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A resposta está na filosofia

 

Acabo de ler os jornais, não tenho por perto ninguém para conversar e pelo telefone até hoje não me ajeito bem, resolvo pensar sozinho mesmo. Já não sou um rapazinho, os neurônios rateiam diante da profusão estonteante de acontecimentos, mudanças de percepção e avaliação.


O miolo esquenta, como alegava minha tia Mercesinha, quando não queria estudar. Descubro que devo estar sofrendo do mesmo mal diagnosticado no presidente por uma psicanalista com quem me desculpo, por não haver anotado seu nome. Ela disse que o presidente está sofrendo de “estupor traumático”. Acho que também estou, embora os componentes do meu sejam diversos. O dele só perguntando à doutora, mas o meu é abestalhamento. Não entendo mais nada e, no máximo, consigo ouvir alguns palpites de Algo. Algo, como não se ignora, mente muito, mas também diz muitas verdades. Algo me diz, por exemplo, que essa bagunça toda não vai dar em nada e, na verdade, não tem importância nenhuma que seja assim, porque não se conserta o país apenas com resultados de investigações e mesmo algumas condenações. Isso seria trabalho para várias gerações, porque o que está sendo revelado lá acontece em toda parte no Brasil e é praticado, cada macaco em seu galho, por todo mundo, assim ou assado - razão para o espanto parisiense do presidente.


Ele tinha razão. No máximo aperfeiçoa-se um mecanismozinho lá e cá e vai-se fingindo que isto aqui é uma democracia onde a soberania popular é exercida e o cidadão desfruta de todos os seus direitos. Algo me diz que claro que pode não existir um acordão, mas já existem acordinhos a granel e me diz também que ninguém da famosa elite está querendo que aconteça coisa alguma para mudar a situação vigente - a situação antes da crise, quero dizer. Acho que ficar aqui blaterando contra o que vem sendo denunciado ou evidenciado é pura perda de tempo, além de não dar camisa a ninguém.


Vergonha mate-me, mas a verdade é que desmereço as tradições de minha terra. Como sabem todos, Itaparica é rica em filósofos de todo quilate, entre os quais sobressaem membros de minha própria família e não será uma falsa modéstia que me impedirá de falar em meu primo Walter Ubaldo (“Ubaldo”, no meu caso, não é nome de família, é só mania da família mesmo), fundador e mentor supremo da Escola Filosófica do Sorriso de Desdém. Ele e seus discípulos ficaram famosos por beber e farrear a noite toda e, na hora de pagar a conta, encararem o garçom, o gerente ou quem lá fosse com “a mais poderosa arma que o homem tem, o Sorriso de Desdém”. Waltinho já nos deixou e hoje nos sorri desdenhosamente lá do céu, mas está lá em Itaparica, bem vivinho, Ary de Almiro, que foi discípulo militante e não me deixa mentir. Waltinho já teria fulminado essa corja toda de trambiqueiros com uma rajada de sorrisos de desdém. E digo mais (é Algo outra vez), tenho certeza de que Waltinho hoje seria fã de Lula e interpretaria sua expressão como um vasto sorriso de desdém para os otários que o elegeram, ele lá na dele e o resto cá na que nós sabemos.


Luiz Cuiúba também faz falta, muita falta. Vocês podem ter esquecido, filhos ingratos, mas eu não passo dia sem recorrer à máxima que tornou Cuiúba uma lenda nos meios filosóficos. “Pior seria se pior fosse”, sentenciava ele. “Pense bem nisso: pior seria se pior fosse!” Quantas vezes, sorridente e sem a dentadura que só usava em festas, ocasiões solenes ou no cumprimento de mandados (ele era oficial de justiça) importantes, ele me consolou de uma queixa fugaz como a própria vida, com a repetição desse aforismo. E, de fato, pensem aí, olhem em torno: pior seria se pior fosse, não é verdade? É verdade. É capaz de estar fazendo sol, de vocês estarem se sentindo bem, é domingo graças a Deus, pior seria se pior fosse, é ou não é? Claro que é.


O mundo, diz ainda outro filósofo itaparicano, este quieto, moderado e infenso a discípulos e seguidores, meu amigo Benebê, de batismo Demócrito, de apelido Benedito e de apelido do apelido Benebê. Benebê, que hoje vive abatidozinho depois da perda de seu saveiro num temporal e da viuvez inesperada, mas ainda conserva o brilho firme de mulato de olhos verdes, gosta de mim e me dava ousadia de conversar comigo de vez em quando. Ele me repetiu muito o mote que preferia. “O mundo é perfetcho”, diz ele, no sonoro português cantado do Recôncavo. Sim, é perfeito, explicava ele. Já pensou se fosse do jeito que cada um de nós quer? Não, não, tudo acontece como deve acontecer, o mundo é perfeito, não há nada a mudar.


Grande verdade. Esta vida é boba e, se se for estritamente racional, destituída de sentido. Vem até mesmo perdendo o valor e o mistério. Para que tanto ódio desperdiçado, tanto sofrimento, tanta mágoa inútil? Todos acabaremos na cova do mesmo jeito, o mundo é perfeito, assim será enquanto for mundo. O presidente tinha razão em mostrar que sempre se agiu assim e não havia por que manifestar surpresa se seu partido fez igual aos outros. Fez pior até, agora se desconfia. Mas que quer dizer isso, quando tudo neste mundo passa e nada neste mundo fica, por que sofrer à toa? Vamos filosofar. O presidente também filosofa. Vejo-o aqui no jornal, dizendo qual a sua receita para enfrentar a crise. É paciência, paciência, paciência. Curioso, eu pensei que quem tinha de ter paciência éramos nós, como temos tido ao longo de séculos. Mas não, ele é que tem de ter paciência conosco, nós só estamos aqui para atrapalhar. Além do mais, tudo está demorando tanto que o assunto já começa a cansar nossa volátil atenção cívica. O dr. Severino chegou a dizer que, em lugar de ser cassados, os deputados deviam apenas receber advertências. O mundo é perfeito e pior seria se pior fosse.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 04/09/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 04/09/2005