Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Um novo Balzac

Um novo Balzac

 

Sai agora no Brasil um romance de Balzac, "O amor mascarado", que não está incluído nas edições das obras completas do autor. Trata-se de um presente que Balzac ofereceu à duquesa de Dino e que ficou por mais de meio século na biblioteca da família, antes de esta resolver publicá-lo.


Existem abismos em Balzac. Podemos pensar, assim que entramos num livro seu, que a paisagem, de tão plana, mostra o mundo balzaquiano em toda a sua profundeza, sem esconder cena algumade secreta. Mas de repente abre-se nele um abismo, que pode tontear por segundos o leitor que, porém, logo se restabeleça diante da clareza com que o romancista descreve e analisa seus dramas.


É que o romancista, nele, assume sempre uma posição crítica, o que levou Victor Hugo a chamá-lo de "escritor revolucionário". Porque a verdade é que Balzac joga sobre nós toda a responsabilidade. Somos responsáveis pelo que acontece, seja na vida seja nos romances inventados - somos culpados, eu, o leitor que me lê e quem esteja ao lado - somos todos responsáveis pelo que acontece, mesmo quando o ambiente da narrativa queira ser alegre, como o deste "O amor mascarado", que abre a história com estas palavras: "Soava a meia-noite, e tudo estava em movimento em Paris; tudo se agitava, tudo corria para o prazer; era uma noite de segunda-feira de Carnaval".


Tem sido motivo de permanente espanto haja Honoré de Balzac produzido um número tão vasto de obras. Foram perto de cem (precisamente 97, de acordo com os adeptos de informações exatas). A "Comédia humana" se estende por todo um período e por toda uma extensão de espaço que fixa para sempre o que foi o tempo que os historiadores franceses chamam de Restauração que, numa espécie de tentativa de esquecer a febre napoleônica e a violência da Revolução, sugeria ser preciso restaurar um pouco da alegria de viver de antigamente.


Mesmo para o começo do Século XIX, muito curta foi a vida de Balzac. Nascido em 1799, era adolescente quando Wellington derrotou Napoleão em Waterloo. Vindo a morrer em 1850, era como se fosse impossível a alguém, naquele reduzido tempo de vida e de atividade, escrever (além de tudo, a mão) a enorme quantidade de textos que escreveu.


Como autor, além de uma narrativa presa ao tempo ( de maneira diferente da que marcaria mais tarde a obra de um Proust), realizava uma obra em que a memória (como não seria assim, a memória sendo uma filha do tempo?) ocupava grande parte dos acontecimentos narrados e dos personagens mostrados. Guardava tipos de pessoas, não esquecia detalhes do que acontecera em tal lugar e em tal circunstância. Momentos históricos e invenções do romancista mesclavam-se no meio das descrições romanescas de seu mundo pessoal. Com isto, nunca mais foi a Restauração mistério para ninguém. Está tudo lá, nas páginas de Balzac. Foi também quando os caminhos de ferro começavam a cortar a Europa. Mais do que no século anterior, a presença do povo nas ruas era alegre e festiva.


Surgiu o que viria a se chamar de "promenade", lugares feitos para os cidadãos neles passeassem, a pé ou em carruagens, em cenas que iriam durar até o tempo de Proust e que seriam interrompidas quando os automóveis expulsaram o povo das ruas (hoje em dia, precisamos transformá-las em espaço de lazer, em fins de semana, para criar trechos da paisagem onde se possa apenas andar).


Sugere o ensaísta Martinez Estrada que, dentro de alguns séculos, venha o mundo a negar que Balzac haja existido. Num caso parecido com o de Homero. A França poderá, nesse futuro, chegar à conclusão de que Balzac haja sido um nome atribuído a um possível romancista que tenha existido, mas sem a menor certeza dessa existência. Ou então a um conjunto de autores a que alguém teria dado um nome só: o de Balzac.


Não há tempo sem crise. Toda época é naturalmente crítica. Nos dias de Balzac a revolução industrial mudava o mundo, as crises dos séculos anteriores haviam feito o mesmo e, desde então - depois do desaparecimento de Balzac em 1850 - passamos por um sem-número de crises: a guerra de 1870 (que atingiu o mundo que havia sido o de Balzac), a era do cinema e do automóvel, a Primeira Guerra Mundial, as confusões sociais dos anos 30, a Segunda Guerra Mundial, as faces diferentes de cada parte do mundo no pós-guerra, a informática, a subversão de valores, a guerra do Vietnã, vindo até a invasão do Iraque em 2003. Imagino o que poderia Balzac tirar de si mesmo nesses tempos de mudança e de renovação.


Na realidade, provocou Balzac uma rachadura na técnica de escrever romances. Com ele, ficou o gênero mais próximo do homem e da mulher comuns. Quando o lemos, sentimo-nos ligados a um ritmo de vida que nos leva e a que passamos a pertencer. A sociedade que sucedeu à Era Napoleônica, buscando restaurar valores que pareciam perdidos, aceitou a alegria de viver como clima natural de uma época.


Mas preservou os receios normais do ser humano em face do mistério geral das coisas e dos abismos que nos cercam. Tendo representado o seu tempo de modo integral, Balzac também nos previu, pois vivemos os últimos 153 anos, desde que ele morreu, sob a influência das análises que fez de nós. Para sempre.


"O amor mascarado" sai sob o sinete da Bom Texto Editora. Tradução de Carlos Ancêde Nougué. Coordenação editorial de Cristina Portela, capa e projeto gráfico de Sérgio Campante.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 02/07/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 02/07/2003