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Santa Amélia e minha adolescência

 

Depois de alguns anos de obras, inaugurou-se a restauração da Fábrica Santa Amélia, na antiga Rua da Madre Deus, onde, nos primórdios da ocupação da cidade de São Luís, quando aqui chegaram os franceses, havia uma rica floresta de bacuri, madeira que foi cortada para construir os telhados e os pisos dos nossos velhos sobrados. O Arquivo Público de São Luís tem uma rica coleção de petições de licenças para retirar a madeira feitas ao Presidente da Câmara — que naquele tempo era o Executivo da cidade, pois o cargo de prefeito só veio a ser criado na década de 1840, sob protestos gerais, que foram uma das causas da Balaiada. 

Foi ali, na esquina fronteira ao edifício da fábrica, na casa de Cândido Costa, que, em 1944, eu aluguei um quarto para morar com meu irmão Evandro. Era o tempo da Segunda Guerra Mundial e eu estudava no Liceu Maranhense. 

Tive uma emoção muito grande quando, há dois anos, Kátia Bogéa — essa dedicada defensora da cidade de São Luís, que tem feito um excelente trabalho no Iphan — convidou-me para, em companhia do reitor Natalino Salgado, visitar as obras. Depois, fui ao meu antigo quarto, cuja recordação guardo indelével na minha vida. A esposa do Candido Costa era empregada da fábrica e encheu de carinho aqueles tempos em que começava minha vida. A fábrica começava a funcionar às cinco horas da manhã, quando o apito mostrava que as máquinas iam rodar e nos acordava, e iniciávamos nossa preparação para irmos ao colégio, cujas aulas começavam às sete horas. 

O parque têxtil do Maranhão vivia sua última fase de trabalho, porque, com a guerra, o preço do tecido aumentou, atraindo novos estados produtores, enquanto nós produzíamos com máquinas velhas, incapazes de concorrer com as outras fábricas brasileiras. 

Evandro e eu pagávamos cem mil réis, 90 do aluguel com comida e dez para lavar a roupa. Recordo que foi ali que pela primeira vez li o "Dom Quixote", que o poeta Corrêa de Araújo, diretor da Biblioteca Pública, que funcionava onde hoje é a Academia Maranhense de Letras, me emprestara. Não tinha ainda o amadurecimento intelectual para absorver toda a grandeza do maior livro escrito no mundo. Mas ficou a marca do meu esforço na minha memória, e depois várias vezes durante a vida tive a oportunidade de o reler. Ele não é um livro, são todos os livros, tal a variedade de temas e a beleza da mistura do dramático, do irônico, do trágico, do épico e a extraordinária construção dos personagens. 

Como não tínhamos jantar e nossa refeição noturna era só café com pão recheado de açúcar, eu ia comprar o pão na outra esquina, na Rua São Pantaleão, na padaria Macieira, do avô da moça com quem iria casar, Marly. 

Fico feliz em saber que agora aquele prédio da Fábrica Santa Amélia tem um destino fixo para uma causa nobre, aquela que consumiu as noites e os dias da minha adolescência: a educação.

O Estado do Maranhão, 11/10/2015