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Se tivesse estudado...

 

Para quem precisa de assunto toda semana, é de esperar-se que excesso de assuntos seja uma bênção. Mas cada dia mais chego à conclusão de que não é, é pior do que não ter assunto. Quando não se tem assunto, sempre se pode fantasiar, por exemplo, sobre Herculano, o gavião que se exibia muito aqui pelo terraço e nunca mais apareceu. Quando se tem assunto demais, a indecisão acomete, todos acabam se intrometendo no texto e fica difícil pôr ordem na miscelânea que insiste em sair.


É o caso hoje e de antemão peço a indulgência dos leitores. Mas ponham-se no meu lugar, vejam que não é fácil. Por exemplo, quantos de nós não gostaríamos de bombardear essas malditas elites, que vivem atrapalhando o nosso governo? Foi o que inicialmente pensei que ia abordar. Matutei uns dias sobre as elites e concluí que precisamos combatê-las ou eliminá-las urgentemente. O único problema é que, já em plena campanha, o presidente ainda não explicou que elites são essas. Estou patrioticamente disposto a cair de pau nelas, mas tenho dificuldade em identificá-las.


Meu palpite é que, à medida que a campanha for tomando corpo, o presidente vai malhar cada vez mais as elites. Longe de mim querer dar conselhos a um partido como o PT, que evoluiu da maneira espetacular que se viu, depois que subiu ao poder. Mas diante de alguns percalços que denunciam uma certa imprevidência, tomo a liberdade de lembrar que, antes de encerrarem a reunião anterior ao primeiro grande comício da campanha, baterem na mesa e saírem para o combate - cacete nelas! - resolvam a que elites se referem. Por exemplo, a elite política me preocupa, será ela? Não pode ser, porque elite política é a que está no poder e quem está no poder é o presidente. Portanto, há que se ter certo cuidado com isso, até porque, levado pelo entusiasmo, no aceso de um improviso arrebatado, o presidente pode reviver de repente tempos não tão longínquos e gritar, por exemplo, “fora, Lula”, o que não ficaria bem.


Vamos ter cuidado com isso e com outras coisas. Denunciar os ricos, as elites financeiras, não fica bem tampouco, a não ser com uma criteriosa escolha de linguagem. Isto porque, como se sabe, esse pessoal das finanças, de bancos a investidores internacionais, têm se dado muito bem neste governo e duvido que concebam governinho melhor. Por conseguinte, não cabe atacá-las, porque elas não estão fazendo oposição alguma, muito antes pelo contrário. E por aí vamos, numa escassez gritante de elites para denunciar.


Sugiro que, numa direção já apontada pelo dr. Tarso Genro, que nós, da imprensa, nos sacrifiquemos para preservar o melhor governo que “este país” já teve e nos apresentemos logo para a função de elite a ser desancada. O dr. Tarso vê conspirações da grande imprensa, conspirações estas que o pessoal que trabalha para a grande imprensa tem uma certa dificuldade em localizar. Eu mesmo, juro a vocês, nunca fui chamado para conspirar, nem mesmo me deram ousadia de comunicar-me uma deliberação dos conspiradores sobre o que devo escrever. Vou reclamar, também quero conspirar e ser responsabilizado por tudo o que de ruim acontecer “neste país”. Se os conspiradores deste jornal não me procurarem imediatamente, vou me queixar ao sindicato, ou qualquer coisa assim, não quero deixar de dar minha contribuição a “este país”.


Em relação ainda a assuntos, coça-me cá a mão que sempre invejou os grandes autores policiais e de suspense, para descrever a delicada operação de bandidagem conduzida para a quebra de sigilo do caseiro. Que texto aquilo não daria nas mãos certas, hein? Ou, melhor ainda, que filme! Fiquei empolgado em saber como tudo foi feito na calada da noite, uma operação perfeita. É bem capaz de a violação do sigilo bancário do caseiro e de seu alegado (alegado, alegado, a turma do caseiro se aporrinhou e está tacando processo por tudo quanto é lado) pai biológico ter sido mais rápida do que retirar um extrato naquelas máquinas diabólicas de terminais de bancos. E o principal suspeito, que me dizem? Negando tudo com o semblante inatacável. Nunca esteve na tal casa, não soube da tal violação. E, afinal, era ele mesmo. Se eu fosse fazer o roteiro, botava um final bem dramático, levando o presidente à sua sala (a que ele não deve saber chegar sozinho, não só por falta de prática como porque não sabe de nada sobre qualquer coisa incomodativa) e revelando o nome do culpado no último instante, para ele receber os entusiásticos cumprimentos do presidente, que é o tratamento de praxe para culpados desse tipo.


E, finalmente, tenta-me a situação do próprio presidente. Sou inteirado pelas notícias e vejo aqui em alguns artigos ou reportagens: ele está cada vez mais só. Já não tem o dr. Dirceu para administrar por ele. Já não tem o dr. Palocci para definir a política econômica por ele. Já não tem Duda Mendonça para orientar sua conduta pública. Já não tem mais praticamente nenhum dos antigos companheiros. Ou seja, vai ter de governar, já pensaram o que é isso? O sujeito é eleito presidente e, ainda por cima, se vê nessa situação de ter de governar, em vez do que estava acertadinho, que era viajar, envergar bonés e fazer improvisos? Como é que se enfrenta mudança tão cruel quanto radical? O sujeito leva mais de 30 anos sem trabalhar e, de repente, querem que ele trabalhe? Está certa uma coisa dessas? Não está.


Meu consolo é que até dessa adversidade o Nosso Guia extrairá lições. Confrontado com tão desencorajadora situação, ele pelo menos nunca mais se gabará de não ter estudado e nunca mais manifestará ojeriza à leitura perante os jovens da Nação. Tenho certeza de que concordaria comigo: se soubesse que não estudar ia acabar dando tanto trabalho, teria lido pelo menos um livro.


 


Jornal O Globo (Rio de Janeiro) 09/04/2006

Jornal O Globo (Rio de Janeiro), 09/04/2006