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A solidão masculina

 

Os tradutores dos títulos de filmes às vezes cometem atrocidades. Psycho, de Hitchcock, foi traduzido em Portugal como O Filho que era Mãe, uma alusão ao fato de que o personagem se identificava com a genitora. Agora, The Solitary Man, o filme de Brian Koppelman e David Levien, foi batizado, também em Portugal, com o título de O Eterno Solteirão.

No Brasil ficou só O Solteirão, mas de qualquer maneira é uma distorção. Uma coisa é o solteirão que não quer casar, mas que pode ter uma vida lampeira. Outra coisa é o solitário, e este é o papel que o Michael Douglas vive, à frente de um soberbo elenco que inclui Susan Sarandon, Mary-Louise Parker, Jesse Eisenberg e Danny de Vito.

Ele é Ben Kalmen, um sessentão que enfrenta não poucos problemas: está arruinado, depois de ter feito vigarices no mercado de automóveis, sofre do coração, está divorciado, brigado com a filha, o que torna difícil ver o neto que adora.

Escolheu uma namorada, Jordan, porque o poderoso pai desta pode ajudá-lo a voltar ao negócio de carros. Mas aí Jordan pede que ele acompanhe a filha dela, a linda Allyson, na visita a um campus de Boston; os dois fazem sexo e tudo se complica.

A figura do solitário está se tornando cada vez mais frequente em nosso mundo. O individualismo patológico que caracteriza um estilo de vida dominado pelo ego, a possibilidade econômica de viver sozinho (no passado, muitos casais não se separavam por simples falta de grana) e a volatilidade das ligações sentimentais favorecem essa peculiar solidão.

A letra de Solitary Man, a canção-título do filme, composta por Neil Diamond, conta uma história típica “Belinda era minha, até o dia em que eu a encontrei/abraçando Jim/e amando-o./ Então Sue apareceu, amou-me ardentemente, era o que eu pensava,/mas eu e Sue/ isso também morreu./ Não sei se eu conseguirei, mas até que eu ache/ uma garota que ficará e não me trairá/ Eu serei o que eu sou/ um homem solitário.”) Típica, mas equivocada.

O solitário não é necessariamente alguém rejeitado pelos outros, mulheres ou homens; é alguém que, por seus problemas psicológicos, fecha-se teimosamente em sua concha e recusa-se a ver a realidade. Uma prova disso está no fato de que ele sistematicamente recusa-se a examinar seus problemas de saúde. Na verdade, vive num mundo mítico, infantil: Ben Kalmen não quer crescer, e paga um preço por isso.

É muito significativo que Michael Douglas tenha recentemente vivido o papel do especulador Gordon Gekko em Wall Street. Os personagens têm muito em comum, com seu componente de arrogante otimismo e de safadeza. Na verdade são um símbolo dos Estados Unidos, ao menos da recém-terminada era Bush: o país que podia tudo, que vencia todas as guerras, que era dono de uma riqueza infinita.

Os desastres militares e as crises econômicas mostraram que não era bem assim, que não dá para ser uma potência solitária, assim como não dá para ser um “solitary man”, mesmo que este seja o clássico mocinho do faroeste ou o clássico vencedor no mundo dos negócios.

Solitary Man, filme relativamente modesto, é importante por causa disso. Faz parte de uma nova fase, para os Estados Unidos, para o mundo, para os seres humanos em geral. Uma fase difícil, mas necessária.

Zero Hora (RS), 14/11/2010