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Será saudade?

 

Luta vã, a de tentar mudar de assunto todo domingo, sem conseguir. Ia tratar de um assunto sério, como a minha volta ao calçadão - manhã, naturalmente. Não mudei absolutamente de idéia quanto a andar no calçadão, que continuo achando uma das atividades mais chatas jamais concebidas e nunca, depois de meses de insistência, senti o famoso bem-estar pós-caminhada. Meio danoso para minha auto-estima, porque devo ser alguma espécie de anormal, a quem sempre será negado o inefável barato das endorfinas. Padeço do que um médico poderia xingar de anendorfinia, privado de nascença dessas fantásticas substâncias. E há também as humilhações adicionais, como a do capenguinha que curte com minha cara, me deixando a comer poeira com quatro ou cinco de suas passadas fulminantes. Devia haver alguma norma contra a manobra empregada por ele, um impressionante movimento giratório nos quadris, que lhe transforma as pernas num compasso enorme e, que, em rotatividade turbinada, o põe a quilômetros de mim em poucos segundos.


Mas creio que o palpitante tema terá de ser adiado mais uma vez, por-que é impossível não falar do que está em praticamente todos os cantos dos jornais, ou seja, a situação do país. Ninguém agüenta mais, mas não se pode abaixar a guarda. A pizza continua no forno e, se a vigilância bobear, arrumam uma saída para não prejudicar os inocentes que apenas caíram na bobagem de cometer ilegalidades e imoralidades, como é natural do ser humano, sem distinção, e do brasileiro em particular. Outro dia mesmo me disseram que o deputado João Paulo Cunha não seria alcançado por sanção alguma baseada nos contratos de propaganda de sua candidatura única à presidência da Câmara, por mais valerismos em relação à publicidade da dita Câmara e, finalmente, por ter mandado sacar uns meros cinqüentinha mil do, para usar o nome artístico utilizado pelos envolvidos, dinheiro não-contabilizado. E, em sua defesa, disse que sacou porque lhe garantiram que ninguém saberia. O que, é claro, qualquer um compreende e só insistem em acusá-lo os que têm má vontade. E a verdade é que me disseram que nada aconteceria a ele, não só pela insignificância de suas alegadas faltas como porque ele (foi o que me disseram, repito) fez muitas amizades na Casa e o pessoal ia achar desagradável punir tão cortês e solícito colega, uma flor de pessoa na opinião geral.


Em situação parecida haverá outros e vamos atentar também para o que nos diz o presidente, a todo momento nos ensinando alguma coisa. Ou nos alertando contra o que estaria sendo armado contra ele. Começou com o complô das elites que, como certas leis -no dizer que ele consagrou como presidente - não colou. Ninguém foi nessa conversa de complô das elites, até porque a elite, a começar por ele, está muito satisfeita com o governo, que preserva e aprimora tudo o que ela tem. Mas, como ele não é bobo, sentiu a repercussão e mudou de argumento. Agora a oposição é golpista.


Talvez a alegação de golpismo tenha sido trazida à baila devido ao papel que o dr. José Dirceu chegou a desempenhar no governo, ou seja, presidir a República, enquanto Lula (que não chamo de “dr.”, como chamo todos os que estão no poder, para não ofendê-lo, já que ele patentemente considera meio coisa de baitola esse negócio de estudar) continuava e continua com os comícios. Todo o processo de que foi alvo o dr. Dirceu terá sido, por conseguinte, um golpe. Foi ignorada até mesmo, como ele próprio afirmou repetidamente, a sua biografia. Biografia de luta, sem dúvida, notadamente para a construção do PT, que, pelo visto, agia como os que denunciava e agora está dando no que está dando, com militantes sérios e idealistas fazendo tudo para que o partido não seja destruído. Certamente sofreu no exílio e não deve ter sido fácil o período anterior à abertura política, quando ele passou por pequeno comerciante, com a fisionomia e a tão cantada biografia reinventadas até para sua esposa nesse tempo. Também se sabe, de sua biografia, o curioso fato de Fernando Gabeira ter sido um dos que arriscaram o pescoço para libertá-lo da prisão e, depois que ele chegou ao poder, haver tomado um chá-de-cadeira tão comprido para falar com ele que, com aquele temperamento explosivo e maneiras rudes do Gabeira que todos conhecem, se aborreceu e foi embora.


Há muito tempo não se fala mais em golpismo ou em golpe. Apesar do sucateamento irresponsável das Forças Armadas (que naturalmente não justificaria golpismo, como, aliás, nada justifica), não há o clima de outros tempos, os militares não admoestam mais a nação nas ordens do dia e, apesar dos muitos pesares, se profissionalizam o quanto podem, entre vizinhos que levam mais a sério suas necessidades de defesa e vários estão em condições de equipamento e funcionamento bem menos desfavoráveis. E, no mundo político, apareceu, muito pouco e brevemente, um débil “Fora, Lula!” que ninguém endossou nem deve endossar, porque se trata de um presidente legitimamente eleito, que tem de cumprir seu mandato sem interferências indevidas. Foi um pouco diferente o “Fora, FH!”, que chegou a pegar uma forcinha, muito vinda dos lados do PT, não oficialmente, mas em conversas e eventuais exortações.


O presidente bem que podia achar uma respostinha melhor para os que se manifestam contra o governo. Hoje a oposição não é golpista, os militares não são golpistas, o FMI não é golpista, os bancos não são golpistas, os muito ricos não são golpistas, o povo não é golpista. Que golpismo é esse, é saudade? É porque ele acertava mesmo era discursar contra a ditadura e o governo e agora não sabe mais o que fazer? Ou é coisa pior? Ué, não estranhem a pergunta. Se ele pode delirar, eu também posso. Quem é que está puxando esse papo de golpe, companheiro?




O Globo (Rio de Janeiro) 18/12/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 18/12/2005