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Saúde & comunicação

 

Recentemente, um novo índice de valores humanos foi divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Trata-se do IVH (Índice de Valores Humanos), que abrange três áreas, trabalho, saúde e educação. Para avaliá-las, foram entrevistas 2.002 pessoas em 24 estados. Emergiu daí uma classificação para as três áreas, sob forma de uma “nota” que varia de zero a 1, sendo 1 o melhor resultado. O Brasil tem um IVH de 0,59. Houve uma variação por área no que se refere ao trabalho, o resultado foi de 0,79. Na educação, o índice foi de 0,54, e na saúde, em 0,45. Na avaliação desta última área, considerou-se o tempo de espera para atendimento médico ou hospitalar, o interesse da equipe de saúde tal como percebido pelo paciente e o grau de compreensão da linguagem usada pelos profissionais de saúde. Houve variações regionais importantes; assim, no Norte o índice de satisfação com a saúde foi um precário 0,31. Dos habitantes da região, 67% rotulam como demorada a espera para receber atendimento de saúde e 64% dizem ter dificuldades para entender a linguagem utilizada pelos profissionais da saúde.

Pode-se discutir a metodologia utilizada neste estudo, mas não resta dúvida que as duas últimas constatações correspondem à realidade. Que demora conseguir atendimento em posto de saúde ou em hospital mostram-nos as filas, que muitas vezes começam a se formar na noite anterior. E quem quer que tenha trabalhado no atendimento médico à população sabe que o processo de comunicação, sobretudo entre médicos e pacientes, é muito difícil. Por que?

Nossa tendência é atribuir os “ruídos” na comunicação ao baixo nível cultural da população. É verdade, ainda que as pessoas estejam cada vez mais informadas, graças sobretudo ao rádio, à tevê, à internet, até, mas também graças ao maior grau de escolaridade. Mas no outro lado, o lado profissional, também há problemas. O aprendizado da medicina implica uma profunda transformação pessoal que se reflete também na linguagem. Ao longo do curso o estudante vai trocando seu habitual vocabulário (em geral de classe média) pelo mediquês, o jargão da área, correspondente ao economês ou ao juridiquês. Este jargão inclui a nomenclatura científica de partes do corpo, de doenças, de medicamentos e também expressões peculiares usada pelos doutores, incluindo a gíria. Assim, tuberculose é “tb”, câncer é “neo” (de neoplasia), histeria (ou hysteria) é “Hy”. Também se pode usar “piti”, abreviatura de “pitiatismo”, termo criado pelo neurologista francês J.F. Felix Babinsky, (1857-1932), para designar a histeria. Com o tempo, e insensivelmente, o estudante de medicina, e depois o médico, incorporam esta linguagem.

Por que o fazem? Pela força do hábito, certamente, mas também por razões psicológicas, uma defesa contra a ansiedade que é acompanhante inevitável de uma profissão que lida com os desafios da doença e da morte. Dar nome às coisas é uma forma de poder; não esqueçamos que este poder foi conferido por Deus a Adão. E também não esqueçamos que o exorcismo se baseia, em grande medida, no fato de chamar os demônios pelo nome. Que a linguagem médica seja crítica não importa muito, assim como, no passado, não importava aos médicos que sua letra fosse incompreensível; era, ao fim e ao cabo, uma coisa simbólica, mas capaz de gerar problemas: não foi uma nem duas vezes que farmacêuticos se enganavam com as receitas.

Do mesmo modo, a linguagem (ou a carência desta) ocasionava confusões. Lembro-me de uma mulher humilde que atendi em um posto de saúde. Ela tinha uma vaginite e já havia sido medicada; mostrou-me os óvulos vaginais que tinha adquirido na farmácia uns dias antes.

— Eu tomo um por dia – informou-me.

Fiquei de boca aberta. Ela tomava os óvulos vaginais? Mas como? A mulher então me explicou: o médico que a atendera fizera a prescrição dizendo que ela deveria usar um óvulo por dia. Este “usar” a paciente não entendeu. Quando comprou os óvulos achou que aquilo eram comprimidos — meio grandes, mas comprimidos, em todo o caso, e passou a tomá-los. Perguntei se não tinha sido difícil e ela me disse que sim, mas que, com muita água, o “comprimido” descia.

Devo dizer que, jovem médico, aquilo para mim foi uma lição. A partir dali comecei a perguntar as pessoas se haviam entendido o que eu dissera; se a resposta era afirmativa, pedia que repetissem as recomendações em suas próprias palavras. E aí o embaraço, o constrangimento eram frequentes. Na verdade, muitas vezes as pessoas não compreendiam, mas ficavam com vergonha de admiti-lo.

Tudo isso é o retrato de um Brasil que precisamos mudar. E estudos que revelam a realidade, que quantificam essa realidade, são importantes para isso.

Correio Braziliense, 24/08/2010