Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Um surrealista brasileiro

Um surrealista brasileiro

 

Nesta vida agitada de ler livros e mais livros, principalmente brasileiros, dos que possam elevar nossa literatura a nível mais alto - e a nós mesmos, como leitores, a um plano maior de entendimento - encontramos de vez em quando obras que abrem caminhos.


 


Meu espanto diante de um livro nunca foi tão grande como o que senti há alguns anos, ao ler o romance "A lua vem da Ásia", de Campos de Carvalho. Crítico literário de jornal carioca, escrevi então sobre o livro começando com essa frase: "É com um grito que um estreante chamado Campos de Carvalho entra, de fato em nossa literatura. E esse grito, solta-o ele no começo mesmo de "A lua vem da Ásia", quando diz: "Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica.


 


Invocando legítima defesa - e qual seria mais legítima? - logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, passava noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo."


 


Com este começo, não tive dúvidas: ali estava, enfim, um surrealista brasileiro. Pensei logo: onde colocar o novo autor no mapa literário de então?


 


Podia-se, ao primeiro contato com seu livro, pensar em Pitigrilli, Herman Hesse, Henry Miller, Papini. Como o fazer, porém, sendo esses escritores tão diferentes entre si? Meus artigos sairiam depois num volume chamado "Cadernos de Crítica". Confesso que fiquei à espera de novos livros de Campos de Carvalho. E eles vieram: "A vaca de nariz sutil" e


 


"A chuva imóvel", publicados, algum tempo depois, aumentavam a força da linguagem do autor, que chegava a um tom agressivamente novo. Era como um Rimbaud inteiramente brasileiro e escrevendo em prosa, numa prosa que tinha a coragem de usar palavras inesperadas e abrigar significados que ultrapassavam a mesmice do estilo "chegou-fez-saiu".


 


Artigos meus sobre esses dois livros apareceram em recolta em que eu reunia uma série de críticas de romance sob o título "A verdade da ficção", de modo que eu parecia ter completado minhas análises sobre as "verdades" arrancadas pelo autor tanto de nossa realidade como do que de surreal existisse no mundo.


 


Foi então que surgiu "O púcaro búlgaro", em que o romancista Campos de Carvalho alcançou um dos níveis mais altos da literatura brasileira, tornando-se líder, em nossa cultura, da insubmissão e da insatisfação. Acentue-se que só a insubmissão e a insatisfação levam uma cultura para frente (uma cultura, ou um homem, ou uma vida, ou um país).


 


O tom geral de "O púcaro búlgaro" é cômico. Sua comicidade, porém, não se prende apenas a situações externas. Fixa-se também, e de modo original e permanente, em jogos-de-palavras que dão extraordinária vivacidade e cada instante de sua linguagem. A partir de dois proparoxítonos, púcaro e búlgaro, vai Campos de Carvalho tecendo sua risibilidade vocabular e acumulando um sem-número de qüiprocós como os bons humoristas de qualquer tempo e arte. Um Rabelais ou um Chaplin, um Marivaux ou um Tashlin.


 


Livro de um verbalismo rico e inesperado, de instante em instante explode numa série de comicidades que transformam uma expedição para a descoberta da Bulgária numa busca vital que na realidade vem a ser uma corrida atrás do verdadeiro sentido da vida.


 


Quando estive na Bulgária, numa viagem literária juntamente com Jorge Amado, Zélia e Guilherme Figueiredo, de lá mandei um telegrama para Campos de Carvalho: "Estou em Sófia. A Bulgária existe mesmo. Tanto existe que seu nome foi citado por mim hoje numa conferência em que falei sobre o Púcaro e o Búlgaro. Somos todos inapelavelmente búlgaros."


 


Agora está o Rio de Janeiro apresentando "O púcaro búlgaro", numa ótima visão sobre palco de Aderbal Freire-Filho que, pegando o mundo búlgaro e antibúlgaro de Campos de Carvalho, colocou-o vivo, ácido, aberto, palpitante, e que outros adjetivos possamos inventar, diante de uma platéia que acompanha a história, presa ao fio de um texto que parece entrar pelos orifícios do teatro, descer com as luzes e fixar-se em perguntas sem respostas e respostas sem perguntas, numa adaptação de uma linguagem belamente louca, apresentada com todos os ruídos e móveis de um espaço em que há também uma banheira e um vaso sanitário de verdade que em tudo combinam com o espírito surrealista de Campos de Carvalho e com o delírio experimentalista de Aderbal Freire-Filho.


 


Delírio de uma lucidez cênica para cuja expressibilidade tudo concorre: os barulhos, as luzes que aparecem e somem, os objetos, as roupas, os pratos de comida, enfim todo o aparato que se junta no palco para conter a vasta comicidade do autor na sua busca de uma Bulgária, em que há púcaros e outros objetos proparoxítonos, num grande espetáculo que nos mostra o mundo mágico de um escritor sem fronteiras. Os atores vivem intensamente essa liberdade: Candido Damm, Raquel Iantas, Isio Ghelman, Augusto Madeira e Gillray Coutinho.


 


Tribuna da Imprensa (RJ) 13/6/2006