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Um ano de celebrações literárias

 

Deus nos livre de épocas interessantes, diz um provérbio chinês, não sem certa razão: épocas interessantes freqüentemente antecipam conflitos, guerras, tragédias. O melhor. Deduz-se, é viver em tempos desinteressantes, tempos de bem-aventurada rotina. Apreensões à parte, tudo indica, contudo, que 2008 vai ser um ano interessante, com muita coisa acontecendo em nosso pais, e acontecendo em várias áreas. Por exemplo: 2008 será um ano de comemorações literárias. O número de efemérides na área é absolutamente surpreendente.


Para começar, já em fevereiro, temos os 400 anos de nascimento do Padre Antonio Vieira. Quando falamos em Vieira, estamos falando de alguém com múltiplos talentos: ele foi escritor, foi orador, foi um notável político. Vieira defendeu os índios e os judeus que eram perseguidos pela Inquisição (da qual ele próprio foi prisioneiro, solto por determinação do próprio Papa). Foi um modernizador, um homem que estava adiante de seu tempo e que não hesitou em introduzir novas idéias.


Em setembro, teremos os 100 anos de falecimento de Machado de Assis. Durante muito tempo, o escritor foi objeto de controvérsias, e ainda hoje o é, mas hoje é praticamente uma unanimidade, não só pela qualidade de sua obra literária, como pelo fato de que foi um grande intérprete da sociedade brasileira de seu tempo. E estamos falando de alguém que era descendente de escravos, que era de família pobre, que era mulato, que gaguejava, que sofria de epilepsia, e que mal freqüentou escola (se é que freqüentou). Que esse homem tenha dado a volta por cima e que tenha se imposto como grande escritor é algo que nos faz acreditar no Brasil.


Um gigante intelectual em cada semestre, portanto. Mas as celebrações 


não ficam por aí. Exatamente a meio caminho entre as duas, temos os 100 anos de nascimento de Guimarães Rosa. Como Vieira e como Machado, Rosa foi um inovador. Foi um inovador na linguagem (comparável a ele, só James Joyce) e foi um inovador na temática, intrinsecamente brasileira.


Mas tem mais. Em outubro, mais um centenário de falecimento: o de Artur de Azevedo, jornalista, poeta, tradutor e, sobretudo, dramaturgo: autor de mais de 200 peças teatrais, consolidou a comédia de costumes brasileira, que, de certa forma, antecipou o que hoje vemos na tevê.


Mais? Dois centenários de nascimento que falam de perto ao Rio Grande do Sul. O primeiro: Cyro Martins, psicanalista e escritor. Nas suas obras, ficamos conhecendo o gaúcho a pé, que não é exatamente o orgulhoso centauro dos pampas, mas o peão pobre, humilde, que mora num ranchinho e que não tem sequer um cavalo. Também viveu no Rio Grande do Sul (mas era originário de Minas Gerais) o poeta, ensaísta, crítico e professor Guilhermino César, homem de imensa inteligência e sensibilidade literária.


Finalmente, em setembro, temos o centenário de nascimento do pernambucano Josué de Castro. Médico, escritor, político, Josué de Castro ganhou projeção no país e internacionalmente pelos estudos que fez sobre tema absolutamente transcendente em nosso país e em nosso mundo: o problema da fome, que começou a estudar tão logo concluiu o curso de medicina. Seu livro mais conhecido, Geografia da fome, merece figurar ao lado de clássicos como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, pela abordagem ampla e original que•faz do problema da carência alimentar.


E o que é que vocês acham? Dá para incluir a chegada da família real ao Brasil nessa lista? Uns diriam que sim: afinal, a instalação da corte de Dom João VI resultou na criação do Jardim Botânico, do Teatro Real, da Imprensa Régia, da Biblioteca Nacional, do Teatro São João (atual João Caetano), da Gazeta do Rio de Janeiro, do Museu Nacional, do Observatório Astronômico, da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, de vários cursos (agricultura, medicina e cirurgia, química) na Babia e no Rio de Janeiro. Outros discordarão, achando que o país poderia ter chegado a essas coisas de outra forma.


Será 2008 um “annus mirabilis"? Talvez. Comemorações é que não faltarão.


Correio Braziliense (DF) 21/12/2007

Correio Braziliense (DF), 21/12/2007