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Um Faulkner diferente

 

Alguns dos grandes escritores romancistas do Século XX deixaram depoimentos sobre a arte da ficção. Dentre eles destaco dois: E. M. Forster e Joyce Cary. O primeiro com o livro "Aspects of the novel", o segundo com "Art and reality". Parecia que um terceiro romancista importante do século, William Faulkner, não nos legaria trabalhos sobre a estética da ficção que ele tão densa e profundamente inovara.


Mas não era verdade. Nos períodos que foram de fevereiro a junho de 1957 e de fevereiro a junho de 1958, aceitou Faulkner ser "writer-in-residence" na Universidade de Virgínia, isto é, residir na universidade e estar à disposição de professores e alunos para responder a perguntas, em particular ou em grupo.


Manteve então Faulkner trinta e sete conferências-em-grupos, o que significava o seguinte: ele não pronunciava conferências propriamente ditas, não se valia de texto escrito, apenas ouvia perguntas e a elas respondia. Todas as perguntas e respostas foram gravadas e taquigrafadas, segundo a tecnologia de um tempo ainda não informatizado.


Quarenta mil pés de "tapes" ficaram depositados na Biblioteca Aldeman da Universidade de Virgínia e, um ano depois, saiu um livro, "Faulkner in the University", organizado por Frederyck L. Gwynn e Joseph L. Blottner, com o essencial das palavras de Faulkner no decorrer das sessões.


Chamam a atenção os organizadores do volume que as opiniões dadas então por Faulkner podem ter dependido de circunstâncias ocasionais, como do nível da audiência, da seqüência das perguntas, de quantas vezes haviam estas sido feitas antes ao autor, da temperatura no dia e, até mesmo, da digestão do escritor - isto é, de tudo o que representasse o estado de espírito do romancista num dado momento e num dado lugar ou, como explicou o próprio Faulkner, em texto introdutório para o volume:


"Essas perguntas foram respondidas sem ensaio ou preparação, por um homem suficientemente envelhecido em seu artesanato do coração humano para ter aprendido que não há respostas definitivas para coisa alguma - e, contudo, tão jovem de espírito para acreditar que a verdade pode ainda ser encontrada, desde que alguém a procure sem cessar, experimente e repita os resultados encontrados, e volte a tentar de novo".


O que esse livro, "Faulkner in the University", nos mostra é um Faulkner diferente, no sentido de que as perguntas de então o obrigaram a dizer o que talvez não quisesse exprimir voluntariamente. Suas respostas se fixaram no estudo, às vezes quase minucioso, na ficção como obra de arte, mas também, e principalmente, como retrato da condição humana.


Para ele, Stendhal e Proust estariam no ápice de um entendimento do homem posto em livro. Não se esquecia, porém, de que estava falando para jovens. Queria-os como partícipes de uma compreensão da importância de ficção como obra de arte. Daí, o haver, no livro, um capítulo chamado "Uma Palavra aos Jovens Escritores". Insistiu então na verdade como busca permanente, na verdade da presença do homem na terra, na verdade de sua resistência a tudo o que diminui e empobrece a dignidade maior de ser gente.


Trechos de quase todas as sessões e aulas, de que Faulkner participou, aparecem no volume e, neles, fala o escritor de um sem-número de aspectos de sua ficção e da ficção em geral. O ambiente no Sul dos Estados Unidos, o reaproveitamento de histórias anteriores em livros novos, que técnica de tempo usou neste ou naquele romance, que lugar ocupa o escritor norte-americano na sociedade de seu país, que parte da tecnologia contemporânea poderá influenciar o escritor, que futuro via para as artes em geral, pode o escritor ser político militante? Agirá o romancista como um engenheiro na feitura de seu mundo fictício? Que outros romancistas de seu tempo selecionaria como decisivos?


É importante seja esse testamento faulkneriano conhecido. Perecível como seja, inquieto no caminhar, no pensar, no escolher, no decidir, o homem resiste e persiste, certo de que só mantendo-se de pé conseguirá chegar a uma conclusão sobre a permanente instabilidade sobre a qual vive. Daí minha opinião de que esse testamento de Faulkner seja conhecido. Quem quer que estude a cultura de hoje e os caminhos do homem em nosso tempo, não pode deixar de conhecer o que pensou, sentiu e disse William Faulkner no decorrer das aulas e conversas acontecidas na Universidade de Virgínia em 1957 e 1958.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro -RJ) em 11/11/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro -RJ) em, 11/11/2003