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Três Prêmios, tantos valores

 

Três prêmios internacionais, concedidos na Europa numa única semana, lançam luz sobre valores humanistas de que a cultura ocidental costumava se orgulhar nos últimos séculos e, de repente, resolveu consagrar fora de suas fronteiras. Em três dias seguidos, vimos nos jornais as fotos sorridentes dos asiáticos contemplados, cada um na sua vitória individual. Bem diferentes. Mas ligados em suas conquistas. No dia 12 de outubro, a indiana Kiran Desai surgiu como a mais jovem ganhadora do Booker Prize, o mais importante prêmio literário inglês. Era considerada um azarão, mas não se pode dizer que a decisão tenha sido uma surpresa. Para começar, é freqüente que os azarões ganhem esse prêmio (foi o caso, no ano passado, do excelente romancista irlandês, John Banville).


Além disso, uma das características do prêmio é que seus seis finalistas são anunciados com meses de antecedência, dando tempo a que os leitores possam ler as obras e julgar o júri – só divulgado junto com o nome do ganhador. O Booker é conferido ao autor de um romance publicado no ano anterior, originalmente em língua inglesa. E como imensa quantidade de países forma romancistas que escrevem em inglês, a honraria tem ido parar nas mãos de representantes de diversas culturas, do Canadá (como Margareth Atwood, Michael Ondaje ou Yann Marteli, embora estes dois últimos sejam naturais do Ceilão e da Espanha) à Índia (como Salman Rushdie e Arundhati Roy) passando pela África do Sul (como J.M. Coetzee).


Esses confrontos entre culturas diversas em tempos de globalização também ajudam a sustentar o inegável talento literário do turco Orhan Pamuk, ganhador do Nobel de Literatura de 2006, já há alguns anos cotadíssimo para o troféu. Como podem conferir os leitores brasileiros de seus livros (editados entre nós pela Companhia das Letras), é um belo romancista. Mas sua escolha acabou criando polêmica pela reação de alguns grupos políticos. Compreensível. O romancista foi processado pelo seu governo por ter “ofendido os valores patrióticos” da nação ao mencionar numa entrevista o genocídio de armênios por tropas turcas há quase um século.


Em tempos de melindres separatistas e radicalizações religiosas puristas que enfatizam o “choque de civilizações”, essa atitude de fé nos valores da miscigenação deve mesmo parecer questionável para muita gente. Defender que as diferenças enriquecem a humanidade, ou que é desejável que o Ocidente e Oriente vivam em harmonia, é uma atitude que passa a ser vista por certos setores como crime ou traição. Para a academia sueca, porém, a obra de Pamuk reúne alta qualidade literária à defesa de valores desejáveis. Daí o prêmio que fazia o autor sorrir feliz nos jornais.


Depois, o amplo sorriso foi de um economista bengalês, Muhammad Yunus, que ganhou o Nobel da Paz pelo trabalho desenvolvido desde 1974 em seu banco Aldeia, especialista em microcrédito para pobres. Como a ganhadora do Booker, talvez Yunus pudesse dizer que o dinheiro não representa tudo para a felicidade. Mas, como economista e banqueiro com o peno chão, ele sabe da importância do crédito para que se saia da pobreza sem esmola nem assistencialismo. É isso que vem fazendo há mais de 30 anos: emprestar dinheiro com juros baixíssimos aos muito pobres, que não têm garantia para dar exceto sua palavra de honra, diante de mais quatro amigos que testemunham o compromisso e ajudam a reembolsar a dívida, se necessário.


Quase 99% dos empréstimos foram pagos. E como 97% foram dados a mulheres, que se sentem mais responsáveis pelas famílias, a iniciativa contribuiu para lhes dar mais poder numa sociedade de maioria islâmica – o que chegou a ser combatido por grupos fundamentalistas que pregaram o boicote à instituição. Mas a realidade foi mais forte, diante do inegável estímulo para o desenvolvimento das famílias.


E aí estão os três, sorridentes: a indiana, o turco e o bengalês. Três prêmios, consagrando o humanismo, por meio de valores como qualidade literária, solidariedade, harmonia, palavra dada, compromisso de honra, respeito à mulher e criatividade. Pontes entre pessoas e entre culturas.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 1/11/2006