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Um bom candidato

 
A revista “Time” elegeu Felipe Neto como uma das cem pessoas mais influentes do mundo. Tomara que eles tenham razão. Tomara que o jovem youtuber, com seus quase 40 milhões de seguidores, consiga influenciar os brasileiros com suas críticas ao populismo de direita no poder e à oposição em que “há somente o interesse pelo protagonismo”. Exemplos históricos nos mostram que só se vence um regime autoritário popular com sensata, tolerante e ampla frente política. Uma frente difícil de montar entre nós, graças ao estrelismo de líderes da oposição, que ainda vivem sob preconceitos, com a cabeça noutros tempos.
 
Fiel leitor das seções de cartas nos jornais que leio, encontrei outro dia essa preciosa mensagem de Nila Maria do Carmo Siqueira, no GLOBO: “Caetano Veloso só queria liberdade para cantar. Gerson King Combo, cantor de soul e funk, só queria liberdade para dançar. E por isso foram alvos da ditadura militar. Em pleno século XXI, só queremos liberdade para pensar. Quem nos perseguirá?”.
 
Como Nila, Carol Solberg, craque do nosso vôlei, bicampeã mundial, campeã brasileira de 2018 e eleita a melhor jogadora daquela temporada, resolveu desabafar publicamente e, em Saquarema, durante etapa do circuito, gritou o que pensava: “Fora Bolsonaro!”. Foi, por isso, denunciada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva, pelo puxa-saquismo da Confederação Brasileira de Voleibol, que não se importou quando os jogadores Wallace e Maurício, às vésperas da eleição de 2018, apoiaram Bolsonaro em pleno Campeonato Mundial. E era mesmo um direito deles, não sei onde está escrito que esportista não se manifesta.
 
A sinceridade de Carol está sendo castigada por ameaça de suspensão e multa de R$ 100 mil, sob o pretexto de que seu grito em quadra pôs em risco o patrocínio do Banco do Brasil ao vôlei. Com que percentagem desse patrocínio os cartolas que se irritaram com Carol se remuneram? Que tal se esses senhores assistissem na televisão a um jogo da NBA, quando os jogadores americanos de basquete se ajoelham na quadra, em protesto contra o racismo, muitas vezes estimulado por seus próprios dirigentes? E não se trata apenas de uma voz corajosa e solitária como a de Carol, mas de uma multidão de vozes de profissionais de uma atividade. Não sei se nossos esportistas chegarão, um dia, a esse nível de solidariedade. Mas é talvez por isso que, na ausência dela, o populismo de direita ganha eleição democrática.
Por isso e porque sabe mentir. Como mente comumente, graças à internet sem lei, às redes sociais em que faz propaganda política e eleitoral sem escrúpulos e sem respeito à verdade. No redemoinho de ódios que se tornou a sociedade brasileira, as redes sociais são o lodo em que ele se forma com violência e sem medidas.
 
Foi num desses fenômenos arbitrários de opinião que anônimos fizeram recentemente uma celebração inquisitorial, queimando livros de Paulo Coelho. Uma celebração tão ignorante que o “sacerdote” do ritual maldizia Paulo Freire como autor, enquanto queimava “O Alquimista”. Sou leitor de Paulo Coelho, acho que li todos os livros dele. Mas, mesmo que não o admirasse, como se pode curtir, admitir ou participar de uma missa negra como essa, uma celebração da burrice e da ignorância, adesão explícita ao autoritarismo cultural. Uma violência aos costumes de um país que se deseja democrático.
 
Quando uma pessoa esbarra com um momento difícil em sua vida, é natural que procure novas explicações para eventos novos. Ela pode procurá-las com um analista profissional, que vai fazê-la entender o que se passa. Ou pode cair de boca nos acontecimentos, triturá-los em nome da felicidade perdida. Na política não pode ser assim. Não podemos entregar a esperança da democracia nas mãos de um “analista profissional”, um ditador de hábitos e costumes; como também não temos por que nos oferecer, em sacrifício suicida, ao destempero da sociedade em que vivemos. O mais saudável é ouvirmos quem sofre como nós sofremos e pensa como nós pensamos, mas não está prejudicado por velhos métodos e astúcias manjadas. Alguém que será capaz de agir como agiríamos, se ainda tivéssemos o mesmo entusiasmo.
Um cara como Felipe Neto, um bom candidato para 2022.
O Globo, 05/10/2020