeiro em grande parte do Século XX e é a história do próprio Brasil no período que antecede a segunda Guerra Mundial (1939-1945).


 


O início dos movimentos esquerdistas no Brasil (o Partido Comunista fora fundado em 1922) e todo o tempo que veio de Getúlio Vargas chegando ao Rio de Janeiro em 1930 aparecem no livro, não como simples registro histórico, mas envoltos numa narração viva, com pessoas indo e vindo, a esquerda brasileira no meio dos entusiasmos de uma juventude que, mesmo subterrânea, conseguia atingir uma larga faixa estudantil e muitos escritores, e tudo o que precedeu o 29 de outubro de 1945, quando Getúlio Vargas encerrou seus quinze anos de dono do país - e mais os tempos nervosos da redemocratização, da formação de novos partidos políticos e de uma geração que depois se chamou "de 45", de que sairiam os versos novos de João Cabral de Melo Neto e a nova linguagem de João Guimarães Rosa.


 


Os que haviam chegado há muito da Polônia aceitavam o Partido Comunista como o oposto do nazismo que matara milhões de homens, mulheres e crianças de sua raça.


 


Da família, três vieram da Polônia - Sílvio, Odilon e Julio - e um nascido no Brasil, Arnaldo. Odilon foi quem assumiu às vezes de pai, dirigindo, corrigindo, encaminhando. A vila em que moravam em Pilares - mais tarde engolida por uma grande favela - abrigava a família, que fora aumentada pelo nascimento da caçula, Rachel. O livro de Renato Sérgio tem sua base na memória, memória de uma família, de uma cidade, de um país, inclusive ao traçar como que uma história do desenvolvimento das favelas no Rio de Janeiro, favelas que hoje parecem definitivamente cravadas na cidade, frutos de uma onda de corrupção contra a qual nenhuma autoridade conseguiu, ou quis, lutar.


 


Veio de longe a característica maior da família. Na definição de Odilon - "Nossa família sempre teve um compromisso atávico, vindo muito de longe, com a cultura". Funcionário do Banco do Brasil, formado em Direito, participou Odilon de grupos e reuniões e de todos os movimentos dos advogados no sentido de preservar o exercício profissional da classe e mostrar a importância básica dessa categoria na sociedade democrática.


 


Ao longo do livro, a figura do biografado avulta de tal maneira que surge como um homem que não parava de agir, de fazer coisas, de promover encontros, de ajudar os outros, mas sempre preparado para o Êxodo e sem revolta alguma contra essa eventualidade. Como no caso do ISEB ( Instituto Superior de Estudos Brasileiros), quando, em 1965, um coronel do Exército emitiu um ofício pedindo a prisão de trinta cidadãos que não haviam atendido ao edital de convocação para que prestassem depoimento sobre o ISEB.


 


Entre os ameaçados de prisão, estavam Juscelino Kubitschek, João Goulard, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e, em último lugar na lista, Odilon Niskier. Era como se o Êxodo estivesse de novo perto. Falando sobre Odilon, disse o psicanalista David Bogomoletz: "Ele é a generosidade em pessoa. O povo judeu tem uma tradição muito antiga e muito interessante. Esta: em toda geração existem 36 homens justos, graças aos quais o mundo sobrevive.


Se não fossem eles, Hitler teria ganho a guerra, a África seria de Idi Amin, a América do Sul de Pinochet, ou seja, o mal estaria instalado no mundo. Eu não tenho a menor dúvida de que Odilon Niskier, na geração dele, é um desses 36."




"Odilon Niskier: relato de uma vida", de Renato Sérgio, é um lançamento das Edições Consultor. Prefácio de Marcello Cerqueira, apresentação de Clarice Niskier e texto de capa de Arnaldo Niskier.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 04/07/2006