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Solidão cumprida

 

“A solidão faz a pessoa séria”, observou o grande Machado de Assis. E, noutro instante, ele assegura que “a solidão é a oficina das ideias”.

E o que vemos, em regra, é outra oficina, a dos que o poder prende ou se prendem no poder, com o uso antigo e calejado do tempo.

Mas a sabedoria humana, muitas vezes, não se cristaliza, fica boiando nas águas, ou se afoga.

Ou põe a cabeça para fora na distração incivilizada dos costumes. Pois o uso do cachimbo entorta a boca e a fome da boca mata o peixe no anzol. E a palavra não morre pela boca, quando soprada no espírito.

Não calamos, nem consentimos. Porque o espetáculo humano se sucede, a solidão sob a máscara, ou em casa se exaure, ainda que nos concilie na esperança soberana de sobreviver.

Há muito rumor no mundo e nas estações, rumor de aviso e medo, onde as vozes dos humildes se extraviam e a política repete eternamente o mesmo ritual.

Sim, a solidão faz a pessoa séria. E demasiadamente resistente na casca do tronco da alma. Mas torna o sorriso enrugado e triste. E o riso interior combalido, salvo quando a luz da palavra em nós crepita. Somos pequenas palavras debaixo da grande e imutável Palavra.

A sombra, frequentemente, não vê a lua na sacada e ela continua existindo. O fato de não vermos, entocados na solidão, ou nesta oficina de transeuntes ideias, não significa que as coisas não estejam presentes.

Só Deus ilumina o instante e nós somos instantes que gotejam com a chuva, ou sussurram com o vento.
A solidão nos cumpre, até o fim do fôlego. E não se omite. Como certa política, que não possui gravidade no invento ou na solidão. E “se é ciência prática a política”, como o Mestre Machado diz, “desconfio de teorias que são só teorias”.

Tribuna Online, 30/05/2021