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Um mestre do romance

 

Este mestre é Manuel Antonio de Almeida, que escreveu uma obra-prima aos 21 anos de sua idade e deixou de existir aos 30.


Grande nome da ficção brasileira que, guardadas as diferenças de tempo e espaço, se antecipou, aqui, ao que parecia impossível e que Radiguet repetiria na França do século XX: fazer, quando muito jovem, uma obra de ficção do mais alto nível. Na poesia, sim, em que a intuição pode exercer papel mais importante (pode e, segundo Robert Graves, deve), um adolescente Rimbaud surgia como gênio. Na ficção exigiam os exegetas um mínimo de idade e maturidade. Mas um escritor consegue, às vezes, nos seus repentes, desmentir as normas de todos os teóricos.


Os primeiros anos da vida independente do Brasil provocaram um efervescência intelectual na América de expressão portuguesa de que esta ainda não tivera exemplos. Só por ocasião da Inconfidência Mineira houvera coisa parecida, mas, então, era, por decorrência mesmo de uma compreensível transplantação cultural, um setor do espírito cultural português que aqui se instalava e assumia, de vez em quando, cores brasileiras. Mas a verdade é que não houvera ainda, antes da década de 50 no século XIX, um produto literário que fosse de fato brasileiro e de valor.


A um historiador da literatura, que aprecie o assunto a mais de um século de distância, é espantoso que, em 1852, com 21 anos de idade, um jovem cidadão do Rio de Janeiro tenha escrito "Memórias de um sargento de milícias". Era tão grande a diferença da nova história para com as que, do estrangeiro ou do Brasil, apaixonavam os leitores deste lado do mundo, que este livro não podia, naquele momento, ser reconhecido como o primeiro grande romance brasileiro, coisa que sabemos hoje, ele é.


É que, de repente, depois de histórias edificantes e sentimentais, depois de um romantismo adocicado e agradável, caia na literatura brasileira uma história picaresca, um romance com as aventuras de um personagem pícaro, de um sem-moral, de um não-convencional. De certa maneira, o povo é não-convencional. É compreensível que o rico defenda a convenção, que a classe média bem posta na vida ache indispensável que os costumes sejam mantidos tais quais são.


Por isto, acontece que pessoas abastadas não se divirtam muito na vida e não possuam liberdade de fazer isto ou aquilo, na linha da frase de um realista em matéria de política internacional: "Não pode um país grande e importante dar-se ao luxo de brigar com país pequeno e sem importância: o contrário é que é admissível". Já o povo, não. A liberdade é sua. Sendo livre para levar à frente o que lhe dá na vontade, abandona convenções. Ou não chega a aceitá-las. Nas suas atividades diárias, é, também, o povo, realista.


O meramente edificante não desperta nele o entusiasmo que se vê reproduzido nas pessoas que, por causa de uma posição, se contém. Paixões fortes, sim, são do povo: amores que dão em morte, touradas, futebol. Ao mesmo tempo, contudo, em que tem paixões fortes, não se prende ao moralismo comum dos que se acham acima da média.


Costumava Stendhal dizer que só por volta de 1880 sua obra seria considerada importante. "O vermelho e o negro", que publicou em 1830, quando o estilo hugoano era sinônimo da boa literatura, não podia empolgar o leitor da época, e seu tratado "Do amor", de 1822, vendeu apenas 17 exemplares em 11 anos.


A edição em livro de "Memórias de um sargento de milícias", com o primeiro volume saído em 1854, pôde ter melhor venda porque Manuel Antonio de Almeida promovera sua impressão por meio de assinaturas. Mas a glória do romancista - que morreria poucos dias depois de haver completado 30 anos - iria esperar muito tempo antes de ser realidade.


Seria necessário que o amor ao enfeite como tal desaparecesse por algum tempo de nossa literatura para que se descobrisse a força do livro de Manuel Antonio de Almeida, cuja linguagem tinha, de permeio com a graça carioca, uma secura e uma dureza que poderiam agradar a Stendhal.


Como Stendhal, Manuel Antonio de Almeida era antiparnasiano, fugia de palavras que não interessassem à história que narrava, e não foi de espantar que sua consagração definitiva tenha surgido através de estudo de Mário de Andrade, outro antiparnasiano por excelência.


Perto de seu quinto centenário, pícaro continua sendo o Rio de Janeiro, onde se desenvolveu um tipo de humorismo que se tornou a marca do aglomerado humano que Manuel Antonio de Almeida tão bem compreendeu e cantou. Que "Memórias de um sargento de milícias" pode ser considerado o cântico de uma cidade em que tanto a liberdade de Vidinha com a domesticidade de Luizinha se juntam para afirmar a importância desta carioquíssima posição filosófica: a da alegria de viver.


Edição recente, e popular, de "Memórias de um sargento de milícias" é a da Editora Expressão e Cultura, que a incluiu na Coleção Páginas Amarelas.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 23/03/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 23/03/2004