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Sexo plural e participativo

 

Sei que vocês pensam que fico pegando no pé do governo, mas não fico. Aliás, às vezes fico, têm razão. Agora mesmo estou pegando. Mas tenho minhas razões, ou desculpas, como queiram, pois não desejo melindrar leitores petistas, dos light aos religiosos (estes eu sei que andam com uma raiva de mim danada e alguns, se me encontrarem, me darão as costas ou me cumprimentarão gelidamente). Em primeiro lugar, dar penada sobre o governo é minha obrigação. E, de certa forma, de todo cidadão, mas ser jornalista me leva a cumpri-la escrevendo aqui. Cada um se manifesta como pode e, claro, não uso este espaço para defender interesses pessoais, apesar de alguns que acato me afetarem também, o que não dá para evitar, pois sou apenas um entre milhões e minha vida é mais ou menos como a de muita gente. Ao pegar no pé do governo, tenho certeza de que estou - e me dizem muito isto na rua - veiculando o que inúmeros outros também pensam, pelo menos em linhas gerais.


Em segundo lugar, vocês hão de concordar, assim que eu parar com a enrolação e começar a falar no assunto de hoje, é irresistível usar os adjetivos tão caros aos atuais governantes. Agora parece que eles deixaram isso de lado um pouco, mas, não faz tanto tempo, tudo era participativo. Qualquer coisa tinha que ser qualificada de participativa. A administração é participativa e - desculpem, também não consigo esquecer isso, deve ser transtorno obsessivo-compulsivo, vou procurar me tratar - até a espionagem chegou a ser chamada de participativa. Ao que tudo indica, abandonaram a idéia, o que me aliviou bastante, porque me freqüentavam pesadelos em que todo mundo espionava todo mundo e era inescapável o temor de estabelecerem o Conselho Nacional de Espionagem, com representantes de todas as entidades de classe. Não estabeleceram, mas o governo ainda se descreve como plural (e é mesmo, ninguém sabe quem manda) e participativo. Aí achei que nada mais adequado do que observar certos acontecimentos sob a ótica politicamente em voga.


De um desses acontecimentos vocês já devem saber até melhor do que eu, tanto ele foi comentado. Trata-se, com quase toda a certeza, de um precedente aberto pelo Brasil. Eu não fazia idéia disso, mas aqui se pratica - perdão, senhoras, saiu assim em jornais e, pelo visto, já é aceitável usar livremente a palavra - bastante suruba. É o que estou lhes dizendo. Eu achava que era papo de boteco, coisa inventada por escritores safados de minha laia, ou talvez costume de uns taradões aqui e ali, mas é verdade e tão comum que até a Justiça já se pronunciou sobre o assunto, o que corrobora sua relevância no dia-a-dia nacional. Um juiz, em sapientíssima sentença, decidiu contra as pretensões de um cavalheiro que, aceitando integrar-se numa suruba (em terminologia petista, sexo plural ou plural-participativo, que é bem mais chique), topou gostosamente um convite para efetuar conjunção carnal com a esposa de um amigo, o qual, contudo, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade do co-surubante in acto fornicandi , fez o mesmo, naturalmente por outra via, com o dito co-surubante.


Apesar de formado em Direito (achei meu diploma em Itaparica!), sou apedeuta jurídico e estarei com certeza cometendo equívocos conceituais, que não têm muita importância para os leigos. Assim, arrisco-me a opinar que esse magistrado criou a exclusão de culpabilidade na presença do que poderemos rotular de animus surubandi . Ou seja, comprovada a existência do animus surubandi na alegada vítima, exclui-se a culpa do suposto autor de ilícito correlato. Estando a vítima (o vítimo, no caso) bêbeda ou não, até porque é princípio talvez já consagrado por aqueles juristas citados nas aulas de Direito Romano - Pompônio, Ulpiano ou quiçá Baitolônio, o misterioso e controvertido autor dos fragmentos da obra De rerum fioforum - que toba de bêbedo dominum non habet. Aposto que somos o primeiro país a firmar jurisprudência sobre esse essencial aspecto da surubosofia e, portanto, a reconhecer sua importância em nossa sociedade.


E existem outras claras evidências de que há grande atividade no setor, até em áreas julgadas acima de qualquer suspeita. Por exemplo, também leio nas folhas que a moda agora é senhoras e senhorinhas que, lá com suas razões, não querem ser flagradas em lojas de acessórios sexuais organizar reuniões na casa de uma delas, onde podem comprar e comentar (ou até mesmo experimentar, imagino eu, pelo menos em alguns casos) produtos tais como vibradores, algemas, "consolos", chicotes e brinquedos variados de que não entendo bem, apesar de minha fama de sexólogo. Os brasileiros e brasileiras são insuperáveis. Antes as senhoras e senhorinhas se entretinham em chás-de-panela ou de bebê, mas estão na vanguarda e presentemente o chá é outro. Acho que, por enquanto, eles não ganharam um nomezinho especial, mas bem pode ser que sim, ainda restrito às iniciadas, mas logo de alegre uso corrente. E creio que um número significativo de namorados, maridos e similares não só aceitará a nova moda, como alguns a encorajarão.


Vê-se, portanto, que novamente quebram a cara os catastrofistas, que não foram embora com o governo passado não sei por quê. O governo acerta, sim, mesmo quando não prevê o alvo. A filosofia plural e participativa colou, pelo menos no terreno do sexo. Devemos ter subido muito no ranking internacional de libidinagem, alguma organização vai nos elogiar em breve e o mercado provavelmente reagirá positivamente. Já temos jurisprudência firmada sobre a suruba e daqui a pouco vários chás de sexo se tornarão tradicionais, talvez aqui mesmo no Leblon. O horizonte não tem limites, ninguém segura a gente. Ou, por outra, segura, mas vocês sabem o que estou querendo dizer.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 25/07/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 25/07/2004